segunda-feira, 10 de setembro de 2018

EXCERTOS DE UM CONTO DE MACHADO (E UMA NOTA SOBRE LULA)

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Concluída a leitura de "Missiva Para um Certo João", do diligente e perspicaz professor Jean Pierre Chauvin, onde refestelei-me com trechos de um conto do 'Bruxo da Cosme Velho', enredo perfeitamente aplicável aos dias correntes, eis que passo a curtir um bom papo entre dois parceiros do Brasil 247, conforme se confere AQUI. Curta-o também.
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(Nota: Enquanto isso, "Em nova decisão, ONU reafirma os direitos políticos de Lula" - Aqui -, e "Defesa reforçará no STF pedido por Lula após nova decisão de comitê da ONU" - AQUI. O fato é que o País vive momentos de extrema tensão, o que torna compreensíveis até mesmo os rompantes de certos comentaristas. Na Folha, p. ex., um deles, furibundo, diz que não consegue entender 'esse absurdo da ONU' num País como o nosso, que dispõe de Constituição autônoma. Ao que um observador mais atento poderia contrapor: O 'problema' é que nossa Constituição prevê expressamente que os Pactos envolvendo Direitos Humanos, acatados, internalizados e incorporados pelo Brasil, adquirem status Supra Legal, ou seja, passam a situar-se acima das Leis. Não obstante, que é extremamente desgastante esse imbróglio nacional, inexistem dúvidas. Mas agora, felizmente, há perspectivas de chegar-se ao ponto final. Com a palavra, o decano do STF).
Adendo: A palavra dos defensores está AQUI.



Missiva Para um Certo João 

Por Jean Pierre Chauvin, no GGN - aqui

Sua colega, gentilmente, convidara-me para integrar a homenagem que prestam a vossa mercê, neste dia 30 de agosto. 

Infelizmente, por lecionar às segundas, terças e quintas, neste semestre, não pude me fazer presente. Desta forma, a fim de ilustrar este momento de despedida, pareceu-me bom alvitre transcrever um excerto do conto “A Sereníssima República”, publicado por Machado de Assis em 20 de agosto de 1882, no jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro.

Redigida em primeira pessoa, a narrativa pretende ser a transcrição da palestra de um certo Cônego Vargas. O ilustre pesquisador, versado nos tratados sobre a natureza – de Aristóteles, Plínio e Darwin –, descobre que haveria “vida social” nas aranhas.


(Ilustração: Cau Gomez).

Ouço um riso, no meio do sussurro de curiosidade. Senhores, cumpre vencer os preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente porque não a conheceis. Amais o cão, prezais o gato e a galinha, e não advertis que a aranha não pula nem ladra como o cão, não mia como o gato, não cacareja como a galinha, não zune nem morde como o mosquito, não nos leva o sangue e o sono como a pulga. Todos esses bichos são o modelo acabado da vadiação e do parasitismo. A mesma formiga, tão gabada por certas qualidades boas, dá no nosso açúcar e nas nossas plantações, e funda a sua propriedade roubando a alheia. A aranha, senhores, não nos aflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre. Que melhor exemplo de paciência, de ordem, de previsão, de respeito e de humanidade?
Após advertir que os seres humanos não reconheceriam as virtudes “ordeiras” e “produtivas” dos aracnídeos – bem ao gosto da corrente positivista, de Auguste Comte, que acabara de chegar ao Brasil, incensada pela chamada “Escola do Recife” –, o erudito narrador surpreende a audiência que assiste (dentro) ou lê (fora do conto) a sua brilhante palestra.
Para nós, humanos, o Cônego pode ser considerado um dos representantes de Deus, no plano terreno. Imagine-se o que teriam concebido as aranhas, ao ver-se diariamente em sua companhia:
Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinquenta e cinco; em março de 1877 contava quatrocentas e noventa. Duas forças serviram principalmente à empresa de as congregar: o emprego da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi. A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me. E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e miudeza, lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus pecados, e fortaleceram-se ainda mais na prática das virtudes.
Supondo que a descoberta pseudocientífica do Cônego não passe de sintoma megalomaníaco, a ficção suscitará incômodas perguntas ao leitor – espécime que ri e cogita, enquanto lê Machado: 1. Haverá, entre nós, aqueles que interpretam mal a atitude dos seres que nos fazem companhia?; 2. qual a margem entre a espontaneidade dos atos e a força das contingências?
De volta ao conto, não poderíamos desprezar o paralelo que Machado estabelece com a política, durante o Segundo Império brasileiro. Regime que, ao virar República, basicamente trocou o poder de nome e mãos: o barão virou coronel, o doutor virou catedrático, o absolutismo virou ditadura. E nisso somos cada vez mais experientes.
Como eles [os aracnídeos] são principalmente geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos - é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado:  as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo; e, finalmente, uma quarta divisão política, o partido anti-reto-curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar a apaixoná-los, adotaram uma simbólica. Para uns, a linha reta exprime os bons sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a constância, etc., ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfídia, são perfeitamente curvos. Os adversários respondem que não, que a linha curva é a da virtude e do saber, porque é a expressão da modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a parlapatice, são retas, duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso, menos exclusivista, desbastou a exageração de uns e outros, combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a exata cópia do mundo físico e moral. O quarto limita-se a negar tudo.
Como evitar paralelos entre os sistemas adotados pelas aranhas e as ferrenhas disputas entre os Partidos Liberal, Conservador e Moderados – para um lado e para o outro – que pautaram o governo conciliador de Dom Pedro II? A ficção permitiria inferir que algo de similar acontece em nossos dias, à luz dos retrocessos que se implementam no país em nome de um pseudofuturo? Tenhamos claro que a literatura é arte que representa, com signos verbais, tanto a realidade, quanto a fantasia; e que, malgrado um conto como “A Sereníssima República” também “servisse” como assunto elegante para saraus e cafés, durante o século XIX, ou conversas rasas nos botecos de nosso tempo, o que ele mais ensina poderia não ser evidente para o leitor daquele tempo e o nosso.
Penso, por exemplo, em como poderiam ser melhores, mais justas e coerentes as relações entre os homens e as aranhas, especialmente se procedêssemos como a personagem do Cônego Vargas: notar a voz dos seres que supomos menores e dar-lhes efetiva escuta, para benefício próprio e comum.
Decerto, haverá alguma lógica e ilógica em todos os sistemas, geridos por humanoides ou aracnídeos. Mas, para nos referir a uma referência tão cara ao próprio Machado, relembro uma das lições da Poética de Aristóteles: “A poesia se ocupa mais do universal, ao passo que a história se restringe ao particular”.
Teçamos da melhor maneira os fios da vida, como sujeitos de nossa história.
Com meus cumprimentos,
Jean Pierre Chauvin

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