quinta-feira, 31 de março de 2022

FESTIVAL É TUDO VERDADE 2022: A HISTÓRIA DO OLHAR E A HISTÓRIA DO CINEMA: UMA NOVA GERAÇÃO

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Estórias de olhar e filmar


Por Carlos Alberto Mattos

O historiador do cinema e cineasta irlandês Mark Cousins é a estrela das sessões de abertura do Festival É Tudo Verdade deste ano com dois filmes. Em São Paulo, nesta quinta, com A História do Olhar. No Rio, na sexta, com A História do Cinema: Uma Nova Geração. Em ambos os títulos originais, há uma sutileza: Cousins usa o termo “story” em vez de “history”, o que lhe abre a perspectiva muito pessoal típica de seus trabalhos. Ele não pretende contar a História, mas sua estória do cinema. 

O título traduzido de A História do Olhar (The Story of Looking) sugere uma dessas novas investidas de recorte historiográfico, mas não é bem isso. Mark Cousins aproveita a ocasião de uma operação de catarata para refletir sobre a história do seu próprio olhar – e de como ele imagina que esse fenômeno se desenvolve nos vários estágios da vida de uma pessoa.

Existem dois antecedentes curiosos no Brasil. Em 1995, Arthur Omar apresentou a instalação Máquina Zero, construída com o registro de um transplante de córnea (do roteirista David França Mendes) e o acervo visual do seu computador. No ano 2000, o mesmo Arthur Omar realizou Notas do Céu e do Inferno, um videodiário sobre a virada do milênio a partir de uma cirurgia sofrida por ele próprio, do seu cotidiano doméstico e de reflexões sobre sua obra.

Cousins foi por caminho diferente, mas análogo. Reuniu muitas imagens filmadas por ele a cenas de filmes, pinturas, tuítes de amigos, citações literárias e ruminações suas numa cama, sem camisa, despenteado, mordendo muito os lábios entre uma fala e outra.

Em lockdown devido à pandemia, ele rumina sobre essa história do ver, que começa pelos borrões semi-inconscientes dos bebês, passando pela consciência do movimento, seguida pelo contato visual, a experimentação das cores, da luz, depois dos corpos e do próprio corpo, o voyeurismo, e por aí afora. Projeta-se para as ruas de Edimburgo (onde mora) e para o futuro, quando se vê idoso, com voz quebrada, ainda ponderando sobre o quanto seus olhos já viram.

Ver é uma fábula, disse Cao Guimarães. Ver é mais que tudo imaginar, pensa Cousins, já que as imagens fluem do cérebro para os olhos, e não o contrário. Ver é lidar com a memória. A um passo disso está o fetichismo do diretor, por exemplo, ao cultuar  um copo em que Jane Russell um dia tomou chá na sua casa, certo de que a lembrança e o objeto, juntos, lhe fazem “ver” de novo a cena. Ou discordando de Ray Charles, que agradecia por não precisar tolerar tanta coisa diante dos olhos.

O texto é muito bonito e poético, baseado no que Cousins escreveu em seu livro homônimo de 2017. O filme, portanto, é sua ilustração, precipitada pela cirurgia. Uma vida inteira de olhar para si e para o mundo. Nesse filme, Cousins nos obriga a olhar para ele durante boa parte do tempo, sem que nada no seu corpo ordinário nos encha os olhos. Mas podemos perceber que, além de saber olhar, ele nunca tira seus tênis, nem mesmo para operar o olho ou para boiar peladão num lago.

Cousins não se dá a ver em A História do Cinema: Uma Nova Geração (The Story of Film: A New Generation), mas sua voz sussurrada e pausada embala os 160 minutos do filme. Aqui ele se debruça sobre a produção de longas-metragens do século XXI (até 2020) para destacar o que acha que merece, em vários segmentos. Enfim, uma longa e cativante palestra ilustrada sobre inovações recentes.

Comédias, filmes de ação, musicais, terror, slow films (onde aparece a única citação de obra brasileira, Limite, como um precursor do slow cinema), filmes sobre corpos e sobre o cruzamento de limiares, documentários, filmes irrealistas… Cada segmento é uma seleção de cenas, nas quais o diretor contextualiza brevemente a trama, chama atenção para detalhes do plano, faz eventuais remissões ao passado e comenta as sensações provocadas pelo complexo audiovisual.

Suas escolhas são às vezes idiossincráticas, mas não precisamos concordar com elas. Afinal, estamos sendo convidados a ver como ele vê. Em compensação, a curva do compasso de Cousins é bastante ampla, abrangendo filmes indianos, australianos, tunisianos, gregos, romenos, japoneses, chilenos, estoniano, ugandense, etc. Alguns relativamente obscuros, mas que ele torna interessantes pelo comentário. Sugiro aos cinéfilos levarem um caderninho para anotar as dicas.

De Leos Carax a Radu Jude, do Coringa a Parasita, de Lazzaro Felice aos documentários de Joshua Oppenheimer, são diversificados os exemplos do que o historiador acha que está “fazendo história” hoje. Por força da síntese – e Cousins se obriga a ilustrar toda a sua exposição com cenas dos filmes – a prioridade recai sobre momentos extravagantes, deixando de lado experimentações mais sutis.

As mudanças tecnológicas e no sistema de acesso aos filmes ocupa um trecho considerável do documentário, inclusive falando sobre o que não pode mostrar: a inovação de Godard no 3D (em Adeus à Linguagem) e a experiência de Tsai Ming-Liang com realidade virtual em The Deserted. Por fim, Cousins cita alguns filmes que, segundo ele, apontaram o dedo para quem somos como indivíduos, família e cidadãos políticos.

Enquanto historiografia in progress, voltada para o presente, esse documentário tem sua dose de ousadia. Além disso, é quase sempre fascinante e sinaliza que o cinema, mais uma vez, está longe de morrer.  -  (Fonte: Blog Carmattos - Aqui).

>> A História do Olhar abre o festival em São Paulo e terá as seguintes exibições:
31/03 – 20h: Espaço Itaú de Cinema Augusta (SP)
31/03 – 21h: Plataforma É Tudo Verdade Play – Limite de 1500 Visionamentos
10/04 – 14h: Instituto Moreira Salles (RJ)

>> A História do Cinema: Uma Nova Geração abre o festival no Rio e terá as seguintes exibições:
01/04 – 19h: Espaço Itaú de Cinema Botafogo (RJ)
01/04 – 20h: Espaço Itaú de Cinema Augusta (SP)
01/04 – 21h: Plataforma É Tudo Verdade Play – Limite de 1500 Visionamentos

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