Durante o auge da guerra híbrida brasileira, cujo desfecho foi o golpe de 2016 e o mergulho do País no caos com método das operações psicológicas das Forças Armadas (em particular do Exército), falava-se muito que estava sendo chocado o ovo da serpente: o açodamento de um Brasil profundo (de uma massa até então envergonhada da sua própria ignorância e boçalidade) para engrossar o caldo das camisetas amarelas da CBF que exigiam de tudo – de “intervenção militar constitucional” ao assassinato da presidenta Dilma. Seja por quem fosse ou por qual doença fosse.
Mas além de ovos e serpentes, havia também a fábula do sapo e do escorpião como imagem que explicava o porquê de a grande mídia ter se transformado num verdadeiro partido político, incitando o Brasil profundo a sair de suas tocas. Apesar de estar faturando muito com o boom econômico da classe C e megaeventos como Jogos Panamericanos, Copa do Mundo e Olimpíadas.
Para aqueles que não conhecem a fábula, é sobre um escorpião que pede a um sapo que o leve nas suas costas através de um rio. Temeroso de ser picado no meio do caminho, o sapo se recusa. Mas, o escorpião argumenta que jamais faria isso porque se afogaria junto com ele. Convencido, o sapo carrega o escorpião nas suas costas. Porém, no meio do caminho, o sapo sente a ferroada, condenando ambos à morte. “Por que fez isso?”, pergunta o sapo atônito. E o escorpião responde de que essa é a sua natureza, e nada poderia fazer mudar o seu destino.
O escorpião seria a grande mídia que, mesmo surfando no neodesenvolvimentismo dos governos petistas, partiu para a aventura do golpe político e implosão econômica e política – cujo custo da conta está batendo agora nas portas dos grupos midiáticos.
Desde o início da crise sanitária da pandemia no País, nunca o escorpião, digo, a grande mídia, falou tanto em Ciência, compaixão, empatia, defesa da racionalidade diante de um cenário sombrio de boçalidade e caos diligentemente atiçado pela engenharia do caos do atual Governo através da guerra semiótica – bombas semióticas diárias, estratégias de guerra criptografada, estímulo à judicialização da pandemia etc.
Todavia... é da natureza do escorpião ferroar. Bastou o presidente peronista do nosso país vizinho, Alberto Fernández (derrotou o “campeão branco” neoliberal argentino Maurício Macri nas eleições presidenciais), vir às redes sociais anunciar que testou positivo para Covid-19 para despertar o espírito aracnídeo adormecido pelo discurso supostamente “humanista namastê”.
A arma gramatical
E a picada veio através de uma das principais armas do seu arsenal semiótico: o adjunto adverbial de concessão (apesar de, embora, mesmo que etc.) nas suas manchetes e primeiros parágrafos das matérias, sejam explícitos ou ocultos. Observe abaixo alguns exemplos:
1. Zero Hora: “Presidente argentino testa positivo para covid-19, após ter sido vacinado”.
2. Correio Braziliense: “Presidente argentino testa positivo para covid-19, após ter sido vacinado”
3. UOL: “Vacinado com Sputnik V, presidente argentino é infectado por coronavírus”
4. Portal G1 (Globo): “Mesmo vacinado, Álberto Fernández, presidente da Argentina, testa positivo para Covid-19 em exame rápido”
5. R7: “Presidente argentino anuncia teste positivo para covid-19 após vacina”.
6. SBTNews: “Febril e isolado, Alberto Fernández testa positivo para covid-19 - Presidente argentino informou que está bem e isolado; ele já foi vacinado”
7. Jornal da Cultura (TV Cultura): O presidente da Argentina, Alberto Fernández, testou positivo para Covid-19 quase três meses depois de ser vacinado.
8. Band News: “Recebeu primeira dose da Sputnik: Alberto Fernández testa positivo para Covid-19”.
Em uníssono, toda a grande mídia dá o sentido adverbial de concessão, seja oculto ou explícito: “Mesmo” ou “apesar” de ter sido vacinado, o presidente argentino foi “contaminado e isolado”, num tom mais impactante dado pelo SBT.
O sentido metonímico das manchetes é evidente: a vacina não foi suficiente para impedir a “contaminação” e o “isolamento” (expressões assustadoras), de repente colocando em suspeição a imunização.
Mas... espera aí! O discurso midiático não está sendo o do “quanto mais vacinas melhor”? E que não interessa sua “procedência” ou “ideologia”, desde que aprovada pelos órgãos de regulação sanitária?
É claro que se continuarmos a ler essas matérias, os textos posteriores com atualizações ou mesmos assistirmos aos vídeos, o sentido metonímico dado pela manchete e primeiros parágrafos desaparece: relatam que o Instituto Gamaleya informa que o imunizante tem 91,6% de eficácia em casos sintomáticos de Covid-19. Isto é, se infectado, a pessoa imunizada vai apresentar sintomas amenizados.
O escorpião midiático tem dois grandes motivos para ter despertado sua natureza aracnídea, mandando às favas Ciência, empatia etc.: temos uma vacina russa que foi aplicada num presidente de “esquerda” que ameaça a hegemonia neoliberal no continente.
Um conjunto de propriedades irresistíveis: de repente, o discurso da ciência foi substituído pela politização da pandemia – principal crítica do jornalismo corporativo contra Bolsonaro e governadores como João Doria Jr. que transforma em show de marketing político cada chegada de imunizantes no aeroporto.
É claro que nas horas posteriores, essa ferroada foi diluída pelas falas de cientistas alertando que a vacinação deve também ser acompanhada por medidas de distanciamento social e uso de máscaras, diante das novas cepas que estão surgindo. Mas, os imunizantes seriam decisivos para amenizar os sintomas do vírus.
Porém, o impacto já foi alcançado: jornalismo metonímico visa a percepção e não a cognição.
Em um universo alternativo
Estamos diante de um pequeno vislumbre do que teria ocorrido de não fosse Bolsonaro, mas Fernando Haddad (PT) o vencedor das eleições em 2018. Pense num universo alternativo com a pandemia chegando a um país com um governo de “esquerda” – ou, pelo menos, que pense numa agenda diferente da ortodoxia neoliberal do Big Money.
Certamente, milhares de vidas seriam poupadas com uma política de Governo que seguiria a Ciência e as orientações da OMS. A compra de imunizantes e logística da vacinação já teria sido organizada no ano passado e hoje teríamos um cenário sob controle.
E também é certo que o contra-ataque viria: a grande mídia politizaria a pandemia, a aquisição de vacinas e o programa nacional de imunização. Faria a narrativa oposta da atual de que quem politiza a pandemia é o Bolsonaro negacionista.
Imagine em primeiro lugar uma CPI no Congresso para apurar denúncias de corrupção nas compras de insumos para a fabricação nacional dos imunizantes. Imagine também Ministério Público e Judiciário e Polícia Federal mobilizados, colocando policiais nas ruas para cumprir mandatos de busca e apreensão de lotes de vacinas na Fiocruz.
Contaminações, ou mesmo mortes, de pessoas já vacinadas seriam repercutidas de formas adverbias e metonímicas na grande mídia. Escândalo em torno de vacinas sem efeito. Crise na Anvisa. Outro “quadrilhão do PT” se locupletando com aquisição de insumos para a Saúde – seringas, p.ex.
O SUS seria demonizado pela sua ineficiência e núcleo de corrupção. Privatização do sistema de saúde e do programa de imunização seriam exigências de analistas como Miriam Leitão – afinal, a iniciativa privada por si só é mais eficiente do que um governo corrupto.
Mais uma vez, o escorpião picaria as costas do sapo. Porém, milhares de vidas seriam salvas. - (Fonte: Cinegnose - Aqui).
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