sábado, 24 de novembro de 2018

DA POLÍTICA E DO DINHEIRO NA POLÍTICA

(Tiago Hoisel).
Da Política e do Dinheiro na Política 
Por Samuel Pinheiro Guimarães 
“O desequilíbrio entre ricos e pobres é a mais antiga e a mais fatal doença das Repúblicas” Plutarco (46-127 d.C.)
O sistema político, econômico e militar mundial se encontra organizado de forma imperial, o Império Americano, com seu centro em Washington, e onde há províncias desenvolvidas, como os Estados “soberanos” da Europa Ocidental, e províncias subdesenvolvidas, como os Estados da América Latina e África e, fora do Império, os Estados Adversários do Império, a Rússia e a China. 
Com raras exceções, nos países de economia capitalista que, em diversos graus, são quase todos, ocorre tal concentração de riqueza e renda que 1% da população chega a se apropriar de mais de 50% do produto anual do país e de parcela muito superior a 50% de sua riqueza nacional.
A concentração de riqueza e de renda e, em consequência, as disparidades sociais, decorrem de fenômenos como a concentração e centralização do capital; a globalização da economia; a desregulamentação e oligopolização financeira; a utilização de tecnologias poupadoras de mão de obra e seus efeitos, em especial nas Províncias subdesenvolvidas do Império Americano.
A financeirização da economia, que se faz pelo controle crescente de empresas produtivas pelas entidades financeiras, pela participação das empresas produtivas no mercado financeiro e pela submissão de muitos Estados às demandas do sistema financeiro globalizado, em especial a prioridade que concedem ao pagamento do serviço da dívida pública e a políticas de austeridade fiscal, se encontra na raiz da concentração de riqueza, em especial nas Províncias subdesenvolvidas de economia mais frágil.
Partidos e lideranças trabalhistas, social democratas e progressistas foram levados, e até forçados por organismos internacionais e governos estrangeiros, diante de crises econômicas e fiscais, a adotar políticas de austeridade que agravaram sua situação, fenômeno mais sério nas Províncias subdesenvolvidas do Império pela debilidade de sua estrutura econômica e de suas relações com o exterior.
A concentração de riqueza e renda decorre também da execução de políticas conservadoras como a redução de impostos que beneficia as empresas e os mais ricos; a redução dos programas sociais; o enfraquecimento da proteção do Estado ao trabalhador e a precarização das condições de trabalho.
A concentração de renda e de riqueza contraria a “teoria” segundo a qual, com o desenvolvimento do capitalismo, as diferenças dentro das sociedades e entre as sociedades diminuiriam com o tempo. Este seria o fenômeno de “convergência”, que teria ocorrido nos Trinta Anos Gloriosos, de 1946 a 1975, devido, em realidade, à reconstrução da Europa e do Japão e à expansão do capitalismo, após a destruição da Segunda Guerra.
Os argumentos em defesa da “convergência” ressurgem com a expansão do capitalismo na China e na Ásia. Ao incorporar centenas de milhões de consumidores à economia industrial e urbana, se iniciaria um novo ciclo de prosperidade, de melhor distribuição de renda e de menor concentração de riqueza. Este fenômeno é desmentido pelo número crescente de bilionários na Ásia, pela massa de indivíduos explorados e desempregados e daqueles “excluídos” por se encontrarem abaixo da linha de pobreza.
A crise, que se iniciou em 2007, perdurou, apesar das previsões recorrentes de “retomada” do crescimento. A longa estagnação, chamada “novo normal”, decorre em grande parte da adoção de políticas contracionistas não somente em Províncias desenvolvidas como nas periféricas e contribuiu para que os argumentos sobre a convergência entre classes sociais e entre Estados perdessem credibilidade.
Nos Estados Unidos, centro do Império e da economia mundial, e em outros Estados surgiu, em um primeiro momento, forte reação popular diante do desemprego, da estagnação dos salários, da deterioração da infraestrutura, do aumento da concentração de riqueza.   
Diante dessa reação, os ideólogos do capitalismo gradualmente passaram a atribuir a culpa pela crise, que fora causada pela especulação financeira, pelas fraudes no mercado e pela centralização e concentração do capital, à “política”. Procuraram, com a ajuda da mídia, convencer a população dos males do Estado “perdulário” e dos benefícios, para todos, das medidas de austeridade fiscal.
O fracasso das políticas de austeridade fiscal e de privilégios ao capital é justificado pelos economistas e políticos neoliberais pelo fato de que essas políticas não teriam sido postas em prática em toda sua extensão e profundidade e por isto não teriam sido exitosas. Seria suficiente, segundo eles, aplicá-las com radicalidade.
A revolta das classes trabalhadoras e exploradas diante da notável concentração de riqueza ocorre esporadicamente. De outro lado, muitos de seus integrantes chegam a aceitar, por convicção, medo, desânimo ou resignação, como justo ou inevitável o sistema econômico, social e político em que vivem, trabalham, procriam, sofrem e morrem.
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As estratégias utilizadas pelo 1% de indivíduos mais ricos que integram as classes hegemônicas de cada país, juntamente com seus representantes políticos, seus executivos, seus ideólogos, seus acadêmicos e seus jornalistas, para lograr a aceitação pela população do fenômeno de concentração de renda e de suas consequências são:
  1. a repressão e, quando necessário, a violência policial e até militar quando ocorrem rebeliões desorganizadas  das populações excluídas;
  2. a difusão  da ideia de que, a despeito das disparidades crescentes de renda e de riqueza, o sistema em que vivem os 99% é o melhor sistema econômico e social possível;
  3. o afastamento, forçado ou voluntário, da maioria da população da atividade política e da administração do Estado.
Sempre que a opressão das classes dominadas, como agricultores expulsos de suas terras, trabalhadores desempregados, excluídos sociais, atinge certos níveis e ocorrem manifestações de protesto, inclusive o aumento da violência, as classes hegemônicas acionam os organismos do Estado para debelar essas revoltas.
Esses exercícios de violência do Estado têm o objetivo de intimidar a população oprimida para que não volte a se rebelar, aceite sua situação e se convença da impossibilidade de mudar o sistema. O tratamento quotidiano pela policia, em países como os Estados Unidos e o Brasil, da população mais pobre e afrodescendente e os percentuais de população encarcerada nesses países, revela o papel da violência do Estado na preservação dos privilégios.
A propaganda constante procura incutir a ideia de que o sistema que promove a concentração de renda e de riqueza é benéfico e igualitário ao permitir, de um lado, o consumo pelas grandes massas de todo tipo de bens antigos e novos que produz e, de outro lado, a possibilidade de todos poderem vir a se tornar empresários e participar do processo de enriquecimento, em sua extremidade “positiva”, isto é, como exploradores do trabalho.
O afastamento forçado ou voluntário da maioria da população das atividades políticas, desde o debate sobre as políticas econômicas e sociais até a escolha de candidatos, das eleições à supervisão do comportamento dos eleitos, é fundamental para preservar os mecanismos “legais” de concentração de riqueza e renda.
Esse afastamento se faz pela desmoralização e “demonização” da política o que é uma estratégia de eficiência maior do que o uso da violência e da propaganda, ainda que utilize esses dois instrumentos de forma complementar.
Noite e dia os políticos são denunciados pela grande mídia como corruptos, preguiçosos, exploradores, falsos e demagogos e a política é condenada como uma atividade corrompida e corruptora daqueles que nela se envolvem, em especial aqueles que “não têm instrução” e que “são pobres”.
Ainda que de forma implícita as mazelas que afligem o mundo e o Brasil são apresentadas como o resultado da ação dos políticos que se aproveitam da ingenuidade dos cidadãos e que, a partir dos cargos públicos que conquistam e nos quais se eternizam, se enriquecem, explorando os pobres e se apropriando dos bens do Estado.
Segundo a mídia, os conflitos regionais, o terrorismo, as diferenças entre nações e dentro dos países, em especial nos subdesenvolvidos, a pobreza extrema da maioria e a riqueza nababesca de pouquíssimos, a violência social, as endemias e epidemias, a ignorância, a burocracia, o arbítrio policial, o racismo e o desemprego, seriam causados pela política e pelos políticos.
Na esfera internacional, sendo a culpa da política e dos políticos, nenhuma parcela de culpa poderia ser atribuída às relações desiguais entre Estados, às prolongadas práticas de exploração econômica e de opressão política das Potências coloniais, às características do capitalismo e à estrutura legal que organiza a economia e a política mundiais.
Na esfera doméstica dos países, sendo a culpa dos políticos e da política, nenhuma parcela poderia ser atribuída à forma como foram organizadas as atividades econômicas, ao modo como as classes hegemônicas estruturaram o sistema político, à maneira como as entidades religiosas moldaram os sistemas sociais e ideológicos e as relações entre os sexos e entre as etnias.
A conclusão que se encontra implícita na campanha midiática contra a política e os políticos, sem distinção de indivíduos ou partidos, é que os “homens de bem” devem se manter afastados da política e dos políticos e se ocupar de seus interesses, do bem-estar de sua família, de sua luta pela prosperidade individual e, no máximo, em procurar ser um bom vizinho.
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A política, todavia, é uma atividade necessária e inextirpável da sociedade seja ela organizada como democracia ou ditadura, como capitalista ou socialista, seja ela de cultura antiga ou moderna.   
As diferenças inatas entre os seres humanos, além das diferenças adquiridas de riqueza, de história familiar, de educação, de local de nascimento, fazem com que os indivíduos e os grupos sociais tenham visões distintas de como deve ser organizada a sociedade em que vivem e trabalham.
É natural que os indivíduos tenham opiniões distintas e até divergentes no âmbito da política que é, em grande medida, a disputa pela definição de regras sociais de convivência e de organização da economia e pelo controle dos cargos do Estado que definem essas regras e administram os recursos da sociedade.
Todo indivíduo, qualquer que seja sua riqueza ou cultura, que não participa das atividades políticas ou delas participa ocasionalmente, permanece à margem como espectador queixoso, ressentido e desiludido, enquanto é, de fato, dominado pelos indivíduos que delas participam como militantes ou em posições de liderança e de poder.
As relações sociais adquirem cada dia maior complexidade devido ao progresso tecnológico e das comunicações, da expansão e multiplicidade crescentes das relações entre Estados, entre as economias, entre as empresas e entre empresas e trabalhadores, no contexto de uma economia globalizada.
Assim, a necessidade de regulamentar as relações políticas, econômicas e sociais se torna cada vez maior. Essa regulamentação não pode deixar de ser feita sob risco de permanentes conflitos entre indivíduos e na sociedade, criando situações de insegurança e de anomia, em especial perigosas para o domínio “pacífico” exercido pelas classes hegemônicas.
Essa regulamentação tem de ser feita por indivíduos escolhidos de alguma forma. Esta é uma tarefa cuja existência pode ser comprovada desde que tiveram início os registros escritos da História e a regulamentação de seu exercício afeta a todos, ainda que se procure ocultar este fato, e ela reflete a correlação das forças sociais do momento em que é feita.
As normas sobre propriedade; sobre família; sobre trânsito e sobre transportes; sobre produção e venda de alimentos e remédios; sobre o sistema de ensino; sobre imóveis e aluguéis; sobre bancos e a cobrança de juros; sobre as relações de trabalho e os salários; sobre as atividades agrícolas, industriais, comerciais e de serviços; sobre meio ambiente; sobre segurança pública e polícia; sobre impostos; sobre o volume e a utilização de recursos em programas públicos e tantas outras afetam a população e a cada um de nós.
Em todos os sistemas políticos, inclusive nas ditaduras arbitrárias e violentas, há a necessidade de atribuir a certos indivíduos a função de elaborar as normas que regem as relações sociais.
Em um regime democrático tradicional, em suas diversas formas, quer seja a de governo presidencialista ou parlamentar, seja o Estado unitário ou federativo, a população, através dos seus eleitores, define quem são os cidadãos que devem exercer as funções de elaborar normas que requerem amplo debate público devido à diversidade de interesses que afetam.
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A sociedade atual se caracteriza pela concentração de riqueza e de poder, pela transformação tecnológica, pela instabilidade social, pela ansiedade e frustração individual, pelo fundamentalismo religioso e pelo consumo de produtos que alteram a consciência, tais como o álcool, a cocaína, o ecstasy, os opiácios e outros psicotrópicos.
Na sociedade, altamente desenvolvida ou subdesenvolvida, o controle do Estado, isto é, o controle das normas e das instituições que definem e garantem as características do sistema de produção e de distribuição e que consagra certos privilégios, é essencial para as classes hegemônicas.
No sistema democrático moderno, que é o resultado de lutas e de conquistas dos setores oprimidos da sociedade, a cada cidadão, conceito este definido de forma diferente através do tempo e do espaço, cabe um voto no processo de escolha dos dirigentes do Estado.
Por outro lado, no capitalismo a cada unidade monetária corresponde um “voto” no mercado e, portanto, as decisões sociais sobre o que produzir, como produzir, como consumir e os benefícios que decorrem dessas decisões se encontram concentradas nas megaempresas, isto é, em seus acionistas-proprietários e em seus delegados, ou melhor empregados, os chamados executivos.
O desafio que tem de enfrentar os detentores do poder econômico e principais integrantes das classes hegemônicas na sociedade de regime democrático, em que a cada cidadão corresponde um voto, consiste em como transformar poder econômico em poder político.
Esta transformação é vital para as classes hegemônicas para garantir a sobrevivência das normas fundamentais do sistema econômico e social e, eventualmente, para promover, à medida que isto se torna necessário, sua modificação controlada, reformista e não-revolucionária, isto é, sem alterar as relações fundamentais de propriedade e poder.
Nos primórdios da democracia liberal tal desafio não se colocava, pois o regime político era censitário, e os indivíduos somente eram cidadãos na medida em que tinham certa renda, ou propriedade, ou pagavam impostos e por isto a enorme maioria da população, inclusive as mulheres, estava excluída do processo político.
A primeira meta das classes hegemônicas no processo de transformar poder econômico em poder político é afastar a massa de cidadãos das atividades do Estado e da política, a qual é a atividade pela qual se controla o Estado, ou reduzir ao mínimo e controlar a participação dessa massa na política e no Estado.
Assim, é necessário difundir uma imagem negativa do Estado e da política no seio da massa da sociedade, mas não certamente entre os que compõem as classes hegemônicas que conhecem a importância da política para o exercício de sua hegemonia.
A imagem do Estado que se difunde na sociedade atual, em que predominam os valores individualistas, exaltados pela mídia, pelo sistema educacional e até pelas religiões, é que o Estado é o moderno Leviathan, a fonte de todo o Mal.
De acordo com essa visão, a cobrança de impostos extorsivos (por menores que sejam em realidade) para alimentar uma burocracia parasitária, que se compraz em elaborar milhares de regulamentos inúteis que estimulam a corrupção e tolhem a liberdade do indivíduo, puro e feliz originalmente, decorre da existência de um Estado que, a cada momento, infringe a liberdade individual e entorpece o desenvolvimento da sociedade.
Essa visão tem sua origem no combate às práticas arbitrárias das monarquias absolutas do Renascentismo e do Iluminismo contra as quais a burguesia nascente e seus representantes políticos lutaram para implantar o capitalismo e o liberalismo como formas de organização econômica e política, em uma época anterior à revolução industrial e à revolução tecnológica.
No Estado Leviathan do século XXI, reinaria o político, o homem do Estado, o homem do Mal. Incompetente, é incapaz de enfrentar os males que afligem a sociedade; mentiroso, ilude os cidadãos a quem periodicamente atraiçoa; xenófobo, estimula os conflitos e corrupto, defende os interesses estrangeiros, ou os interesses dos poderosos ou os interesses dos incompetentes sociais que fracassaram na luta individualista pelo sucesso, enquanto se aproveita das vantagens dos cargos públicos que ocupa.
O desprezo e até o horror pela política (e pelos políticos) são estimulados pelos meios de comunicação, que procuram fazer crer aos integrantes das classes médias e trabalhadoras que a atividade política não é digna de um “homem de bem” e que este deve se dedicar exclusivamente à sua atividade, seja ele um operário, um empregado, um técnico ou um profissional liberal, para não correr o risco de se corromper.
Na estratégia de estimular esse horror e desprezo (com o objetivo de afastar as “classes inferiores” da tentação de participar do governo) é necessário desmobilizar essas classes, desviar e distrair sua atenção, o que é tanto mais importante quanto mais desigual e excludente for a sociedade e, portanto, maior a ostentação de riqueza e mais gritante a miséria.
- A distração permanente, em larga escala, em relação à política, da atenção das massas trabalhadoras e das classes médias se faz pela criação de novos cultos e pela promoção dos heróis desses cultos.
- A difusão desses novos cultos e a promoção desses novos heróis é feita pelos meios de comunicação, em especial a televisão e a Internet, e pela oferta maciça de entretenimento banal audiovisual, de espetáculos musicais, de folhetins, de espetáculos esportivos, de anúncios publicitários. A sociedade é a sociedade do espetáculo, onde tudo se transforma em espetáculo, inclusive a política.
O principal desses novos cultos é o culto do corpo, que se realiza através do “body building”, da engenharia plástica e das dietas de alimentação, e de seus heróis que são os atletas, os artistas e as modelos de moda, enquanto se deprecia o espírito e a cultura, mais pela omissão do que pelo ataque.
O segundo culto é o culto do dinheiro. O empresário é apresentado como o grande herói, dinâmico, astuto, trabalhador incansável, em busca do sucesso pessoal, e se procura convencer a todos que todos podem vir a se tornar empresários bem sucedidos e ricos, bastando seguir as estratégias descritas na literatura de auto-ajuda empresarial. O empresário é o herói que enfrenta o político vilão, é vitima e adversário do Estado, dá emprego às massas, é a favor da paz.
Os heróis desses dois novos cultos são os modelos para os jovens e o escárnio dos idosos que já não podem ser atletas nem empresários, fracassados por não serem ricos e cuja experiência não tem valor na sociedade do novo e da obsolescência programada.
O mundo ideal, para os indivíduos da sociedade do século XXI, de onde são enxotadas as utopias, ridicularizadas sempre que propõem enfrentar as desigualdades sociais e modificar as estruturas de poder que as originam e mantêm, seria um mundo sem governos, sem violência, sem drogas, sem políticos, sem normas, sem impostos, onde todos seriam física e financeiramente bem sucedidos, atletas e empresários, um mundo em que, principalmente, o Estado não existiria.
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A solução inicial para o desafio de transformar poder econômico em poder político é financiar a eleição de indivíduos que representem os interesses das classes hegemônicas para elaborar a legislação; a eleição de representantes fiéis para ocupar os cargos de alta administração do Estado; a escolha de indivíduos sensíveis a esses interesses para exercer o Poder Judiciário.
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O desenvolvimento da tecnologia da informação, a aquisição de meios de comunicação de massa por grandes grupos empresariais, a Internet e as redes sociais, o desenvolvimento das técnicas de pesquisa e de fragmentação da população em grupos de interesses, fez surgir técnicas eletrônicas para atingir de forma maciça e seletiva grupos de interesse e mobilizá-los a votar em torno de objetivos simples.
Esses objetivos são a luta contra a corrupção (dos políticos), a redução da “opressão” do Estado, contra minorias e imigrantes, contra o comunismo (e variantes), a favor da “renovação”, do candidato “novo” e contra o “sistema”; pela “mudança”.
A adoção do voto voluntário também permite afastar do momento decisivo eleitoral grande parte da população, em geral as camadas mais pobres.
Ademais, a legalização em muitos países, a começar pelos Estados Unidos da América, do uso de recursos privados em campanhas políticas, com ou sem a existência de recursos públicos, permite às classes hegemônicas financiar campanhas de candidatos super-ricos.
No Brasil, o candidato Henrique Meireles, cuja fortuna declarada é de 377 milhões de reais, “comprou” sua candidatura à presidência, pois se dispôs a não usar recursos públicos que assim se destinaram às campanhas de candidatos de seu partido ao Congresso.
Assim, aspecto recente da política interna como da política internacional, tanto nos países desenvolvidos quanto nos países subdesenvolvidos, é a utilização das redes sociais na Internet por empresas especializadas, financiadas por milionários conservadores, para a mobilização política com base em noticias falsas (fake news), e pela exploração da chamada “pós-verdade”.
Essas empresas fazem “bombardeio” de notícias através de robôs e com a participação de organizações conservadoras, fundações patrocinadas por bilionários de direita, para a promoção de certos candidatos e para a execução de golpes de Estado. Esses golpes, através do Judiciário e da mídia, são feitos pela mobilização de setores conservadores da sociedade em torno de programas econômicos neoliberais e de programas sociais retrógrados, caracterizados pela xenofobia, antissemitismo, exploração do anticomunismo, pela defesa de valores sociais ultrapassados e pelo combate ao feminismo, à liberdade de orientação sexual, à igualdade racial, à descriminalização de drogas.
Outro aspecto da política na Internet para a sociedade, é a intimidação e caracterização como inimigos de todas as correntes de oposição à “nova direita” e dos militantes políticos progressistas.
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Os adversários da atividade política e defensores dos interesses das classes hegemônicas, sejam eles acadêmicos, especialistas, jornalistas ou políticos, apresentam propostas adicionais para superar os “males” da política e garantir a hegemonia sobre os interesses, equivocados, da enorme maioria da população, que tende em eleições a se deixar iludir por líderes populistas, nacionalistas, socialistas e comunistas e a desafiar a concentração de riqueza e renda e o poder das classes hegemônicas.
Uma primeira proposta é a redução da atividade política e da representação do povo através da redução do tempo de campanha, do controle dos partidos, da redução do número de parlamentares, do tempo de debate nos Parlamentos. A limitação da participação do povo no debate e no processo político pode ser feita também por diversos artifícios dentro dos procedimentos de elaboração legislativa, e aproxima o sistema político, ainda que proclamado como democrático, a uma ditadura oligárquica.
Uma segunda proposta para superar os “males sociais” que seriam causados pela política e pelos políticos seria confiar a administração do Estado a técnicos, que, por serem especialistas, seriam honestos, imparciais e científicos em suas ações, sem esclarecer, entretanto, como seriam esses técnicos escolhidos pela sociedade.
Um mecanismo criado pelos defensores desta solução “técnica” são as agências reguladoras no âmbito do Estado. Essas agências são intrinsecamente antidemocráticas, pois definem normas sem que seus integrantes estejam sujeitos a controle da sociedade e sem que suas decisões sejam debatidas pela sociedade que virá a ser afetada e que é composta pelos trabalhadores, pelos desempregados e subempregados, pelos idosos, pelos pobres, pelos excluídos e pela classe média.
Em geral, os diretores dessas agências são “técnicos” que trabalharam como executivos, isto é, como empregados, em empresas que desenvolvem atividades na área de competência de cada agência reguladora e muitos deles, após sua participação na administração da agência, vêm a ser recrutados para serem executivos de empresas privadas do setor regulado.
O objetivo, apresentado como grande virtude, das agências reguladoras é reduzir a influência política, isto é, da cidadania, na regulação das atividades econômicas e na disciplina do poder econômico, em especial de megaempresas multinacionais que procuram se auto-regular de acordo com seus interesses, que não são os interesses coletivos da sociedade local, mas sim seus interesses como empresas mundiais, e seu objetivo principal de maximizar lucros.
O Banco Central é a mais importante dessas agências reguladoras. Seus diretores provêm, em geral, do setor financeiro privado ou para ele vão. Suas decisões, além de serem influenciadas, até em sua prática diária, pelos bancos privados, nacionais e estrangeiros, e outras entidades financeiras, a quem deveriam regular, afetam todas as atividades sociais ao definir a taxa básica de juros (e assim as demais taxas de juros), as políticas monetária e cambial e ao influir sobre o nível de investimentos e, portanto, de emprego na sociedade.
Uma terceira proposta para enfrentar os “males” da política seria entregar a administração do Estado a empresários, escolhidos pelo povo em eleições, porém sem vínculos com partidos políticos, para colocar em prática, na gestão do Estado, a experiência que teriam adquirido na gestão de suas empresas.
Na realidade, a administração de uma empresa é radicalmente diferente da administração pública. Uma empresa se especializa na produção de um bem ou de alguns bens, e o empresário individual pode demitir funcionários, mudar o ramo de atividade, e assim por diante, com grande arbítrio em relação a seus executivos e operários.
Ao contrário, o Estado trata de múltiplos e conflituosos interesses e atividades e não pode “demitir” a seu bel prazer nem os funcionários nem a  população que demanda serviços públicos e normas para reger seu convívio social e suas atividades.
A quarta proposta para superar os malefícios criados pela política seria entregar a administração do Estado a um segmento social que, pelas características de sua formação e pela sua ideologia, tivesse como objetivo a defesa e o bem do Estado e da população em geral, acima de interesses menores e egoístas e dos conflitos entre as classes e grupos sociais, como empresários, trabalhadores, latifundiários, camponeses e banqueiros.
Essa classe, esse segmento da sociedade, seriam os militares que, por sua imparcialidade, poderiam governar de forma honesta, organizada, hierárquica e disciplinada, pois, devido a sua formação, reuniriam as condições necessárias para tal.
Todavia, os militares somente poderiam assumir o Poder em consequência de golpe de Estado ou caso viessem a ser eleitos, caso em que a população elegeria um indivíduo e não toda uma categoria profissional. Por outro lado, assim como os técnicos, os militares, como indivíduos e seres sociais, se vinculam às visões de certas classes e a certos interesses da sociedade e assim, na prática, não poderiam ser imparciais na elaboração de normas e na gestão do Estado.
Essas quatro propostas, que são supostas soluções, sempre presentes no imaginário e nas ações das classes hegemônicas, emergem com força quando sentem seus líderes (e mesmo os setores sob sua influência, como amplas faixas da classe média e profissionais liberais) que a situação está escapando do controle que exercem sobre o Estado e o sistema político e econômico e sobre as classes trabalhadoras e excluídas.
Têm essas “soluções” natureza oligárquica, contrária ao bem estar da sociedade e aos interesses essenciais da maioria da população, quais sejam participar da regulamentação das atividades do Estado de forma a estimular o desenvolvimento de uma sociedade cada vez mais democrática, desenvolvida, justa, harmoniosa e soberana, e cujas instituições garantam o trabalho e a sobrevivência digna de cada ser humano que a integra.
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A política como atividade, em realidade onipresente e permanente, no âmbito da qual se definem as normas que regem as atividades sociais, afeta a todos e é uma atividade que se realiza no âmbito da sociedade e do Estado nacional assim como a política internacional se realiza principalmente entre os Estados. 
É fundamental para melhor compreender os fenômenos da política, e de como eles afetam a vida quotidiana de cada indivíduo, para além da superficialidade dos escândalos, dos comportamentos excêntricos, das denúncias e dos preconceitos, examinar a natureza do sistema mundial, das classes hegemônicas e dos Estados nacionais e das novas técnicas de mobilização política.
É necessário começar do geral para o particular e assim o próximo capítulo trata de Nacionalismos e Estados.  -  (Aqui).
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(Samuel Pinheiro Guimarães foi secretário geral do Itamaraty [2003-2009] e ministro de assuntos estratégicos no período 2009-2010).

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