(Colagem: GGN).
Isaías Caminha nosso contemporâneo ou Lima Barreto o brasileiro imprescindível
Por Franklin Frederick
«(..) não sou republicano, não sou socialista, não sou anarquista, não sou nada: tenho implicâncias».
«Eu me atrevo a lembrar (…) que a grande força da humanidade é a solidariedade».
Lima Barreto, Impressões de Leitura
Recordações do escrivão Isaías Caminha, primeiro romance de Lima Barreto, foi publicado em Portugal em 1909, portanto há 110 anos. Devido ao retrocesso cultural, social e político vertiginoso por que passa o Brasil desde que as forças mais reacionárias do país, com o apoio da direita internacional sediada nos EUA, começaram a se manifestar para derrubar o governo da Presidente Dilma Rousseff, este livro é agora tão atual – e necessário – quando de sua publicação. Isaías Caminha é nosso contemporâneo e Lima Barreto um autor imprescindível para a compreensão de nosso tempo.
Devemos a Francisco de Assis Barbosa o resgate da obra de Lima Barreto, que após a sua morte caíra no esquecimento, bem como a primeira biografia deste autor, publicada em 1952. Em seu prefácio à edição de Recordações pela Editora Brasiliense em 1961, ele cita uma carta de Lima Barreto na qual o escritor esclarece quais foram suas intenção ao escrever este romance: mostrar que «um rapaz nas condições do Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas batido, esmagado, prensado pelo preconceito.»
No próprio livro, o personagem Isaías Caminha, ‘ autor’ das Recordações, declara:
« (…) não é a ambição literária que me move ao procurar esse dom misterioso para animar e fazer viver estas pálidas Recordações. Com elas, queria modificar a opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo, a não se encherem de hostilidade e má vontade quando encontrarem na vida um rapaz como eu (…)».
«Um rapaz como eu», ou seja, como Lima Barreto, negro e pobre. O romance tem muito da vida do próprio autor e retrata, sobretudo na primeira parte, a dolorosa descoberta do racismo, ferida sempre aberta. Diversos episódios narrados no livro mostram como Isaías Caminha, vindo do interior, onde ainda se encontrava relativamente protegido, se depara na cidade grande com a realidade do significado, para uma sociedade hierárquica rigidamente dividida em cores e classes, da cor de sua pele. São passagens extremamente doloras, descrevendo primeiro a surpresa e o espanto face a esta absurda realidade; e em seguida a raiva, a dor, um profundo sentimento de impotência diante da estupidez generalizada e uma triste e inevitável resignação. Um exemplo é o episódio em que Isaías Caminha é considerado pela polícia como suspeito de um roubo apenas devido a sua cor. Ao reagir com indignação e fúria às insinuações da polícia, acaba mesmo preso. Outro exemplo é o episódio que relata o encontro de Isaías Caminha com alguém que se surpreende de ele, um negro, ser um estudante:
«Para ele, como para toda a gente mais ou menos letrada do Brasil, os homens e as mulheres do meu nascimento são todos iguais, mais iguais ainda que os cães de suas chácaras. Os homens são uns malandros, planistas, parlapatões quando aprendem alguma coisa, fósforos dos politicões; as mulheres (a noção aqui é mais simples) são naturalmente fêmeas».
Como não poderia deixar de ser, Lima Barreto também escreveu sobre a realidade da exploração ainda mais brutal, numa sociedade racista, machista e patriarcal, das mulheres negras. Denunciar esta realidade foi uma preocupação de toda a sua vida, principalmente através do romance Clara dos Anjos, no qual trabalhou incessantemente até pouco antes de morrer.
E no Brasil de hoje, 110 anos depois, quantos Isaías, quantas Claras continuam a sofrem cotidianamente as mesmas humilhações denunciadas por Lima Barreto? Quanta estupidez acumulada em nossa sociedade desde então, quanta ‘má vontade’ e ‘ hostilidade’ crescente direcionadas contra os iguais de Lima Barreto? Mais do que nunca precisamos dele para, talvez, fazer nossa sociedade ‘pensar de outro modo’. E finalmente ver – e mudar – nossa realidade.
Durante toda a sua vida Lima Barreto enfrentou o problema fundamental da negação, pela sociedade de sua época, do racismo que ele denunciava. Muitas vezes o criticaram por ser ‘sensível’ demais à questão da cor da pele, como se o problema existe em sua imaginação e não na realidade em torno dele – e ainda em torno de nós. Lima Barreto tomou para sí em sua literatura a enorme tarefa de mostrar e denunciar a realidade óbvia, mas paradoxalmente oculta, do racismo.
Em um texto coletado em Impressões de Leitura Lima Barreto alude a esta sua visão da literatura:
« Se a função normal da literatura é, dizendo o que os simples fatos não dizem, revelar, para ligar umas almas às outras, nunca ela foi tão útil como é agora no Brasil.»
Mas os «simples fatos» já dizem muito. Dizem, por exemplo, o óbvio. Se não o fazem, o problema não são os fatos, mas a negação deles. E a importância fundamental da literatura de Lima Barreto é a de tentar, revelando o que os simples fatos não dizem e denunciando a incapacidade de uma sociedade de ver a si mesma, ‘ligar umas almas às outras’, recuperar a dimensão da solidariedade. Por isso, em Recordações de Isaías Caminha, Lima Barreto não mostra apenas a dor do próprio Isaías ao descobrir a realidade do racismo, mas revela também a descoberta por Isaías da dor do outro. Creio que o episódio central que relata esta descoberta é o de Isaías na delegacia, quando ele é testemunha da briga entre «duas mulheres do povo, desgrenhadas, rotas, que dois soldados, com esforço, mantinham separadas». A briga é por uma galinha que uma acusa a outra de ter roubado. Lima então escreve sobre uma delas:
«A rapariga falava desigualmente (…) cheia de uma grande dor, bem distante da pueril querela que as provocava (…) (as palavras) vinham das profundezas do seu ser, das longínquas partes que guardam uma inconsciente memória do passado, para manifestarem o desespero daquela vida, os sofrimentos milenares que a natureza lhe fazia sofrer e os homens conseguiram aumentar. Senti-me convencido de sua imensa emoção; ela penetrava-me tão fundo que despertava nas minhas células já esquecidas a memória enfraquecida desses sofrimentos contínuos que me pareciam eternos; e achando-os por debaixo das noções livrescas, por debaixo da palavra articulada, no fundo da minha organização, espantei-me, aterrei-me, tive desesperos e cristalizei uma angústia que me andava esparsa».
É na delegacia, foco por excelência da violência permitida pelo Estado, que Isaías Caminha encontra o racismo e a dor do outro, tão oprimido quanto ele, e descobre « os sofrimentos milenares» que «os homens conseguiram aumentar». Esta descoberta cristaliza em Isaías uma «angústia» que «andava esparsa». É pelo reconhecimento de sua dor junto e ao lado da dor do outro, da dor de uma mulher, que Isaías revela a sua profunda humanidade. Pois reconhecer e sentir a dor do outro, muitas vezes apesar de nossa própria dor, é o que melhor revela nossa humanidade. E a solidariedade, como escreveu Lima Barreto em uma das citações que abrem este texto, ‘é a grande força da humanidade’.
O papel da imprensa na manutenção da classe dominante brasileira no poder é outro tema de Recordações do escrivão Isaías Caminha. Em algumas passagens deste romance, Lima Barreto parece escrever sobre acontecimentos de nosso tempo. Isaías Caminha vai trabalhar num jornal, a que Lima Barreto chama de «O Globo» (!), onde aprende mais e mais sobre a realidade social e política do Brasil, como Lima mostra nesse diálogo extremamente atual:
– «Você exagera – objetou Leiva – O jornal já prestou serviços.
– Decerto…não nego… mas quando era manifestação individual, quando não era coisa que desse lucro; hoje, é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também… É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força (…) São grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinadas a lhes dar o domínio sobre as massas (…)».
Lima Barreto já previra, há mais de 100 anos, como esse «poder vago, sutil, impessoal», viria a agir em parceria com a Operação Lava Jato para derrubar um governo eleito e restaurar o poder oligárquico no Brasil:
«Daí a receptividade do público por aquela espécie de jornal, com descomposturas diárias, pondo abaixo um grande por dia, abrindo caminho, dando esperanças diárias aos desejosos, aos descontentes, aos aborrecidos. (..) o suborno era patente; a proteção às negociatas da gente do governo não sofria ataques; não demoliam, conservavam, escoravam os que dominavam».
E, no que parece ser uma profecia sobre o futuro conluio da imprensa com os golpistas, Lima Barreto assim relata a atuação de «O Globo» (!), a gazeta – jornal -onde Isaías trabalhava, na criação de um ambiente propício ao golpe:
«As vociferações da minha gazeta tinham produzido o necessário resultado. Aquele repetir diário em longos artigos solenes de que o governo era desonesto (…) que se devia correr a chicote tais administradores, tudo isso tinha-se encrostado nos espíritos e a irritação alastrava com a violência de uma epidemia».
Ninguém hoje descreveu com mais clareza o papel do ‘Globo’ – à frente de outros veículos da grande imprensa – na articulação que conduziu ao golpe de estado que derrubou a Presidente Dilma. E com uma presciência impressionante, Lima Barreto conseguiu retratar também com precisão o clima que se instalou no Brasil pós golpe:
«Todos eles viviam agora calmos, sorridentes, satisfeitos, convencidos de que tinham moralizado a República».
E, surpreendentemente, Lima Barreto nos deixou ainda uma imagem perfeita do Governo Bolsonaro:
«Supondo, por absurdo, que as cousas continuem no pé em que estão, a inabilidade, os crimes, as concussões, a falta de escrúpulos de toda a ordem dos nossos dirigentes(…) tudo isso leva a prever para nossa organização política, e isto num lapso de tempo bem curto, um desastre irremediável».
Lima Barreto também não se enganaria com as manobras da direita internacional e do grande capital em fomentar um certo «patriotismo», como o exaltado nos discursos do atual Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, para tomar o poder, pois ele mesmo, pela voz de Isaías Caminha, já denunciara tal falácia:
«O senhor não vê que a pátria não é mais do que a exploração de uma minoria, ligada entre si, estreitamente ligada, em virtude dessa mesma exploração, e que domina fazendo crer à massa que trabalha para a felicidade dela? O público ainda não entrou nos mistérios da religião da pátria…Ah! quando entrar!»
Sobre a culpabilização dos imigrantes pela situação econômica desastrosa causada pelo neoliberalismo, Lima Barreto foi contundente:
«O mal estar da nossa vida não vem da massa geral de estrangeiros, tão necessitada como a maioria dos nacionais; vem da injustiça das relações econômicas entre pobres e ricos» (Sátiras e subversões).
Lima Barreto também tinha muita clareza sobre o papel dos EUA na criação e manutenção desta direita internacional que tenta impor administrações neocoloniais aos países da América do Sul e antecipou o que Lula, Hugo Chávez, Fidel Castro e Nestor Kirchner viriam a fazer pela união da América do Sul:
«Não dou cinquenta anos para que todos os países da América do Sul, Central e México se coliguem a fim de acabar de vez com essa atual opressão disfarçada dos `yankees´ sobre todos nós; e que cada vez mais se torna intolerável». Não tenhamos dúvidas: Lima Barreto é o nosso mais necessário aliado, o imprescindível companheiro de luta, luminosa consciência do Brasil. - (Fonte: Aqui).
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