A tendência universal da submissão do poder político à lei
Por Sílvio Luís Ferreira da Rocha
Causou um certo espanto na comunidade jurídica a recente decisão do Órgão Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que ao arquivar o pedido de instauração de procedimento administrativo disciplinar contra magistrado, por suposta violação do dever funcional de manter o segredo sobre o conteúdo de conversas que foram interceptadas com ordem judicial, invocou, como principal argumento, situações excepcionais que justificariam o afastamento da incidência de regras jurídicas, verbis:
De início, impõe-se advertir que essas regras jurídicas só podem ser corretamente interpretadas à luz dos fatos a que se ligam e de todo modo verificado que incidiram dentro do âmbito de normalidade por elas abrangido. É que a norma jurídica incide no plano da normalidade, não se aplicando a situações excepcionais, como bem explica o jurista Eros Roberto Grau:
A ‘exceção’ é o caso que não cabe no âmbito da ‘normalidade’ abrangida pela norma geral. A norma geral deixaria de ser geral se a contemplasse. Da ‘exceção’ não se encontra alusão no discurso da ordem jurídica vigente. Define-se como tal justamente por não ter sido descrita nos textos escritos que compõem essa ordem. É como se nesses textos de direito positivo não existissem palavras que tornassem viável sua descrição. Por isso dizemos que a ‘exceção’ está no direito, ainque que não se encontre nos textos normativos do direito positivo. Diante de situações como tais o juiz aplica a norma à exceção ‘desaplicando-a’, isto é, retirando-a da ‘exceção [Agamben 2002:25]. A ‘exceção’ é o fato que, em virtude de sua anormalidade, resulta não incidido por determinada norma. Norma que, em situação normal, o alcançaria (GRAU, E. R. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6ª ed. refundida do Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 124-25).
Ora, é sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada “Operação Lava-Jato”, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns. Assim, tendo o levantamento do sigilo das comunicações telefônicas de investigados na referida operação servido para preservá-la das sucessivas e notórias tentativas de obstrução, por parte daqueles, garantindo-se assim a futura aplicação da lei penal, é correto entender que o sigilo das comunicações telefônicas (Constituição, art. 5º, XII) pode, em casos excepcionais, ser suplantado pelo interesse geral na administração da justiça e na aplicação da lei penal. A ameaça permanente à continuidade das investigações da Operação Lava-Jato, inclusive mediante sugestões de alterações na legislação, constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional.
Parece-me, pois, incensurável a visão do magistrado representado – anterior à decisão do STF na Rcl nº 23.457 -, no sentido de que a publicidade das investigações tem sido o mais eficaz meio de garantir que não seja obstruído um conjunto, inédito na administração da justiça brasileira, de investigações e processos criminais – “Operação Lava-Jato” -, voltados contra altos agentes públicos e poderes privados até hoje intocados
O fundamento da decisão acima, com o devido respeito, ignorou, no entanto, intenso debate filosófico de certa forma já pacificado. Conforme lembra-nos Norberto Bobbio na obra O Futuro da Democracia, “ ao longo de toda a história do pensamento político repõe-se com insistência a pergunta: “Qual o melhor governo, o das leis ou o dos homens?” As diferentes respostas a esta pergunta constituem um dos capítulos mais significativos e fascinantes da filosofia política”[1].
Para o citado autor, o tema da superioridade do governo das leis percorre sem solução de continuidade toda a história do pensamento ocidental. De acordo com ele, a favor do primado do governo das leis sobre o governo dos homens existem na idade clássica dois textos respeitáveis, um de Platão e outro de Aristóteles. O primeiro:
“chamei aqui de servidores das leis aqueles que ordinariamente são chamados de governantes, não por amor a novas denominações, mas porque sustento que desta qualidade dependa sobretudo a salvação ou a ruína da cidade. De fato, onde a lei está submetida aos governantes e privada de autoridade, vejo pronta a ruína da cidade; onde, ao contrário, a lei é senhora dos governantes e os governantes seus escravos, vejo a salvação da cidade e a acumulação nela de todos os bens que os deuses costumam dar às cidades” (Leis, 715d).
O segundo:
“é mais útil ser governado pelo melhor dos homens ou pelas leis melhores? Os que apoiam o poder régio asseveram que as leis apenas podem fornecer prescrições gerais e não provêm aos casos que pouco a pouco se apresentam, assim como em qualquer arte seria ingênuo regular-se conforme normas escritas (…) Todavia, aos governantes é necessária também a lei que fornece prescrições universais, pois melhor é o elemento que não pode estar submetido a paixões que o elemento em que as paixões são conaturais. Ora, a lei não tem paixões, que ao contrário se encontram necessariamente em cada alma humana” (Política, 1286a).[2]
Ainda segundo Norberto Bobbio, o principal argumento em favor da tese contrária à da superioridade do governo dos homens sobre o governo das leis aparece na crítica que, nesta passagem, Aristóteles dirige aos defensores do poder régio. A crítica é claramente dirigida à tese sustentada por Platão no Polítco. Este diálogo platônico propõe-se a estabelecer a natureza da “ciência regia”, ou seja, daquela forma de saber científico que permite, a quem a possua, o exercício de um bom governo.
Depois de ter afirmado que faz parte da ciência regia a ciência legislativa, o Forasteiro completa: “Mas o melhor de tudo, parece, não é que as leis contem, mas que conte, bem mais, o homem que tem entendimento, o homem régio!”. A Sócrates, que pergunta por qual razão, o interlocutor responde: “Porque a lei jamais poderá prescrever com precisão o que é melhor e mais justo para todos, compreendendo aquilo que é mais conveniente”. Logo após sustenta com maior força que a lei, na medida em que pretende valer para todos os casos e para todos os tempos, é “semelhante a um homem prepotente e ignorante que não deixa a ninguém a oportunidade de realizar algo sem uma sua prescrição” (294ab).
Como de hábito, segue o exemplo clarificador:
“Do mesmo modo que o timoneiro, estando sempre em defesa do que é útil para a nave e os navegantes, sem necessidade de leis escritas mas tendo por norma apenas a arte, acaba por salvar os companheiros de nave, assim e deste preciso modo, será que não seria possível, da parte daqueles que têm tal atitude ao governar, emergir uma correta forma de governo, graças à força da arte, que é superior à força das leis?” (296e). [3]
Para o ilustre jusfilósofo italiano, quem sustenta a tese da superioridade do governo dos homens altera completamente a tese do adversário: o que constitui para este último o elemento positivo da lei, a sua “generalidade”, torna-se para o primeiro o elemento negativo, na medida em que, exatamente por sua generalidade, a lei não pode compreender todos os casos possíveis e acaba, assim, por exigir a intervenção do sábio governante para que seja dado a cada um o que lhe é devido. [4]
O outro, porém, por sua vez, pode defender-se alegando o segundo caráter da lei: o fato de ser “sem paixões” Com esta expressão, Aristóteles quer demonstrar que onde o governante respeita a lei não pode fazer valer as próprias preferências pessoais. Em outras palavras, o respeito à lei impede o governante de exercer o próprio poder parcialmente, em defesa de interesses privados, assim como as regras da arte médica, bem aplicadas, impedem os médicos de tratar os seus doentes conforme sejam eles amigos ou inimigos.
Enquanto o primado da lei protege o cidadão do arbítrio do mau governante, o primado do homem o protege da aplicação indiscriminada da norma geral — desde que, entende-se, o governante seja justo. A primeira solução subtrai o indivíduo à singularidade da decisão, a segunda o subtrai à generalidade da prescrição. Além do mais, assim como esta segunda pressupõe o bom governante, a primeira pressupõe a boa lei. As duas soluções são postas uma diante da outra como se se tratasse de uma escolha em termos absolutos: ou-ou. Na realidade, porém, ambas pressupõem uma condição que acaba por torná-las, com a mudança da condição, intercambiáveis.
O primado da lei está fundado sobre o pressuposto de que os governantes sejam maus, no sentido de que tendem a usar o poder em benefício próprio. Vice-versa, o primado do homem está fundado sobre o pressuposto do bom governante, cujo tipo ideal, entre os antigos, era o grande legislador. De fato, se o governante é sábio que necessidade temos de constringi-lo na rede de leis gerais que o impedem de avaliar os méritos e os deméritos de cada um? Certo, mas se o governante é mau não é melhor submetê-lo ao império de normas gerais que impeçam a quem detém o poder de erigir o próprio arbítrio à condição de critério de julgamento do que é justo e do que é injusto? [5].
Ainda segundo o citado autor, todo o pensamento político do medievo estaria dominado pela ideia de que bom governante é aquele que governa observando as leis de que não pode dispor livremente porque o transcendem, como são as proclamadas por Deus ou as inscritas na ordem natural das coisas ou ainda as estabelecidas como fundamento da constituição do estado (as leis, exatamente, “fundamentais”).
No De legibus et consuetudinibus Angliae, Henri Bracton enuncia uma máxima destinada a se tornar o princípio do estado de direito: “Ipse autem rex non debet esse sub homine sed sub deo et sub lege quia lex facit regem”. Não se podia enunciar com maior força a ideia do primado da lei: não é o rei que faz a lei mas a lei que faz o rei. [6]
Da Inglaterra, ainda segundo o ilustre jurista, o princípio da rule of law transfere-se para as doutrinas jurídicas dos estados continentais dando origem à doutrina, hoje verdadeiramente universal (no sentido de que não é mais contestada por ninguém em termos de princípio, tanto que quando não se a reconhece se invoca o estado de necessidade ou de exceção), do “estado de direito”, isto é, do estado que tem como princípio inspirador a subordinação de todo poder ao direito, do nível mais baixo ao nível mais alto, através daquele processo de legalização de toda ação de governo que tem sido chamado, desde a primeira constituição escrita da idade moderna, de “constitucionalismo”.
Existem duas manifestações extremamente reveladoras da universalidade desta tendência à submissão do poder político ao direito. A primeira é a interpretação weberiana do estado moderno como estado racional e legal, como estado cuja legitimidade repousa exclusivamente no exercício do poder em conformidade com as leis; a segunda é a teoria kelseniana do ordenamento jurídico como cadeia de normas que criam poderes e de poderes que criam normas, cujo marco inicial é representado não pelo poder dos poderes, como foi sempre concebida a soberania na teoria do direito público que se veio formando com o formar-se do estado moderno, mas pela norma das normas, a norma fundamental (Grundnorm), da qual dependem a validade de todas as normas do ordenamento e a legitimidade de todos os poderes inferiores. [7]
No entanto, uma fratura a essas ideias pode ser localizada na experiência teórica-jurídica-política engendrada por alguns para legitimar os fundamentos do exercício do poder pelos adeptos do nacional-socialismo. Colhe-se da obra de Mario G. Losano que:
“Os teóricos nacional-socialista censuravam os positivistas por operarem com conceitos abstratos.Visto que a nova teoria jurídica nacional-socialista pretendia seguir a via oposta, sua palavra mágica foi, portanto, ‘concreto’” [8].
Carl Schmitt ao expor em 1934 suas ideias sobre os ordenamentos concretos defendeu que “o direito não se baseava nem em normas positivas, nem em sentenças transitadas em julgado nos tribunais, mas nascia dos “ordenamentos concretos” da vida social, de modo que o direito positivo deveria estar em harmonia com a ordem interna da realidade ou, se não estava, deveria ser modificado de acordo com as exigências dessa mesma realidade. Tais ordenamentos concretos teriam a força de rejeitar as normas de leis gerais e abstratas que a eles se opõem a partir do exame da essência das coisas e sua global conexão de sentido e serviram, em última análise, como um dos métodos para intervir no direito vigente nos momentos de grandes e rápidas modificações, nos quais se acentua a divergência entre realidade social e direito positivo. [9]
Para Ronaldo Porto Macedo – de acordo com o modelo jurídico de Carl Schmitt – a regra (no ordenamento concreto) segue a situação mutável pela qual foi fixada. Uma norma governa uma situação somente até que o tipo concreto, pressuposto como normal, não foi eliminado. Por isso, para ele não existe norma aplicável a um caos; primeiro deve ser estabilizada uma ordem e o soberano é aquele que decide de modo definitivo se o estado de normalidade reina realmente. [10]
Não é difícil perceber que essa teoria se mostra completamente incompatível com qualquer ordem jurídica democrática fundada no princípio da legalidade estrita. Revela-se, com isso, que o principal argumento exposto pelo órgão especial para rejeitar o pedido que fora formulado de abertura de processo administrativo disciplinar por presumida violação ao dever de manter em segredo o conteúdo das gravações telefônicas interceptadas fundamentou-se, intuitivamente, em nítida teoria antidemocrática, que busca substituir o governo fundado no estado democrático de direito por um governo baseado na autoridade moral de seu governante e que não encontra ampara nas teorias modernas de exercício do poder.
O legítimo sentimento social de enfrentamento das mazelas da corrupção em nossa sociedade não deve ser usado como fundamento para subverter-se a ordem jurídica e invocar exceções ou estados de necessidade onde eles realmente não existem. Aliás, para espancar dúvidas, diga-se, com todas as letras, não haver, em nosso ordenamento jurídico, qualquer espaço para aplicação das ideias relacionadas ao estado de exceção, pois até elas foram estritamente disciplinadas pela própria Constituição quando cuidou das situações de crise e respectivos instrumentos normativos – o estado de defesa e o estado de sítio – e os submeteu aos princípios da necessidade; temporariedade e proporcionalidade. [11]
A Justiça Espanhola lidou com um caso parecido. Um juiz famoso, de reconhecida atuação na responsabilização de violadores de direitos humanos, foi condenado pelo Supremo Tribunal Espanhol a onze anos de interdição do exercício da magistratura por abuso de poder por ter sido considerado culpado de ter ordenado escutas ilegais no âmbito do inquérito relacionado a caso que envolvia acusações de corrupção a dirigentes de partido político no governo de determinada região.
O citado magistrado foi denunciado pelo advogado de um dos acusados por ter ordenado a interceptação de conversas dos presos relacionados ao caso com os respectivos advogados, o que, em tese, configuraria prevaricação e vulneração de intimidade. As escutas foram anuladas e a acusação reconhecida pois entendeu-se que o citado magistrado ordenara as escutas a partir de uma interpretação claramente errônea da lei e que violara o direito fundamental de defesa dos acusados. Apesar do prestígio do citado juiz, a Corte não invocou a teoria da exceção para livrá-lo de um juízo de responsabilização. No caso da Espanha triunfou o Estado Democrático de Direito e o princípio caro a uma Monarquia Constitucional ou a uma República: a de que todos, sem exceção, estariam submetidos ao império da lei.
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Silvio Luís Ferreira da Rocha é Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC-SP, Doutor e Livre-Docente em Direito Administrativo pela PUC-SP. Professor de Direito Civil e Direito Administrativo da PUC-SP. Juiz Federal Criminal em São Paulo. Ex- Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça.
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Silvio Luís Ferreira da Rocha é Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC-SP, Doutor e Livre-Docente em Direito Administrativo pela PUC-SP. Professor de Direito Civil e Direito Administrativo da PUC-SP. Juiz Federal Criminal em São Paulo. Ex- Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça.
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[1] Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo, 6ª edição, Editora Paz e Terra, p.151.
[2] Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo, 6ª edição, Editora Paz e Terra, p.151.
[3] Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo, 6ª edição, Editora Paz e Terra, p.153
[4] Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo, 6ª edição, Editora Paz e Terra, p.153
[5] Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo, 6ª edição, Editora Paz e Terra, p.154.
[6] Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo, 6ª edição, Editora Paz e Terra, p.155.
[7] Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo, 6ª edição, Editora Paz e Terra, p.156.
[8] Sistema e Estrutura no Direito, vol. 2, o Século XX,p.211.
[9] Mario G. Losano, Sistema e Estrutura no Direito, vol. 2, o Século XX, p.212-218.
[10] Ronaldo Porto Macedo, O Decisionismo Jurídico de Carl Schdmit, p.213, disponível emwww.scielo.br/pdf/in/n.32pdf.
[11] Aricê Moacyr Amaral dos Santos, O estado de emergência, Sugestões Literárias, 1981, p.33.
[Silvio Luís Ferreira da Rocha é Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC-SP, Doutor e Livre-Docente em Direito Administrativo pela PUC-SP. Professor de Direito Civil e Direito Administrativo da PUC-SP. Juiz Federal Criminal em São Paulo. Ex- Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça].
(Fonte: site jurídico Justificando; texto reproduzido no Jornal GGN - aqui).
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