sexta-feira, 28 de novembro de 2014

QUANDO O PAI DE DOM QUIXOTE DRIBLOU A INQUISIÇÃO


Dom Quixote escapa da inquisição

Por Thérèse Jerphagnon

Em 16 de janeiro de 1605, Miguel de Cervantes, então próximo dos 60 anos, publicou em Madri a primeira parte de O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha. Naquele dia, os romances de cavalaria e a mentalidade medieval como um todo receberam um golpe mortal. No livro, que é considerado a obra fundadora da literatura espanhola, Cervantes narra a saga de um nobre que sonhava com aventuras incríveis de cavalaria mas não conseguia ver a miséria da realidade que o cercava.

A história começa em um vilarejo da região de Castela-La Mancha, vasta planície localizada ao sul da capital espanhola. Ali vivia um fidalgo cinquentão, Alonso Quijano, tão apaixonado por romances de cavalaria que perdeu o juízo. Certo dia, ele abandonou a sobrinha, a governanta e os empregados domésticos e partiu, montando um pangaré chamado Rocinante, armado unicamente com uma espada e tendo sobre a cabeça uma cuia de fazer a barba como capacete.

Inspirado por alucinações, Quijano tomou uma estalagem por castelo, onde se fez armar cavaleiro. Acabou convencendo seu ambicioso vizinho, Sancho, a se tornar seu escudeiro. Tendo cismado em defender os pobres e oprimidos, não faltariam a ele aventuras reais ou imaginárias: lutar contra moinhos de vento, libertar presos das galés e fazer penitência na cordilheira de Serra Morena.

O encanto da obra nasce do descompasso entre o idealismo do protagonista e a realidade na qual ele atua. Cem anos antes, Quixote teria sido um herói a mais nas crônicas ou romances de cavalaria, mas ele havia se enganado de século. Sua loucura residia no anacronismo. Isso permitiu ao autor fazer uma sátira de sua época, usando a figura de um cavaleiro medieval em plena Idade Moderna para retratar uma Espanha que, após um século de glórias, começava a duvidar de si mesma.

                             Frontispício da primeira edição da obra de Cervantes,
                                     publicada na cidade de Madri em 1605.

Quando Cervantes escreveu sua obra-prima, a Espanha de Carlos V, que governava um imenso império onde "o Sol nunca se punha", já era coisa do passado. O soberano abdicou em 1556, quando dividiu seus domínios entre dois herdeiros: o irmão, Fernando, ficou com o título de sacro imperador romano-germânico e com as terras localizadas nas atuais Áustria e Alemanha; o filho assumiu o trono da Espanha com o nome de Felipe II e ficou com as terras da península Ibérica, dos Países Baixos e da América.

Durante seu reinado, Felipe II conseguiu manter a Espanha como a principal potência europeia do período e ainda expandir seus domínios, anexando Portugal em 1581. As ameaças, porém, estavam por todas as partes. Os primeiros sinais de crise surgiram já em 1558, quando os planos espanhóis de invadir a Inglaterra naufragaram junto com os navios da "Invencível Armada", que foram parar no fundo do canal da Mancha. O fracasso na Inglaterra ofuscou até a vitória contra os turcos na Batalha de Lepanto, em 1571
.

Além do revés militar, o monarca também teve de combater os movimentos que colocavam em risco a unidade religiosa do Império Espanhol, como a expansão do protestantismo nos Países Baixos e os levantes dos muçulmanos convertidos no sul da Espanha. Felipe II conseguiu fazer frente a esses grandes desafios, mas seu filho e sucessor não teve a mesma sorte. Felipe III não tinha as mesmas virtudes do pai e, ao ser coroado, em 1598, deixou que seu favorito, o duque de Lerma, praticamente governasse em seu lugar. A corrupção, então, se espalhou por toda a administração.

                         Dom Quixote & Sancho Pança, por Gustave Doré.

Foi em uma Espanha em crise que Cervantes criou seu cavaleiro fora do lugar. Nesse reino decadente, as classes superiores eram incapazes de gerar riquezas e se refugiavam na trilogia: "Igreja, mar, casa real". Os nobres viviam para defender a própria honra, e sua única fortuna estava na espada. Como diz Cervantes: "Com razão, os príncipes deveriam estimar esse primeiro tipo de cavalaria, pela qual (...) alguns garantiram não somente a salvação de um reino, mas a de muitos (nobres)". Diante dessa cavalaria de "velhos cristãos", emergia também uma nova nobreza, que vivia da riqueza da corte e só conhecia o inimigo de ouvir falar. Todos os ambiciosos conspiravam para se apoderar das migalhas do poder.

A repulsa pelo trabalho tinha contaminado até os camponeses. A manipulação do dinheiro, tradicionalmente reservada aos judeus, expulsos em 1492, era desprezada por todos. Seria preciso esperar por muito tempo ainda para ver emergir, na Espanha, uma burguesia industrial e comerciante, como nos países protestantes. Mesmo no fim do século XVIII, as atividades manuais e comerciais ainda eram evitadas por uma nobreza que substituiu a "pureza de sangue" por uma "pureza de ofícios". O próprio Sancho, contaminado pela loucura de seu amo, se pretendeu governador da imaginária ilha de Barataria.

O fausto e o ócio da corte conviviam com a miséria das ruas. O ouro das Índias na prática havia empobrecido a população do país, mas esta se acreditava rica para sempre. Em Sevilha, onde Cervantes viveu até 1600, ao lado da população trabalhadora havia toda uma turba que povoava a literatura picaresca: malandros, prostitutas e assaltantes de todo tipo. É nesse contexto que a fome se transforma em personagem: Sancho tem uma única obsessão: encher a pança.

CLERO AGIGANTADO  
Como sublimar essa realidade, se não pela fuga rumo ao sonho? Os mais jovens se refugiavam na religião. Naquela época, contavam-se na Espanha 9 mil conventos, onde viviam, entre outros, 32 mil franciscanos e dominicanos. A magnitude do clero espanhol salta aos olhos quando comparada com o do resto da Europa: a Companhia de Jesus, por exemplo, não contava com mais de 13 mil membros em todo o continente no mesmo período. 

Em um país como esse, a fina ironia do livro de Cervantes não seria tolerada. A obra, que revelava as contradições da Espanha no início do século XVII, certamente seria alvo da Inquisição, que ganhara ainda mais poder durante o reinado de Felipe II e sobreviveria na Espanha até 1834. Naquele contexto de perseguição, como um escritor poderia evitar ou contornar a censura? Cervantes recorreu a um duplo subterfúgio. Primeiro, recusou a paternidade da obra. O escritor alegou ser tão-somente o herdeiro de Cide Hamete Benengeli, historiador mouro traduzido por um erudito muçulmano da cidade de Toledo que havia se convertido ao cristianismo no século XVI. O segundo álibi utilizado pelo autor foi declarar a loucura de seu herói. 

A ambiguidade da obra e das posturas de Cervantes salvou Dom Quixote da fogueira. À primeira vista, o escritor parecia aderir à Contra-Reforma católica, que procurou deter o avanço do protestantismo reafirmando os dogmas da Igreja romana no Concílio de Trento, encerrado em 1563.
Logo no início do livro, o padre da aldeia de Dom Quixote faz um sermão que parece claramente inspirado no Index dos livros proibidos, publicado pelo tribunal da Inquisição em 1564: "Não há de passar de amanhã, sem que deles (romances de cavalaria) se faça auto-de-fé, e sejam condenados ao fogo, para não tornarem a dar ocasião, a quem os ler, de fazer o que o meu bom amigo (Quixote) terá feito". Na presença da governanta, os livros atirados pela janela alimentavam um auto-de-fé bem ao estilo dos tempos da Inquisição. Como se não bastasse, Cervantes termina seu relato se justificando: "Eu nunca tive outra intenção que não a de fazer os homens detestarem as fabulosas e extravagantes histórias dos romances de cavalaria". 

Essas passagens dão a impressão de que o criador do Quixote era um seguidor da rigorosa moral definida pelo Concílio de Trento, mas em outras partes da obra o autor faz críticas claras à Inquisição. Em um ponto da narrativa Sancho cobre a cabeça de seu asno com um sanbenito, chapéu em forma de cone utilizado por aqueles que eram acusados de heresia pelo Santo Ofício.

O autor parece também zombar da tese da "pureza do sangue", que permitia separar os descendentes de judeus e muçulmanos convertidos dos verdadeiros cristãos. Em uma passagem do livro, que foi alvo de severas críticas, Dom Quixote dá o seguinte conselho a Sancho Pança: "Não tenhas vergonha em dizer que és filho de lavradores, orgulha-te mais em seres humilde virtuoso que pecador soberbo. Inumeráveis são os que, nascidos de baixa estirpe, subiram à suma dignidade. Não há motivo para ter inveja dos príncipes e senhores, porque o sangue se herda e a virtude se adquire; e a virtude por si só vale o que não vale o sangue". O suposto desprezo de Cervantes pela pureza de sangue ajudou a reforçar a suspeita de que o autor não era um verdadeiro cristão. A própria palavra "Mancha" seria um jogo de duplo significado: fazia certamente referência à região árida, à imagem do herói que dela emana, mas não apontaria também para uma "mancha" judaica na ascendência do personagem e de seu criador?

As acusações de ligação com o judaísmo foram uma constante na vida do escritor. Foi em pleno bairro judeu de Toledo, na rua de Alcana, que se descobriu o manuscrito de Dom Quixote. A mulher de Cervantes, Catalina de Salazar y Palacios, nascida na região de Esquivias, tinha ali um tio cristão novo (judeu convertido), chamado Alonso Quijada, que teria inspirado o autor. Outro antepassado de Cervantes também teria se convertido ao catolicismo.

Sabe-se que o pai de Cervantes chegou a pedir um exame de "pureza de sangue" para que o filho pudesse obter um cargo no governo. O laudo atestou que Cervantes era um fidalgo, mas isso não prova muita coisa. A sanha da Inquisição tinha contaminado as pesquisas genealógicas, e as falsificações abundavam. No romance, Sancho pretendia ter "a alma bem protegida por uma camada de quatro dedos de gordura de velho cristão". Mas seria isso um elogio ou uma sátira?

Para uns, Cervantes era judeu; para outros, antissemita. Ele já foi considerado um seguidor da moral rigorosa do Concílio de Trento e também um humanista inspirado pelas críticas à Igreja feitas por intelectuais como Erasmo de Roterdã (1466-1536). Nenhuma dessas contradições, no entanto, tira o brilho do autor e de sua obra. É justamente na ambiguidade que reside o fascínio do Quixote.

O movimento pendular entre o idealismo do cavaleiro errante e o realismo popular de seu escudeiro é a própria trama de todo o romance. Se ainda hoje o leitor vibra com Quixote e ri de Sancho, é porque se emociona com a capacidade que esses personagens têm de tocar no que temos de mais profundo, nas inúmeras contradições que carregamos em segredo dentro de nós.

No fim da vida, cheio de pessimismo em relação ao mundo real que redescobriu ao recobrar a sanidade, o moribundo Quixote pede perdão a Sancho por tê-lo arrastado em sua loucura e lamenta não ter podido lhe oferecer um reino, que ele bem merecia, por sua fidelidade. Perdida a glória, restava a virtude da caridade: "Eu fui Dom Quixote de La Mancha, e agora sou Alonso Quijano, o Bom". No leito de morte, distribuiu seus parcos bens àqueles que o cercavam, mas advertiu a sobrinha de que ela seria deserdada se viesse a se casar com algum leitor de romances de cavalaria. Saía de cena o cavaleiro errante e surgia uma outra figura, que o jesuíta Baltasar Gracián chamaria de "o Sábio" e Molière de "o Fidalgo". Um novo modelo de homem para o século XVII.

CRONOLOGIA

1547
Nascimento de Miguel de Cervantes Saavedra, em Alcalá de Henares
1569
Viagem a Roma
1571
Perde os movimentos da mão esquerda lutando na Batalha de Lepanto
1575
Fica cinco anos preso em Alger
1584
Casa-se com Catalina de Salazar y Palacios
1597-1597
Coletor de impostos malsucedido, se retira para uma assembleia religiosa em Sevilha, de onde é expulso. É preso por erros de tesouraria
1600
A peste o faz abandonar Sevilha
1605
Publicação da primeira parte de Dom Quixote
1614
Publicação da segunda parte de Dom Quixote
1616
Morre em Madri, aos 69 anos
Rota do Quixote


Cervantes não quis identificar com precisão a cidade natal de Dom Quixote "para permitir que todas as cidades e vilarejos de La Mancha disputassem a glória". Uma "Rota do Quixote", de 2.500 km de extensão, atravessa as cinco províncias que atualmente formam a comunidade autônoma de Castela-La Mancha. O itinerário passa por 145 cidades, entre as quais El Toboso, o vilarejo de Dulcineia, e três candidatas à cidade natal de Dom Quixote: Villanueva de Los Infantes, Argamasilla de Alba e Esquivias.

Os moinhos que o Cavaleiro da Triste Figura enfrenta no romance provavelmente ficavam na cidade de Campo de Criptana. Atualmente há uma dezena deles no município, mas apenas um existia na época de Cervantes. Várias prisões da região reivindicam a honra de ter acolhido o ilustre personagem, entre elas a de Argamasilla.

A estalagem onde Dom Quixote foi sagrado cavaleiro fica em Puerto Lápice, e a prefeitura de El Toboso conserva com orgulho algumas edições raras do romance. Na extremidade do vilarejo, pode-se visitar a imaginária "casa" de Dulcineia. Por fim, o episódio da gruta de Montesinos se passa em meio às lagoas de Ruidera, localizadas entre as cidades de Ciudad Real e Albacete. 

PARA SABER MAIS 

O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha (v.1). Miguel de Cervantes, Editora 34, 2002

O engenhoso cavaleiro Dom Quixote de La Mancha (v.2). Miguel de Cervantes, Editora 34, 2007 - (Fonte: aqui).


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Thérèse Jerphagnon é professora de espanhol e colaboradora da revista Historia
© Duetto Editorial.

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