quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O NOME DE DEUS


O nome de Deus

Por Vladimir Aras

Pessoas religiosas acreditam que não se deve invocar o nome de Deus sem propósito. É o Segundo Mandamento: “Não usar o Santo Nome de Deus em vão”.

Em três situações, três juízos distintos levaram a palavra “Deus” às barras da Justiça, quase ao banco dos réus. “Ele” já teria sido julgado um dia. Nesses três casos, quem está sob julgamento é a Justiça dos homens.

Em 2013, um tribunal da Malásia proibiu o jornal católico The Herald de usar a palavra “Alá” para se referir ao Deus cristão (aqui). Algo surreal, que atenta contra a liberdade religiosa daquela minoria num país majoritariamente muçulmano.

Os outros dois episódios se passaram no Brasil. Vamos ao primeiro.

Um júri realizado no Rio de Janeiro foi anulado pelo STJ porque o promotor de Justiça disse a expressão “Deus é bom” no plenário ao final da formação do conselho de sentença. Escolhiam os jurados para julgar um homem acusado de homicídio. E este acabou condenado.

A defesa impetrou um habeas corpus (Christi), um desses tantos HCs esquisitos que existem por aí e que servem para encontrar nulidades onde não há nenhuma e sanar pecados de quem os têm. Santo habeas corpus! Serve para tudo (“Os HCs mais esquisitos do mundo“). Transforma água em vinho. Opera milagres processuais. Muitos culpados dão graças a Deus pelo perdão que alcançam sem merecer, mas devem gratidão aos tribunais que permitem essas heresias no rito. E forma-se uma igreja ortodoxa das santas nulidades, uma teologia pagã cujos fieis repetem cegamente os mantras de certas bíblias de processo penal.

O relator do HC 222.216/RJ foi o ministro Jorge Mussi. A decisão do STJ pode ter sido proferida numa dessas salas adornadas por crucifixos em memória ao Filho de Deus, adorado pelos cristãos. Na parede principal do plenário do STF há um desses. Ateus e crentes são ali julgados. Ninguém vai à fogueira da Inquisição. E a vida segue.

Eis a fatwa da corte superior:
HOMICÍDIO QUALIFICADO (ARTIGO 121, § 2o, INCISOS I E III, DO CÓDIGO PENAL). NULIDADE DO JULGAMENTO EM PLENÁRIO. SORTEIO DOS JURADOS. RECUSA PEREMPTÓRIA. INVOCAÇÃO DE EXPRESSÃO DE CUNHO RELIGIOSO PELO PROMOTOR DE JUSTIÇA. POTENCIALIDADE PARA INFLUENCIAR O ÂNIMO DO CONSELHO DE SENTENÇA. EIVA CONFIGURADA.
1. O Ministério Público deve pautar a sua atuação durante o julgamento pelo Tribunal do Júri pela lisura e eticidade, respeitando todas as pessoas que atuam no julgamento popular e evitando a utilização de termos ou expressões que possam ofender quaisquer dos presentes.
2. O Estado brasileiro rege-se pela laicidade, vedando-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, nos termos do artigo 19 da Constituição Federal, “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público
3. Embora o ordenamento jurídico faculte às partes a recusa imotivada de três jurados, não lhes dá autorização para que tal ato sirva como uma oportunidade para se externar quaisquer convicções que possam influenciar o Conselho de Sentença que se encontra em formação, sejam de cunho religioso, filosófico, moral ou até mesmo costumeiro.
4. Na hipótese em apreço, por ocasião do sorteio dos jurados o representante do Ministério Público se manifestou dizendo que recusaria homens para equilibrar os sexos dos componentes do Conselho de Sentença, tendo proferido a frase “Deus é bom” logo após a escolha da última jurada do sexo feminino.
5. Em razão da ausência de motivação do veredicto proferido pelos jurados, não se vislumbra possível aferir, com precisão, se a conduta do representante do parquet influenciou ou não o convencimento dos jurados, mas é possível afirmar, sem qualquer dúvida, que se está diante de uma intervenção que teve potencial para exercer tal influência, mormente em razão das peculiaridades do caso, em que foi atribuída ao paciente a prática do delito de homicídio duplamente qualificado contra sua enteada, de apenas 12 (doze) anos de idade.
6. Writ não conhecido. Ordem de habeas corpus concedida de ofício para anular o julgamento do paciente perante o Tribunal do Júri, determinando que outro se realize com a observância das garantias processuais constitucionais.” (STJ, HC 222.216/RJ, 5ª Turma, rel. Jorge Mussi, j. em 21/10/2014).
Espanta que algo assim aconteça num ambiente tão pleno de rituais, liturgias, símbolos e dogmas como uma corte judiciária. Não se sabe que influência a expressão “Deus é bom” pode ter tido no ânimo dos jurados. Será que teve alguma? O próprio STJ confessou que não sabia. “Não se vislumbra possível aferir, com precisão, se a conduta do representante do parquet influenciou ou não o convencimento dos jurados”, disse a CorteOs jurados eram eles ateus, agnósticos, budistas, umbandistas, indiferentes? Tampouco se sabe.

Para quem acredita, Deus está em toda a parte. Não é o caso aqui. Mas é certo que a palavra “Deus” está até no preâmbulo da Constituição, pois os constituintes que a promulgaram fizeram questão de invocar sua proteção:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.
Não precisavam pedi-la. Mesmo assim o Estado laico não ruiu. Algumas vezes é preciso acreditar em algo. Mas é melhor ter bom senso.

Caim matou Abel. Tínhamos um homicídio. As provas eram suficientes para condenar. O que faz o tribunal? Determina a excomunhão do homicida? Não! Elimina a condenação arguindo formalidades sacramentais! Deus nos ampare. Só Deus salva o Brasil desses formalismos religiosos. Disto e das saúvas.

Deve estar certo o promotor: “Deus é bom“. Muitos homens creem nisto. Mas não importa. Minha dúvida é se nossa Justiça é boa. Queira Deus que um dia melhore. É preciso ter fé, irmãos! A não ser assim, será cada um por si e Deus por todos. Um Deus nos acuda.

Anular um júri por isto? Pelamordedeus! Não há como dizer “amém”.

Vamos ao outro caso que abalou o templo de Têmis.

Como você sabe, Têmis é a deusa da Justiça. Muitas de suas estátuas adornam os fóruns e tribunais brasileiros há muitos anos.

Tudo se passou na mesma cidade, o Rio, onde uma agente de trânsito foi condenada pela Justiça cível a indenizar um cidadão, de profissão juiz. Leia aqui a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Sebastião.

Em 2011, numa blitz da Lei Seca, a agente Luciana Tamburini abordou o juiz Fulano de Tal. Segundo se alega, o cidadão de profissão juiz estava num carro particular sem placas e guiava sem carteira de habilitação. Após ser parado, o cidadão-juiz, que não estava ali trabalhando, quis prender a funcionária que estava lá para fazer o seu trabalho. Ele não gostou nada quando a ouviu dizer que “Juiz não é Deus“. Apostasia gravíssima!

A cidadã-agente tentou, então, fazer-se ouvir no templo de Têmis, mas acabou condenada, em reconvenção, a indenizar o cidadão-juiz por seu pecado mortal, uma heresia nunca vista na história da Cristandade, e terá de pagar 5 mil reais ao juiz que se sentiu ofendido com tal expressão. Ai, meu Deus! Minha amiga Flávia Penido, alma caridosa e defensora ferrenha da razão jurídica, promoveu uma vaquinha para a funcionária pública que ou bem servia a Deus ou a Mamon. Vários dizimistas da igreja da igualdade cidadã contribuíram para a salvação das finanças pessoais da agente de trânsito.

Quem conhece as escrituras dos autos jura por Deus que a agente de trânsito nada fez de ilegal. Faça como São Tomé. Leia aqui a decisão da 14ª Câmara Cível do TJ/RJ. Não é à toa que a Justiça brasileira está ao Deus dará. E isso ocorreu na Cidade Maravilhosa, sob os olhos do Cristo Redentor; e não num fim-de-mundo esquecido por Deus, nem lá onde Judas perdeu as botas.

Dizem os jornais que o referido cidadão já constava dos evangelhos (aqui) e (aqui). Ainda cabe recurso ao STJ. A moça rogará a anulação da bula. Seja o que Deus quiser. Num Estado de Direito, somos todos iguais. Não há sacerdotes, beatos, santos nem súditos. Não esqueçamos desta pregação.

No meu juízo final, creio que estava certa a agente. Juiz não é Deus. Mas alguns poucos realmente acham que são. E nesta crença num sacerdócio incompatível com a democracia, quase uma fé cega, integram a mesma irmandade que servidores públicos de outras carreiras, inclusive a minha. Deus me livre de autoridades assim. Valha-nos, Deus. Deus é mais. Deus nos acuda. Deus salve a República.

Adeus. (Fonte: aqui).

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