sexta-feira, 30 de setembro de 2016

QUANDO DEFENDER A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO É UMA AFRONTA


"Em 1892 na Lousiana, Estados Unidos, o mestiço Homer Plessy foi detido por violar a segregacionista lei dos vagões separados que determinava no transporte público locais específicos para brancos e negros. Já no banco dos réus, a décima terceira e a décima quarta emendas da Constituição norte-Americana foram invocadas em sua defesa. Traziam em seu texto a abolição da escravidão e a institucionalização da garantia de que nenhum Estado poderia elaborar ou executar leis restringindo os privilégios ou imunidades dos cidadãos e cidadãs dos Estados Unidos. A décima quarta fixava ainda a impossibilidade de privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, além de garantir igual proteção das leis a quem estivesse sob sua jurisdição. Era inaugurada na Constituição norte-americana a cláusula da equal protection of the law.
O conteúdo das emendas, embora cristalino, não impediu que a Suprema Corte dos Estados Unidos chancelasse a atmosfera discriminatória da época e decidisse pela constitucionalidade das leis segregacionistas que separavam os assentos usando parâmetros raciais. Como se tratava de um costume que se tornara norma, seu desrespeito, segundo o entendimento da maioria dos membros da corte, traria prejuízos à paz social e à ordem pública.
O julgamento, entretanto, teve o voto dissidente do juiz John Marshall Harlan, que insurgiu-se contra o entendimento dos seus colegas ao atentar para o fato da lei em análise ser hostil tanto ao espírito quanto à letra da Constituição dos Estados Unidos. Na ocasião, entendeu o magistrado que:
“A presente decisão não apenas estimulará a discriminação e a agressão contra os negros como também permitirá que, por meio de normas estatais, sejam neutralizadas as benéficas conquistas aprovadas com as recentes mudanças constitucionais.”
Referia-se expressamente à décima terceira e à décima quartas. Em 1868, no mesmo ano da entrada em vigor desta, o parlamento já criara uma série de leis e atos segregacionistas que ficaram conhecidas como Jim Crow Laws, nome inspirado no personagem racista encarnado por um comediante branco da época
Os efeitos políticos da decisão se deram exatamente na linha das prospecções de Marshall, conferindo condições políticas à legitimação e ao surgimento de mais leis segregacionistas na linha das Jim Crow Laws. A política do “separado mas iguais”, como ficou conhecida, varou o século XX, sendo abolida tão somente em 1954. Do plenário que julgou o caso de Plessy, Marshall é o único nome lembrado. Intrigantemente, por ter dito nada mais que o óbvio.
No último dia 22, o colegiado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao analisar o pedido de abertura de processo disciplinar contra o juiz Sérgio Moro, considerou que a operação “Lava Lato” não precisa seguir as regras processuais comuns, uma vez que estaria enfrentando uma situação inédita. A maioria considerou lícita a conduta de divulgar a conversa entre os ex-presidentes Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mesmo que ao total arrepio da legislação pertinente.
O desembargador Rogério Favreto, único voto divergente, fez leitura diversa da situação. Considerou em suas fundamentações que é no mínimo negligente o fato de um juiz tornar públicas conversas captadas de pessoas investigadas, ainda mais com prerrogativa de foro. O interesse público e a tentativa de evitar obstrução à justiça, portanto, não seriam razões aptas a permitir esse tipo de comportamento.
Favreto ainda assinalou que “o Poder Judiciário deve deferência aos dispositivos legais e constitucionais, sobretudo naquilo em que consagram direitos e garantias fundamentais”, de forma que “sua não observância em domínio tão delicado como o Direito Penal, evocando a teoria do estado de exceção, pode ser temerária se feita por magistrado sem os mesmos compromissos democráticos”.
Com efeito, concluiu que Moro, juiz de “imparcialidade duvidosa”, agiu com negligência quanto às consequências político-sociais de sua decisão e de maneira contrária não apenas a dispositivos constitucionais e à legislação criminal, mas também ao próprio Estatuto da Magistratura, ao Código de Ética da Magistratura e à Resolução nº 59 do Conselho Nacional de Justiça, segundo a qual “não será permitido ao magistrado e ao servidor fornecer quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão de comunicação social, de elementos contidos em processos ou inquéritos sigilosos”.
A limitação do poder estatal é a primeira e mais fundamental lição extraída das experiências do constitucionalismo liberal do ocidente.  O respeito às regras do jogo, aqui representadas pela legalidade, é a única garantia que temos em desfavor do ímpeto do Estado em agir livre e arbitrariamente, agendado unicamente por suas conveniências. Quando um direito ou uma garantia fundamental é desrespeitada, é toda a sociedade que perde – ainda que, por mais absurdo que isso possa soar, a vítima do arbítrio seja algum desafeto.
O respeito objetivo a liberdades, direitos e garantias fundamentais deveria se tratar de questão tão indiscutível quanto o fato de não serem moralmente aceitáveis leis que promovem o apartheid entre brancos e negros. Favreto repete Marshall e, ao se dispor a enfrentar o rolo compressor corporativista do poder judiciário, o massacre da mídia corporativa e a sede de sangue da opinião pública, corre o sério risco de, assim como o juiz norte-americano, entrar para a história por ter dito o óbvio."


(De Gustavo Henrique Freire Barbosa, advogado, artigo intitulado "Juiz que votou pela representação contra Moro disse o óbvio", publicado do site 'Justificando'. Texto reproduzido no Jornal GGN - AQUI - sob o título "Favreto, que votou contra Moro, repete juiz dos EUA que rejeitou apartheid").

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