quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

O LUTO PARECE NÃO TER FIM

Artigo publicado no dia 14, quando já se havia verificado a chacina de 13 brasileiros num deplorável episódio policial urbano, além de outras barbaridades e calamidades plenamente evitáveis. Ressaltam, neste espaço, a angústia incontida de frei Boff face à perda, décadas atrás, de um ente querido e - voltando ao amargo cotidiano Brasil - o consolo de não nos depararmos com fatos ocorridos após o dia 14.
(Ilustração: Blog do Miro)
O luto parece não ter fim
Por Leonardo Boff, em seu blog
O Brasil parece tomado por um luto que nunca termina. As pessoas andam acabrunhadas por causa do desemprego e pelas reformas conservadoras que o novo governo pretende introduzir, tirando direitos dos trabalhadores e atacando diretamente várias políticas sociais que beneficiavam os mais destituídos. Estudantes universitários que viviam com bolsas do governo tiveram que interromper seus estudos. Reformas na educação nos remetem à fase anterior ao Iluminismo, em alguns pontos, à Idade Média. Uma sombra escura pesa sobre o rosto de milhões de compatriotas.
Parece que cada dia acontece algo sinistro. Sem dúvida o grande luto nacional foi o criminoso desastre de Bromadinho-MG, em que, com o rompimento da barragem da mineradora Vale, foram dizimadas centenas de vidas em meio a um tsunami de resíduos de metais pesados, lama e água, poluindo o rio por dezenas de quilômetros. Luto foi a morte do conhecido jornalista Ricardo Boechat com a queda de um helicóptero. Luto foi a morte da grande artista, cantora e diretora Bibi Ferreira. E outros que caberiam ser citados.
Abordamos o tema do luto há pouco tempo atrás. Mas a situação é assim grave que nos convida dar-lhe um cuidado especial. Ao invés de utilizar a abundante literatura atual existente sobre o tema, permito-me relatar uma experiência pessoal que aclara melhor a necessidade de cuidar do luto.
Em 1981 perdi uma irmã com a qual tinha especial afinidade. Era a última das irmãs de 11 irmãos. Como professora, por volta das 10 horas, diante dos alunos, deu um imenso brado e caiu morta. Misteriosamente, aos 33 anos, rompera-se-lhe a aorta por uma doença rara.
Todos da família vindos de várias partes do país, ficamos desorientados pelo choque fatal. Choramos copiosas lágrimas. Passamos dois dias vendo fotos e recordando, pesarosos, fatos engraçados da vida da irmãzinha querida.
Eles puderam cuidar do luto e da perda. Eu tive que partir logo após para o Chile, onde tinha palestras para franciscanos de todo o Cone Sul. Fui com o coração partido. Cada palestra era um exercício de autosuperação. Do Chile emendei para a Itália onde devia falar para religiosas de toda uma congregação.
A perda da irmã querida me atormentava como algo absurdo e insuportável. Comecei a desmaiar duas a três vezes ao dia sem uma razão física manifesta. Tive que ser levado ao médico. Contei-lhe o drama que estava passando. Ele logo intuiu e disse:
Você não enterrou ainda sua irmã nem guardou o luto necessário; enquanto não a sepultar e cuidar de seu luto, você não melhorará; algo de você morreu com ela e precisa ser ressuscitado”.
Cancelei todos os demais programas. No silêncio e na oração cuidei do luto. Restaurado, num restaurante, enquanto lembrávamos da irmã querida, meu irmão também teólogo, Clodovis, e eu escrevemos num guardanapo de papel esta pequena reflexão.
“Foram trinta e três anos, como os anos da idade de Jesus.
Anos de muito trabalho e sofrimento,
Mas também de muito fruto.
Ela carregava a dor dos outros
Em seu próprio coração, como resgate.
Era límpida como a fonte da montanha,
Amável e terna como a flor do campo.
Teceu, ponto por ponto e no silêncio,
Um brocado precioso.
Deixou dois pequenos, robustos e belos.
E um marido, cheio de orgulho dela.
Feliz você, Cláudia, pois o Senhor voltando.
Te encontrou de pé, no trabalho
Lâmpada acesa.
Foi então que caíste em seu regaço,
Para o abraço infinito da paz”.
Entre seus papéis encontramos a frase: ”Há sempre um sentido de Deus em todos os eventos humanos: importa descobri-lo”. Integramos o luto mas ficou uma ferida que nunca se fecha. Até hoje estamos procurando o sentido daquela frase misteriosa. Um dia se revelará.
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(Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu: O cuidado necessário, Vozes 2012).

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