quinta-feira, 27 de novembro de 2014

RUI BARBOSA: A IMPRENSA E O DEVER DA VERDADE


"A imprensa é a vista da nação. Por ela é que a nação acompanha o que  lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa e se acautela do que a ameaça.

Sem vista mal se vive. Vida sem vista é vida no escuro, vida na soledade, vida no medo, morte em vida: receia de tudo, dependência de todos; rumo à mercê do acaso; a cada passo acidentes, perigos, despenhadeiros. Tal condição do país, onde a publicidade se avariou, e, em vez de ser os olhos, por onde se lhe exerce a visão, ou o cristal que lha a clareia, é a obscuridade, onde se perde, a ruim lente, que lha turva ou a droga maligna, que lha perverte obstando-lhe a noticia da realidade, ou não lha deixando senão adulterada, invertida, enganosa.

Já lhe não era pouco ser o órgão visual da nação. Mas a imprensa, entre os povos livres, não é só o instrumento da vista, não é unicamente o aparelho de ver, a serventia de um só sentido. Participa, nesses organismos coletivos, de quase todas as funções vitais. É sobretudo mediante a publicidade que os povos respiram.

Todos sabem que cada um de nós tem na ação respiratória, uma das mais complexas do corpo, e uma das em que se envolvem maior número de elementos orgânicos. A respiração pulmonar combina-se com os tecidos, para constituir o sistema de ventilação, cuja essência consiste na troca incessante dos princípios necessários à vida entre o ar atmosférico e o sangue, da circulação da qual vivemos. Nos pulmões está o grande campo dessas permutas. Mas os músculos também respiram, e o centro respiratório se encontra, bem longe do aparelho pulmonar, nesse bulbo misterioso, que lhes preside a respiração, e lhe rege os movimentos.

Da mesma sorte, senhores, os corpos morais, nas sociedades humanas, essa respiração, propriedade e necessidade absoluta de toda célula viva, representa, com a mesma principalidade, o papel de nutrição, de aviventação, de regeneração, que lhe é comum em todo o mundo orgânico animado ou  vegetativo.

Nos indivíduos, ou nos povos, o mundo espiritual também tem a sua atmosfera, donde eles absorvem o ar respirável, e para onde exalam o ar respirado. Cada um dos entes que se utilizam desse ambiente incorpóreo desenvolve, na sua existência, graças às permutas que com esse ambiente entretêm, uma circulação, uma atividade sanguínea, condição primordial de toda a sua vida, que dele depende. Não há vida possível, se esse meio, onde todos respiram, lhes não elabora o ar respirável, ou se lhes deixa viver o ar respirado.

Entre as sociedades modernas, esse grande aparelho de elaboração e depuração reside na publicidade organizada, universal e perene: a imprensa. Eliminai-a da economia desses seres morais, eliminai-a, ou envenenai-a, e será como se obstruísseis as vias respiratórias a um vivente, ou o pusésseis no vazio, ou o condenásseis à inspiração de gases letais. Tais são os que uma imprensa corrupta ministra aos espíritos, que lhe respiram as exalações perniciosas.

Um país de imprensa degenerada  ou degenerescente é, portanto, um país cego e um país miasmado, um país de ideias falsas e sentimentos pervertidos, um país que, explorado na sua consciência, não poderá lutar com os vícios, que lhe exploram as instituições.

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Todos os regimes que decaem para o absolutismo vão entrando logo a contrair amizades suspeitas entre os jornais. Bem se sabe, por exemplo, o que, a tal respeito, foi o império de Napoleão III. Mas na Alemanha, debaixo da influência bismarckina, é que se requintou, em proporções desmedidas e com inconcebível generalidade, essa anexação da publicidade ao governo.

Vai por cerca de cinquenta anos que um historiador prussiano, dos mais notáveis de sua terra, professor WUTTKE, lente na universidade de Leipzig, escrevia o seu célebre livro sobre a verba dos reptis (Reptilienfund), livro clássico no assunto.

Por ele se veio a saber que, com o nome de “Repartição da Imprensa”, “Bismarck estabeleceu às margens do Spréia (vi, no Google, 'Spree', rio que corta Berlim - blog domacedo) a mais vasta fábrica da opinião pública até então conhecida, e lhe derramara as filiais pelo mundo inteiro” .

É um depoimento estupendo acerca desse terrível mecanismo, graças ao qual, há mais de meio século, já o gabinete de Berlim se considerava senhor de toda a imprensa. Foi por esse meio que se aparelhou a vitória alemã contra a Áustria, em 1886, se vingou o triunfo alemão contra a França, em 1871, e estava organizada, para 1914, a inundação do mundo pela Alemanha.

Por meio desses recursos diabólicos é que desde a falsificação da ordem do dia de Benedeck,  no primeiro desses assaltos, e a ordem do telegrama de Ems no segundo, até as monstruosas fábulas que caracterizaram o terceiro, se maleou, nas forjas da mentira, para a execução das vontades da casta militar, essa nacionalidade enganada e alucinada, que desperta agora aturdida entre as decepções da mais inesperada realidade.

A surpresa desse acordar entre ruínas tais, desse cair de tão vertiginosa altura em tão incomensurável abismo, lampeja com uma claridade sinistra sobre o regime, que ora se vai introduzindo no Brasil, de apagamento da consciência das nações  pela imersão habitual do seu espírito e costumes da mentira.
Ora, assim nas autocracias, como nas oligarquias o poder corre ao encontro dos maus exemplos, como a limalha ao do ímã.

No Brasil, a monarquia não padeceu sensivelmente desse vício. Mas a República, adernando logo ao começo da sua inauguração constitucional, como nau que mete água dentro ao sair do porto, simpatizou com esses modelos, e foi já, desde os seus mais verdes anos, prematurando com a corrupção da sua primeira idade a obra do tempo.

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Três ancoras deixou Deus ao homem: o amor da pátria, o amor da liberdade, o amor da verdade.

Cara nos é a pátria, a liberdade mais cara; mas a verdade mais cara que tudo.  (...). Damos a vida pela pátria. Deixamos a pátria pela liberdade. Mas à pátria e à liberdade renunciamos pela verdade. Porque esse é o mais santo de todos os amores. Os outros são da terra e do tempo. Este vem do céu e vai à eternidade.

Nenhum país salva a sua reputação com os abafos, capuzes e mantilhas da corrupção encapotada.
Durante a campanha da Crimeia, em 1854, o Times, o jornal dos jornais europeus, não hesitou em romper na mais tremenda hostilidade contra a administração militar da Grã Bretanha, sustentando que seu serviço era “infame, infamous”, que os soldados enfermos não achavam nem cama, onde jazessem, que o exército, gasto, desmoralizado e miserando, não tinha, em Balaclava, nem onze mil homens capazes de entrar em combate.

Russel, o famoso correspondente desse jornal britânico no teatro da guerra, perguntava em carta, a Delane, o célebre diretor do grande órgão: “Que hei de fazer? Dizer estas coisas ou calar?”  Mas o interrogado não hesitou na resposta. As instruções, em que lha deu, recomendaram-lhe, com energia, “falar a verdade, sem indulgência nem receios” .  O Times, declaravam elas, o Times não admitia “véus”.

Era opinião do seu editor que, “nas circunstâncias do caso, a publicidade constituía o meio de cura indispensável”.  Embora chegassem a dizer que “o exército deveria linchar o correspondente do Times”,  embora o príncipe consorte o apodasse de “miserável libelista”,  embora o presidente do conselho dissesse, no Foreing Office, que “três batalhas campais, ganhas pela Inglaterra, não a restituiriam do dano “causado pelas correspondências e editoriais daquela folha", o Times não variou seu rumo, de atitude e de franqueza, até o termo da luta do Reino Unido com o Império Russo.

Sabeis com que resultados, senhores? A Câmara dos Comuns acabou por mandar abrir, em 1855, um inquérito sobre a situação do exército em Sebastopol. O gabinete caiu, demolido pela campanha do terrível órgão londrino. As mais eminentes autoridades militares declararam, afinal, que ele, “narrando com fidelidade ao público os padecimentos da tropa, salvara o rosto do inglês”. O governo da Rainha Vitória, pela voz de Gladstone, agradeceu a Delane o “valioso apoio” (palavras suas), o valioso apoio do Times, subscrevendo, sem reservas, o principio seguido por ele, de que “nunca se deve encobrir ao público em circunstância alguma, quaisquer que sejam os inconvenientes da sua divulgação”."






(De Rui Barbosa - 1849/1923 -, "A imprensa e o dever da verdade"; Biblioteca do pensamento vivo; O pensamento vivo de Rui Barbosa - Bahia 1924, pág. 15 -, apresentado por Américo Jacobina Lacombe. Livraria Martins Editora, 1967. Fonte: aqui.

A imprensa, como pregava Delano, do Times de Londres, nunca 'deve encobrir ao público em circunstância alguma, quaisquer que sejam os inconvenientes da sua divulgação'. Bela lição. Bom seria se tal pregação inspirasse os adeptos da parcialidade, seletividade e manipulação, tão comuns em certas plagas).

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