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Não há como saber se líder ucraniano ficará marcado pelo idealismo ou pela renúncia
Por Eduardo Escorel
Pensando no caso do Brasil, face aos acontecimentos recentes na Ucrânia, alguém imaginaria que o apresentador de tevê Luciano Huck poderia se tornar herói internacional caso não tivesse desistido de ser candidato na eleição de outubro e, vindo a ser eleito presidente, nosso país fosse invadido? Pois é isso, mal comparando, o que ocorreu com Volodymyr Zelensky, comediante, roteirista e diretor, eleito presidente da Ucrânia em abril de 2019, com mais de 70% dos votos no segundo turno. Sua única experiência anterior de governo havia sido, a partir de 2015, na série de televisão satírica Servant of the People, na qual, além de ser o criador e produtor, faz o papel de Vasiliy Petrovich Goloborodko, professor de história que se elege presidente depois que um vídeo dele com uma veemente diatribe contra a corrupção em seu país viraliza nas redes sociais.
Favorecido pelo desencanto geral com os políticos tradicionais, Servant of the People teria convencido muitos de “que Zelensky era sensível às questões reais que os ucranianos enfrentavam”, escreveu Nataliya Roman: “Os episódios finais da série foram lançados poucos dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais ucranianas em 2019. Essa superposição de sua presidência ficcional na televisão com a campanha presidencial em andamento”, segundo Roman, “pode ter levado alguns eleitores a ter dificuldade em separar as características de seu personagem na televisão com as verdadeiras características do ator” (From fiction to reality: Presidential framing in the Ukrainian comedy Servant of the People, European Journal of Communication, primeira publicação em 12 de maio, 2021).
De forma imprevista, Zelensky demonstrou, após quase três anos de governo, notável capacidade de liderança ao ficar em Kiev, capital do país, à frente da resistência à invasão das tropas russas, ao contrário de Viktor Yanukovych, eleito presidente em 2010, que se exilou na Rússia quando foi deposto, em fevereiro de 2014, após manifestações em favor da integração da Ucrânia à União Europeia terem sido reprimidas com extrema violência. A resposta recente de Zelensky à oferta de ajuda, feita pelos Estados Unidos, para ele abandonar a capital já se tornou célebre – “A luta é aqui. Eu preciso de munição, não de carona”, disse.
O risco de vida que Zelensky está correndo é inequívoco: “Ele ficou na capital sob ameaça real de assassinato ou ataque de mísseis. Suas ações e presença definiram sua liderança e seu compromisso com a democracia de seu país. ‘Estamos defendendo nossa independência, nosso Estado, e continuaremos a fazê-lo’, declarou em um vídeo, segurando seu telefone, vestido com roupas militares e transmitindo sua mensagem. ‘Nosso Exército está aqui, nossa sociedade civil está aqui, estamos todos aqui’, disse para a câmera, para o povo da Ucrânia, o povo da Rússia e o mundo inteiro”, escreveu Charles Edel, em 1 de março, no Washington Post.
Quando a invasão da Ucrânia começou e Zelensky surgiu transfigurado de comediante irreverente em herói internacional, de imediato a analogia que me ocorreu foi com Emanuele Bardone, personagem de Vittorio De Sica em Il Generale della Rovere (1959), de Roberto Rossellini.
Vi o filme pela primeira vez em 1960 e creio que, nas décadas seguintes, apenas mais uma vez. Ao rever Il Generale della Rovere agora, ficou evidente que comparar Zelensky com Bardone é descabido em ao menos um aspecto fundamental – o personagem interpretado por De Sica é um trapaceiro que, em 1944, se faz passar por um suposto coronel Grimaldi durante a ocupação alemã do Norte da Itália na Segunda Guerra Mundial. Bardone ostenta simulada influência junto aos alemães para explorar a boa fé das famílias de presos políticos e extorquir dinheiro em troca de ajuda ilusória aos detidos. Essa face do personagem justifica o título trivial do filme no Brasil – De Crápula a Herói – e não guarda nenhuma relação sabida com Zelensky.
Onde a analogia pode subsistir, conforme evoluírem os acontecimentos na Ucrânia, é no fato de Bardone se transfigurar após ter sido preso pelos alemães e concordado em se fazer passar pelo general Della Rovere – oficial da Resistência italiana contra os nazifascistas, Giovanni Braccioforte Della Rovere havia sido abatido a tiros por soldados alemães sem que se soubesse, porém, de sua morte. Levado de Gênova para o cárcere de San Vittore, em Milão, Bardone aceita, a princípio, a missão de se infiltrar entre os presos políticos e colher informações a serem repassadas ao coronel Müller (Hannes Messemer). Mas, sem ter deixado de ser o trapaceiro de sempre, incorpora aos poucos o papel de general Della Rovere e acaba renegando o compromisso com Müller. Durante um dos inúmeros bombardeios noturnos de Milão, efetuados por aviões das forças aéreas britânica e americana, Bardone-Della Rovere consegue controlar o pânico dos presos com essas palavras: “Amigos… quem lhes fala é o general Della Rovere. Calma! Dignidade! Controle! Sejam homens! Demonstrem a esses canalhas que vocês não temem a morte. São eles que devem ter medo! Cada uma das bombas que cai aproxima o fim deles e a nossa libertação.”
Ainda convalescente, após ter sido torturado, a carta da condessa Della Rovere dirigida ao marido, ao ser lida para Bardone, traz o aforisma do general: “Quando você não sabe qual é o caminho do dever, escolha o mais difícil.”
Já recuperado, Bardone-Della Rovere recusa atuar como informante e dizer quem é o preso que o coronel Müller quer identificar. Vai, em seguida, ao encontro dos dez homens que aguardam no pátio da prisão e se dirige ao grupo antes de todos serem fuzilados, ele inclusive: “Senhores! Neste momento supremo, voltemos nosso pensamento às nossas famílias, à pátria, à Majestade do rei. Viva a Itália!” A metamorfose de Bardone “o leva não só a rechaçar o papel de traidor como a desempenhar com todas suas consequências o papel do herói”, comenta Rafael Núñez Florencio (El Héroe Perjuro: Los Casos de Suárez y Juan Carlos I, La Albolafia: Revista de Humanidades y Cultura).
Enquanto escrevo, vão chegando notícias sobre a situação na Ucrânia: Mariupol, cidade portuária, está se aproximando de uma “catástrofe humanitária”, informa The Washington Post; “Estamos sendo destruídos”, declara o prefeito; Vladimir Putin compara as sanções impostas à Rússia a uma “declaração de guerra”. Discussões de diplomatas sobre a possibilidade de formar um governo no exílio têm sido cautelosas porque Zelensky continua a rejeitar toda alternativa que não seja fortalecer o poder militar da Ucrânia para enfrentar os invasores. Na segunda-feira à noite (7/3), 12º dia da guerra, em mensagem de 9’15” divulgada na internet, Zelensky não apenas disse onde estava como manteve sua decisão: “Eu fico aqui. Eu fico em Kiev. Na rua Bankova. Eu não estou me escondendo. Eu não estou me escondendo de ninguém.”
Nesse contexto, o que acontecerá a Zelensky? Ele não parece ter hesitado ao decidir qual era “o caminho do dever” e escolher o mais difícil. Haverá saída honrosa para ele, salvo a vitória ou perder a vida, alternativa trágica sobre a qual já se ouve cogitações?
Não há como saber se Zelensky se tornará um “herói clássico e idealista” que “sabe impor suas próprias posições” ou um “herói da renúncia” – aquele que “luta entre compromissos e negociações” – conforme definido por Hans Magnus Enzensberger e tem em Bardone-Della Rovere um caso emblemático (Sobre a conceituação de heróis, ver Michel Fabreguet et Danièle Henky, Les “héros du retrait” dans les mémoires et les représentations de l’Europe contemporaine, 2020).
Rossellini (1906-77), mestre do neorrealismo italiano no pós-guerra, influenciou o cinema moderno surgido na década de 1960. Dirigiu cerca de cinquenta filmes a partir de 1936, alguns considerados obras-primas incontestáveis. Quanto a Il Generale della Rovere, renegou o filme em uma entrevista de 1970, dizendo considerar a “dramatização e busca de efeitos no cinema falsificações da realidade”. Declarou também que é um “filme construído, um filme profissional, e eu não faço filmes profissionais, só filmes que podemos chamar de experimentais” .(em Peter Bondanella, The films of Roberto Rossellini, Cambridge University Press, 1993).
De experimental Il Generale della Rovere, de fato, não tem nada. Revisto hoje, incomodam tanto o artificialismo dos estúdios de Cinecittà, onde foi quase todo filmado em apenas quatro semanas, quanto certa rigidez do elenco secundário. Seus 127’ (duração da cópia com legendas em inglês disponível no YouTube) resultam excessivos. Divididos ao meio em partes estanques que chegam a dar a impressão de formarem dois filmes autônomos, ambas são sustentadas pela personalidade de Vittorio De Sica. Registre-se, porém, que o filme foi um grande sucesso artístico e comercial. Ganhou o Leão de Ouro ex aequo com A Grande Guerra, de Mario Monicelli, em 1959, na 20ª Mostra Internacional de Arte Cinematográfica de Veneza, onde recebeu também a láurea da Organização Católica Internacional do Cinema (OCIC). Na bilheteria rendeu mais de quarenta vezes o resultado de Viagem na Itália (1953), reverenciado desde sempre por cinéfilos admiradores dos seus filmes.
O roteiro de Il Generale della Rovere, creditado a Sergio Amidei, Diego Fabbri e Indro Montanelli, com colaboração de Piero Zuffi e Rossellini, tem origem na história de Montanelli, em parte autobiográfica, publicada na revista Il Mercurio, em dezembro de 1945, com o título Pace all’anima sua (Paz na sua alma). Desenvolvido o personagem do suposto Della Rovere, o relato voltou a ser publicado com oito páginas, em 1950, na revista Il Borghese, e no mesmo ano, na coleção Pantheon minore da editora Longanesi. Transitando entre realidade e ficção, Il Generale della Rovere se torna atual neste nosso mundo em que celebridades televisivas cruzam a fronteira entre a fantasia do espetáculo e o árduo exercício da política. Alguns podem até se mostrar à altura desse desafio. Outros não passam de agentes do atraso, de preconceitos e da ignorância, pondo em risco, com mentiras e falsificações, a sobrevivência da democracia. - (Fonte: Revista Piauí - Aqui).
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