domingo, 27 de março de 2022

INDICADOS AO OSCAR: (QUASE) O QUE RESTA PARA CITAR


Drive My Car

Por Carlos Alberto Mattos

“Temos que seguir vivendo, Tio Vanya” – é a pura e simples frase final de Sonya na peça de Tchekhov. É também como termina (ou quase) Drive My Car, um dos concorrentes ao Globo de Ouro de filme estrangeiro. Seguir vivendo apesar dos sofrimentos é como manter o carrinho vermelho de Yusuke em constante movimento pelas ruas e estradas do Japão, entre Tóquio, Hiroshima e Hokkaido.

O interior do carro é o refúgio perfeito para Yusuke, ator e diretor de teatro famoso, principalmente depois que sua mulher, uma roteirista de televisão, morre subitamente. Ela deixou uma versão gravada de Tio Vanya com sua voz e os espaços vazios para o marido praticar as suas falas no papel-título da peça. Yusuke ouve a fita obsessivamente enquanto dirige. Por isso, dois anos depois, ao ser convidado para uma residência artística em Hiroshima, ele não aceita bem a destinação obrigatória de uma motorista para guiar seu carro.

Baseado em conto de Haruki Murakami, o filme reedita a habitual construção multicamadas do escritor. No prólogo que dura 40 minutos, assistimos à mania do casal de fazer sexo enquanto ela inventa histórias para seus roteiros da TV. Vemos também que Yusuke releva a traição da mulher com um jovem ator, que reaparecerá no elenco da montagem de Tio Vanya em Hiroshima.

Entre os ensaios da peça e os longos trajetos no carro com a motorista Misaki, Yusuke vai gradualmente adquirindo a consciência de que sua mulher não era a única a ser duas pessoas ao mesmo tempo. Todos nós, afinal, temos pelo menos dois lados que se dão (ou não) a conhecer em diferentes contextos da vida. As aproximações com o ex-amante de sua mulher e com Misaki trazem à tona segredos, culpas e inclinações que influem no modo de ser de cada um.

A compreensão mútua pode se dar mesmo à falta de um “idioma” comum. A montagem de Tio Vanya é preparada com um elenco multilíngue, em que cada ator se expressa no seu idioma, incluindo uma Sonya muda usando a linguagem de sinais.

Durante quase três horas, o diretor Ryûsuke Hamaguchi conduz esse pequeno emaranhado de histórias com bastante clareza e sem nenhuma pressa. Combina o filme de estrada com o “filme de teatro” e o drama psicológico num todo coeso e despido de efeitos. O diálogo sutil entre vida e peça me trouxe à lembrança Moscou, de Eduardo Coutinho, criado em torno de As Três Irmãs, também de Tchekhov. Ambos os filmes concluíram lindamente sua exposição com dicções inusitadas para as linhas finais das respectivas peças. A voz de Coutinho em um; os sinais de uma atriz áfona em outro. - (Aqui).

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A Mão De Deus

Paolo Sorrentino mais uma vez emula Fellini em A MÃO DE DEUS, o seu “Amarcord”. Lá estão o engarrafamento do início de “Oito e Meio”, as mulheres carnudas, a fuga da província para fazer cinema na capital, como em “Roma”. Mas o filme me agradou em cheio. Muito humor politicamente incorreto, valendo-se da época (anos 1980), uma ternura pelos personagens mais caricatos. Enfim, o sabor das velhas comédias familiares italianas que há tempos eu não via. Podia ser menos “mensageiro” na sequência com Antonio Capuano no final, mas, porca miseria, o filme é una piccola bellezza.

>> A Mão de Deus está na Netflix.



Não Olhe Para Cima

Precisamos conversar sobre NÃO OLHE PARA CIMA. Parte da crítica vem tratando o hit da Netflix como se estivesse pisando em ovos. Afinal, não é um filme sutil, nem especialmente “inteligente”, nem artístico como era “Melancolia”, por exemplo, sobre tema semelhante. Mas, puxa vida, é uma sátira devastadora à mentalidade dominante em países como os EUA de Trump e o Brasil de Bestanaro. E não fica só nas figuras de proa. Demole a plebe negacionista, a banalização de tudo pela mídia e as redes sociais, o estrelato tecnológico e também o científico. É a radiografia bem contrastada da imbecilidade que grassa no mundo das fake news e do fascismo popular hoje em voga, aquele que usa o termo “liberdade” como pretexto e o apelo às armas como fetiche. Conhecemos bem tudo isso, mas dá gosto ver as coisas desnaturalizadas e concentradas num filme. Quer se divertir com o fim do mundo? Esse é o seu programa. Só repito aqui o que disse o colega Luiz Zanin: “O problema de ‘Não Olhe para Cima’ é que os personagens do filme são menos caricatos que os da vida real.”



O Mundo De Glória 

Robert Guédiguian é um de meus cineastas favoritos. Alguém que escreve sucessivos filmes para sua pequena “família” cinematográfica de Marselha. Sempre personagens proletários ou de classe média baixa às voltas com a sobrevivência material e espiritual numa cidade áspera e violenta, mas que eles amam. GLORIA MUNDI é assim: uma faxineira, um ex-presidiário autor de haicais, um motorista de ônibus e um de Uber, um casal de arrivistas – todos eles lidando com suas fraquezas e contradições enquanto o bebê Gloria se soma à família. A música de Ravel embala a ternura e a vivacidade com que o cineasta os trata, entre o naturalismo e um esboço de poesia. Talvez role um certo maniqueísmo no retrato do casalzinho sem escrúpulos, mas o filme é uma pequena joia.  -  (Por Carlos Alberto Mattos, no Blog do Mattos - Aqui).

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