terça-feira, 11 de setembro de 2018

PRIMUS INTER PARES


"Por anos o verdadeiro partido de oposição no Brasil era a mídia, organizada em oligopólio, que reina sobre o Brasil. O que não se esperava é que o judiciário e o ministério público constituíssem um novo partido de oposição aos pobres e à democracia.
O papel das organizações globo, da folha de São Paulo, da editora abril e seus grupos associados na história do Brasil já é proverbial. Apoiaram os regimes autoritários, fizeram oposição às mudanças da redemocratização, se opuseram fortemente aos governos progressistas e sempre estiveram ao lado da plutocracia a qual pertencem seus donos. Nada de novo no front para quem sabe que a luta de classes é uma realidade no mundo, ainda mais em um país capitalista periférico com uma herança escravocrata e oligárquica como o nosso.
A novidade é a falta de republicanismo que acomete as instituições brasileiras. Existem nichos no nosso judiciário e no ministério público recheados de fascistas, neoliberais, machistas, racistas, e toda sorte de chaga social que a elite brasileira tem. Uma parte deste problema se deve ao fato de que nosso judiciário é claramente composto por homens, brancos, heterossexuais, urbanos oriundos da mesma classe média alta ou alta e que, se já não são conservadores por educação e criação, tornam-se pela própria contingência institucional dos poderes que exercem.
Uma parte da direita (e mesmo de uma certa ‘new left’ brasileira) defende que o que ocorre com Lula é idêntico ao que sempre ocorreu com populações negras, jovens e periféricas que são, sistematicamente, marginalizadas e esquecidas nos porões das cadeias e nos escaninhos de juízes. O argumento é ajudado pelo fato de que das mais de 750 mil pessoas presas no Brasil, mais de 56% é negra e tem até 29 anos. A justiça, no Brasil, é uma evidente ferramenta de luta de classes, enclausurando jovens negros por portarem algumas gramas de maconha, enquanto mantém soltos brancos com quilos de cocaína e armas.
Contudo, o argumento de que o que ocorre com Lula não seria novidade não pode ser aceito. Por mais ignóbil e absurdo que seja o encarceramento dos jovens, o que ocorre ali é a ação pontual, moral e determinada de um grupo de autoridades (juiz, MP e etc.) sobre um jovem que ameaça marginalmente o sistema. A violência de classe somente pode ser percebida quando se olham os números totais. A ação do judiciário sobre cada caso, se analisada em separado, revelaria, talvez, mesquinhez, moralismo, conservadorismo, falta de conhecimento e etc., mas cada ação individual não tem força política imediata. Foram necessários anos e anos de encarceramento em massa no Brasil para que hoje tivéssemos a certeza do absurdo. Os argumentos que defendem as prisões com base em leituras mesquinhas da lei só adquirem força política através da coletividade do judiciário brasileiro.
Trocando em miúdos, a vilania de um juiz ou de um membro do MP contra um jovem negro pode ser sustentada como “cumprimento neutro da letra da lei”. A ação deliberada de TODO o judiciário brasileiro no encarceramento de negros desvela a luta de classes e a ação política de forma inaceitável.
A diferença para o caso Lula está exatamente aí. Para a ação política concertada, o judiciário levou anos de má formação, má escolha de seus membros e cultivo de uma ideologia institucional sórdida que afirma seus partícipes como justos detentores de privilégios e benefícios que literalmente os colocam distante da sociedade em que atuam. No caso Lula, ao que parece, a partir da posição do desembargador Favretto e outros, o que houve é uma ação de poucos e para poucos.
É verdade que a imensa maioria dos juízes brasileiros não vivem no Brasil. Vivem em pedaços de terra geograficamente defendidos, sustentados, branqueados e aparelhados com dinheiro público, cujo objetivo é exatamente fazer com que eles não estejam inseridos na realidade daqueles que vão julgar. Não estejam, portanto, “no Brasil”. Há uma errônea premissa sociológica de que do distanciamento das agruras materiais e sociais surgiria uma figura neutra, equidistante que, baseada na “letra da lei” e nos princípios republicanos, administraria a Justiça.
Um arremedo pobre e inefetivo da noção católica do que é justo e do que é bom. Sociologicamente nossa sociedade reserva aos juízes o espaço mais próximo de Deus entre todos os mortais. Ocorre que estas pessoas passam a se compreender como divinas. Mesmo as mais humildes, depois de intenso bombardeio ideológico institucional, se convencem serem “diferenciados” em sua existência, atos, consciência e capacidade.
A Justiça brasileira é a justiça dos desiguais. Dos “meritórios e diferenciados” sobre os “vis e perversos”. Repete o arquétipo católico da luta do “bem” contra o “mal”. O olhar dos abastados material e tecnicamente sobre a escória dos desafortunados ou desprezíveis.
Este modelo serviu bem, historicamente, para uma sociedade que se tornou independe no início do século XIX, mas manteve os mesmos grupos sociais e econômicos no poder. Serviu também para a consolidação de uma ideia de “República”, no final do XIX, que é totalmente tributária da noção de diferenciação social. Em nenhum lugar do mundo “república” é aproximado de “democracia”, mas, no Brasil, a nossa república foi pensada para estar de costas para o povo.
O pacto de 1988, na constituição feita após o golpe militar, não era um pacto pelo fim das desigualdades sociais. É certo que grupos ali trabalharam incessantemente para isto, mas, no fim, os conservadores conseguiram manter intacta uma estrutura de privilégios ligada umbilicalmente aos altos cargos nos poderes. Desde a exigência do tratamento pessoal diferenciado até a auto-concessão de penduricalhos, tudo faz parte da noção arraigada de que os que exercem os papéis de juízes e promotores são o que era conhecido na Antiguidade como “primus inter pares”: os primeiros entre os iguais. E aí se desfaz qualquer noção real de república. Se alguém é diferente então não somos mais todos iguais.
A constituição de 1988, contudo, consolidou um pacto velado contra o arbítrio. Oriunda das cicatrizes ainda sangrando do regime militar, todas as garantias foram dadas ao exercício do poder jurídico, tido como “único garantidor” contra a violência do autoritarismo. Pois o Judiciário tornou-se exatamente a principal fonte da violência. Contra Lula a violência não só é mais descarada e desavergonhada, como visa uma economia de poder. Ao invés de encarcerar 500 mil jovens negros (todos e cada um) e assim mantê-los fora da ideia de sociedade, gastando poder para cada injustiça e vilipêndio, ataca-se aquele que portava não apenas a esperança de uma mudança como tinha efetivamente realizado isto.
Tão logo Haddad se consolida como figura herdeira desta representação, recebe – também – a herança do ódio endereçado ao ex-presidente. Não demorou uma semana e Haddad já conhece as boas vindas das elites brancas, togadas e mal-formadas que povoam o nosso judiciário e Ministério Público.
No Brasil de ponta-cabeça, ser perseguido pelo judiciário é sinônimo de luta na defesa pelos mais pobres ... Assim como ser preso sem provas e sem crimes mostra ao povo quem nunca saiu do seu lado. O judiciário torna a campanha de 2018 fácil de ser entendida pela população mais humilde. Lula Livre é tudo o que eles querem e talvez tudo o que precisam."



(Do historiador Fernando Horta, post intitulado "Primus inter pares", publicado no Jornal GGN - Aqui).

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