domingo, 23 de setembro de 2018

ELEIÇÕES 2018: O FUTURO NA ORDEM DE ÍXION?

(José de Ribera. Íxion, 1632).

Eleições de 2018: o futuro na Roda de Íxion? 

Por Eliseu Raphael Venturi

“Sabia, no exílio, Tucídides
Tudo o que pode um discurso
Dizer de Democracia,
E o que os ditadores fazem,
Velhas bobagens que falam
Para uma cova impassível:
Tudo descrito em seu livro
E por sua vez já esquecido,
Voltamos nesse momento
Aos costumeiros maus líderes
E ao habitual sofrimento”
(AUDEN)²

Íxion se negara a cumprir sua promessa ante seu sogro Dioneu, vingando-se da autotutela deste e, assim, condenando-se à loucura. Zeus, apiedado da figura de Íxion tornado mendigo pela sandice, purificou-lhe do remorso, convidando-o ao banquete dos deuses.
Íxion, então, restituído, assedia na oportunidade Hera. Zeus, ciente, cria Néfele, que ilude Íxion e de cuja união se originam aos Centauros. Lançado por Zeus ao Tártaro, o castigo de Íxion por tal conduta fora o de eternamente girar preso em uma roda, na qual foi posto por Hermes.
Dos castigos de Títio, Sísifo e de Tântalo, o mais grave: o de Íxion. Castigo da ganância e da ignorância deliberada, da traição e da ludibriação; da falta de ética e de limites.
Uma história assoreada tal como a nossa democracia contemporânea. Repleta de ingratidões, imaturidades, falta de respeito, reveses traidores e descompromissos. Vícios individuais, vícios coletivos, vícios institucionais, vícios acadêmicos, vícios privados e vícios públicos. Vícios do sistema do poder e do dinheiro que consomem o mundo da vida e da comunicação.
A derrocada democrática é construída por diversos fios que vão desde as micropolíticas até os grandes sistemas. O cuidado democrático deve ocupar esta mesma extensão, embora a impressão da generalidade difusa da massa pareça tudo justificar, assim como os pleitos identitários e as posições determinadas, tudo autorizar.
O castigo de Íxion é o castigo da falta de autocontrole: do orgulho soberbo e da insistência e inconsciência arrogante na repetição dos erros. Castigo da traição sobre a restituição das forças, do sentimento de onipotência indiferente e da desconsideração dos demais interesses legítimos envolvidos em qualquer contexto de interação humana.
De Íxion à Democracia: as eleições. Nossas Nova República e Nova Democracia agonizam em suas práticas defenestradas: desde as micropolíticas até os grandes sistemas. Não haverá, contudo, erro maior do que se dar o jogo por encerrado, como uma certa atmosfera oportunista pretende induzir a cada dia mais e que pode definir determinadas decisões.
Democracia não é posta, dada, positiva, definitiva, segura, estanque, conquistada. Democracia é criação, construção, ressignificação, justificação de boas razões, costura de veracidade, legitimidade, autenticidade. É cuidado com o pensamento, com a palavra, com o argumento, com o entendimento. É preocupação e compromisso com fundamentos e responsabilidade por efeitos, desdobramentos, decorrências, manutenção e intensificação.[3]
Democracia é processo e, por isso, está em aberto. Potência que pode se realizar ou se esvair. Processo histórico, social, de convivência, de interação de valores e de condutas. Processo social e de construção coletiva cuja liberdade tem no seu preço a eterna vigilância e cuidado. “Pratica-se ou perde-se. Conquista-se diariamente por meio da ação política coletiva e, sobretudo, do fortalecimento das instituições e da cidadania. Não tão somente é uma realidade estanque, pois segue sob constante ameaça”.
Por que se entrega a democracia? Por ressentimento? Por reação? Por protesto? Por discordância? Por indignação? Por frustração? Por ódio? Por raiva? Por antipetismo? Por antilulismo? Por antipobrismo? Por se ter razão? Por se saber a verdade? Por se ver mais longe? Este é o preço barato da liberdade? Estas são as parcas justificativas? Estes são os custos de possíveis mais vinte ou trinta anos de políticas mais do que comprovadamente equivocadas em nome da fornalha que já provou consumir todos os recursos humanos e ambientais do planeta? O risco do castigo histórico está em aberto.
Como rememora Ranciére, “não vivemos em democracias. Tampouco vivemos em campos, como garantem certos autores que nos veem submetidos à lei de exceção do governo biopolítico. Vivemos em Estados de direito oligárquicos, isto é, em Estados em que o poder da oligarquia é limitado pelo duplo reconhecimento da soberania popular e das liberdades individuais”.[4]
Valhamo-nos desta soberania e destas liberdades; apeguemo-nos a elas como nosso maior patrimônio jurídico, intraduzível em qualquer linguagem econômica, inconversível em qualquer transação de poder. 
É apenas neste sutil, frágil e delicado espaço de experiência e de fortuna histórica que podemos nos situar. É nele que temos a responsabilidade de nos posicionar, e que não podemos, tal qual Íxion desmensurado, trair: seja em razão de qual ponto no espectro, seja em nome de qual ideologia ou ideário, seja em razão do ódio à democracia.  -  (Aqui).
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[Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado].
¹ Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2018.
² AUDEN, W. H. Poemas. Seleção de João Moura Jr. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 105-107.
ALMEIDA, João Daniel Lima de. História do Brasil. Brasília: FUNAG, 2013. p. 579-580.
4 RANCIÉRE, Jacques. O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 94.

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