sábado, 24 de setembro de 2016

O ÚLTIMO CAPÍTULO DO LIVRO SOBRE O GOLPE DE 2016 NO BRASIL


O golpe e o contragolpe

Por Raimundo Rodrigues Pereira

A ultima fase do julgamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff, realizada no plenário do Senado sob o comando do presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, durou uma semana. Começou na manhã de uma quinta-feira, 25 de agosto, teve um intervalo num domingo, 28, e terminou numa tarde de quarta, dia 31. Foram cerca de 70 horas, com sessões de manhã, à tarde e à noite. Essa maratona pode ser dividida em três partes. Na primeira, nos três dias iniciais, foram ouvidas as testemunhas da acusação e da defesa e a grande novidade, já resumida no capitulo anterior de nossa história, foi uma espécie de desmoralização das duas únicas testemunhas da acusação, Julio Marcelo de Oliveira, promotor público junto ao Tribunal de Contas da União, desqualificado por Lewandowski da condição de testemunha para a de informante, por ter participado da mobilização pela rejeição das contas da presidente de 2014, e Antônio d´Ávila, auditor daquele tribunal, por ter confessado ser o autor de parte da representação pedindo a investigação das pedaladas fiscais que ele próprio foi o encarregado de investigar. Na segunda, dia 29, durante mais de doze horas, a presidente respondeu a perguntas dos senadores. E na terceira etapa, dias 30 e 31, os senadores votaram duas vezes: primeiro, pela cassação do mandato da presidente –  61 votos a favor e 20 contra; e depois, sobre sua inabilitação para o exercício de funções públicas, entre as quais a de candidatar-se – 42 votos a favor, 36 contra e 3 abstenções. E como, nos dois casos, da perda do mandato e da inabilitação para cargos públicos, era necessário maioria de dois terços, 54 senadores, a presidente perdeu o mandato mas não perdeu os direitos políticos. Neste capítulo final trataremos do depoimento da presidente e da confusão provocada pelo chamado fatiamento  da punição que lhe foi aplicada.
1.
“Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes”
A fala contra o golpe
A presidente começou seu depoimento na segunda feira pouco antes das dez da manhã e terminou de responder às perguntas dos senadores pouco antes da meia noite, já quase sem voz. Mas, desde o início, disse que não esperassem dela “o obsequioso silêncio dos covardes”. E, de fato, não se acovardou. Muitos, entre seus próprios apoiadores, queriam uma conciliação com os ofendidos pela classificação de seu impeachment iminente como golpe. A primeira dos acusadores a interrogá-la, a senadora Ana Amélia (PP-RS), atacou o fato de Dilma ter feito, na sua defesa, lida inicialmente, referência ao golpe. Disse que a própria presença da presidente no Senado legitimaria o julgamento e derrubaria “a narrativa de Sua Excelência e do seu Partido quando insiste, como fez agora em seu pronunciamento, em fazer a referência a golpe”. Dilma respondeu sem hesitação: “Eu me lembro, Senadora, que uma das coisas que existia, logo após a minha  prisão em 1970, era dizer que no Brasil não tinha nem ditadura, nem presos políticos. Foi uma luta sistemática nossa para demonstrar que havia ditadura e presos políticos”. O presidente Lewandowski interveio logo após a resposta da presidente à senadora Ana Amélia, tentando amenizar as suas declarações. “Verifico desde logo, para aplainar qualquer tipo de perplexidade ou dúvida que possa haver, que a Senhora Presidente referiu-se aos conceitos que enunciou em tese”. E repetiu: “em tese”. De fato, a presidente sempre se referiu a um golpe em andamento, ainda a ser consumado, tentando evitar que ele se consumasse e, mesmo ao final, quando deixava o plenário, apelou aos senadores para que não o consumassem. E, de fato, também, até a tarde de quarta-feira, quando afinal se votou pelo impeachment, o golpe ainda existia apenas em tese, como pretendeu Lewandowski.
Mas, o que parece curioso é o fato de um jurista como ele, com todas as condições de ver que os acusadores fugiam da obrigação de provar a existência dos tais crimes de responsabilidade da presidente, não tenha feito nenhuma advertência a eles quanto à necessidade dessas provas. Algo como o juiz de um tribunal de juri que não adverte a jurados, evidentemente interessados em condenar José pela morte de João, sem provar, inicialmente, sequer que João está morto. A presidente não cobrou de Lewandowski qualquer ação no sentido de pressionar seus acusadores a apresentarem as provas dos crimes. Mas não fugiu da sua argumentação central, de que estava em curso um processo de golpe parlamentar. A não aceitação do termo golpe pelos acusadores tinha o propósito de encobrir um fato, a construção de crimes de responsabilidade abstratos, sem base concreta, disse ela.
É claro que a lei prevê a existência de crimes de responsabilidade pelos quais se pode declarar o impeachment de um presidente. Mas é preciso provar a existência concreta desses crimes.  Disse e repetiu a presidente: “No presidencialismo, previsto na  nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um presidente. Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o Chefe de Estado e de governo por não concordarem com o conjunto da obra. Quem afasta o Presidente pelo conjunto da obra é o povo – e só o povo – nas eleições”, disse Dilma. “Não há respeito ao devido processo legal quando julgadores afirmam que a  condenação não passa de uma questão de tempo, porque votarão contra mim de qualquer jeito. Nesse caso, o direito de defesa será exercido apenas formalmente, mas não será apreciado substantivamente nos seus argumentos e nas suas provas. A forma existirá apenas para dar aparência de legitimidade ao que é ilegítimo por essência”. “Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e os prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita a justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E, no caso, jamais haverá justiça na minha condenação”.

A contestação ao chamado crime dos decretos
Em resposta a vários senadores que apenas encenavam reafirmar a existência dos crimes de responsabilidade falando, de modo genérico, que a Constituição e as leis fiscais tinham sido violadas, a presidente repetiu, à exaustão, até o final de suas doze horas de depoimento, as contraprovas básicas de que os tais crimes não existiram, como aliás, já tinham feito suas 38 testemunhas, na fase de coleta de provas como provamos em nossa série de artigos. O grande momento da presidente nessa contestação foi a resposta dada ao senador Antônio Anastasia, do PSDB de Minas sobre o crime que teria cometido ao assinar decretos de crédito suplementar ao orçamento sem autorização do Congresso. Anastasia foi o relator da Comissão Especial do Impeachment do Senado, na qual as provas e contraprovas foram examinadas.
Pode-se dizer que Anastasia foi o mais sofisticado dos acusadores da presidente na tentativa de provar a ilegalidade dos decretos de crédito suplementar assinados por ela. Ele fugiu da argumentação, usada na inquirição da presidente por muitos do bloco pro-impeachment, que sustentava ter a presidente usurpado as funções do Congresso para promover uma gastança desenfreada, por sua vez responsável pela crise econômica vivida pelo País. Anastasia tinha condições de saber, mais do que ninguém, que esse tipo de argumentação era visivelmente falso, além de ridículo: os três decretos assinados pela presidente e tidos por ilegais mexiam com apenas 0,15% do orçamento. E, além disso, na soma de todas as centenas de pequenas ações orçamentárias que comandaram, nenhum centavo a mais foi gasto além do previso na Lei Orçamentária de 2015.
Anastasia disse inicialmente, no seu questionamento da presidente – de maneira clara, para quem queira entender – que fugia desses obstáculos reais, óbvios. Iria tratar apenas dos aspectos formais da edição dos tais decretos e não de sua execução ou gastos que teriam comandado: “Nestes decretos, insisto em repetir, o que se discute não é a sua execução, ou a realização ou não de seu respectivo gasto, ou mesmo os aspectos relativos ao seu eventual contingenciamento, mas sim à sua simples abertura, como explicitamente reza o inciso V, do art.167: abrir crédito por decreto em desacordo com a autorização legislativa é crime de responsabilidade por ferir a Lei Orçamentária”. A seguir, como que deu um passo atrás: reconheceu que a lei orçamentária permitia a abertura dos decretos: “A autorização para a abertura dos decretos consta, em caráter excepcional, do art. 4º da Lei Orçamentária de 2015, mas condicionada à compatibilidade com a meta estabelecida para o exercício, e cuja trajetória deve ser avaliada periodicamente. Assim, abrindo o crédito nesse modelo [o modelo de análise que ele impôs de início], o primeiro passo é indagar se existe essa compatibilidade”. E, para concluir, disse que o essencial não era se o decreto tinha sido executado e não tinha provocado qualquer gasto, mas o aspecto formal de ter sido autorizado, como já revelara em sua consideração inicial. E tomou como exemplo um dos decretos, o de 27 de julho, no valor de 1,7 bilhão.
A exposição de motivos do decreto, disse Anastasia, “foi assinada em 9 de julho pelo então Ministro Nelson Barbosa, encaminhada à Presidência da República, lá aportando no dia seguinte, 10 de julho. Naquela data, a meta de resultado primário era de 55 bilhões. O decreto foi publicado em 27 de julho. E o que ocorreu entre 10 e 27 de julho, enquanto a minuta do decreto estava na Presidência da República sob direta responsabilidade de Vossa Excelência? Foi enviado ao Congresso Nacional o PLN 5 [projeto de lei número 5], alterando a meta de 55 bilhões para 5 bilhões. Portanto, a partir de 22 de julho, Vossa Excelência já tinha plena consciência de que a meta fixada pelo exercício de 55 bilhões não seria mais cumprida. Desse modo, não mais procedia a conclusão constante da minuta de decreto de crédito suplementar, que este seria compatível com a obtenção da meta, e, ainda assim, em 27 de julho, o crédito foi aberto em flagrante violação da Constituição Federal”.
Ou seja, Anastasia concluiu que o problema não era a execução dos decretos nem o fato de eles não terem promovido qualquer gasto a mais, mas o de os créditos terem sido formalmente abertos. Dilma respondeu a esse formalismo ponto por ponto:
1) De fato a Constituição proíbe abertura de créditos suplementares sem autorização legislativa, mas, no mesmo trecho em que diz isso atribui ao Congresso o direito de dar essas autorizações, o que é feito na Lei Orçamentária Anual (LOA). Todos os anos essa lei é feita e aprovada pelo Congresso. Isso foi feito em 2015, na LOA do ano, que estabeleceu as condições para a abertura dos créditos. “Então, [para responder] à primeira questão, senador: nós abrimos crédito suplementar por decreto porque a LOA de 2015 assim autorizou”. Ou seja, porque o Congresso autorizou.
2) A lei de fato diz que a abertura desses créditos têm de ser compatível com a obtenção da meta de resultado primário, fixada por outra lei a LDO – Lei de Diretrizes Orçamentárias. Mas quem regulamenta o controle da execução do resultado primário é a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), “lei central do processo de execução orçamentária”, disse a presidente. É a LRF que garante a compatibilidade da execução orçamentária com o cumprimento da meta fixada na LDO. A LRF regula a edição dos decretos da programação orçamentária e os de contingenciamento, ou seja de fixação de tetos para a realização das despesas e assim impedir o descumprimento da meta ao se concretizar a programação. E, Dilma concluiu: foi essa programação e foram esses decretos que garantiram que nenhuma despesa, de nenhum dos centros de execução orçamentária, tivesse gastos acima dos fixados na LOA aprovada pelo Congresso no início de 2015.
Na sua exposição inicial a presidente já tinha explicado em detalhes a mudança de meta de superávit primário proposta em meados de 2015 e o porque de não ter feito um corte drástico de despesas naquela ocasião: “Cobram que, quando enviei ao Congresso, em julho de 2015, o pedido de autorização para reduzir a meta fiscal, deveria ter imediatamente realizado um novo contingenciamento. Não o fiz porque segui o procedimento, que não foi questionado pelo Tribunal de Contas da União ou pelo Congresso Nacional na análise das contas de 2009 [naquele ano o governo Lula pediu a mudança de meta e passou a trabalhar com ela logo a seguir e, posteriormente, o Congresso aprovou o novo valor do superavit primário]. Além disso, a responsabilidade com a população justifica também nossa decisão. Se aplicássemos, em julho [de 2015], o contingenciamento proposto pelos nossos acusadores, cortaríamos 96% do total de recursos disponíveis para a despesa da União. Isto representaria um corte radical em todas as dotações orçamentárias dos órgãos federais. Ministérios seriam paralisados, universidades fechariam suas portas, o Mais Médicos seria interrompido, a compra de medicamentos seria prejudicada, as agências reguladoras deixariam de funcionar. Somente depois que assinei esses decretos é que o Tribunal de Contas da União mudou a posição que sempre teve a respeito da matéria.
É importante que a população brasileira seja esclarecida sobre este ponto: os decretos foram editados em julho e agosto de 2015 e somente em outubro de 2015 o Plenário do Tribunal de Contas da União aprovou a nova interpretação”. Ou seja: foi pela aplicação retroativa de uma decisão do TCU sobre as contas do governo que os decretos foram considerados ilegais.
A contestação à tese dos empréstimos tomados de bancos públicos
Na outra grande acusação contra a presidente, sobre os atrasos de pagamento do governo ao Banco do Brasil por subvenções nos juros de créditos tomados do banco estatal por agricultores, no chamado Plano Safra, os ataques mais contundentes partiram dos senadores João Agripino (DEM-RN) e Ronaldo Caiado (DEM-GO). Agripino apresentou uma conta inédita “de saques contra os bancos públicos” nesses atrasos: em 2011, R$ 10 bilhões; em 2012, R$ 15; em 2013, R$ 30; em 2014, R$ 55; e, em 2015, R$ 60 bilhões. Caiado, por sua vez, trouxe outra novidade. No caso do Plano Safra, disse ele, é necessário “que todos prestem atenção”, porque os atrasos só ocorreram em relação aos bancos públicos. “Todos os bancos privados foram pagos mensalmente [...] Todos esses bancos praticaram equalização da taxa de juros. Por que a preferência aos bancos privados em detrimento aos bancos oficiais?”
A presidente já tinha, na sua intervenção inicial, negado a existência de crime de responsabilidade que, segundo os acusadores, teria cometido na execução do Plano Safra em 2015. Tinha dito, então: “Como minha defesa e várias testemunhas já relataram, a execução do Plano Safra é regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à própria atuação do Banco do Brasil. A Presidenta da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Parece óbvio, além de juridicamente justo, que eu não seja acusada por um ato inexistente.”
Os acusadores alegaram que atrasos de pagamento do Tesouro ao BB por essas subvenções constituíam operações de crédito, proibidas pela LRF e enquadradas como crime de responsabilidade. Dilma tinha dito, ainda na intervenção inicial citada, que o crime surgira de mais uma nova interpretação do TCU aplicada retroativamente. Ela explicou: a interpretação surgiu numa decisão do TCU de abril de 2015. O governo apelou da decisão, logo depois. Conseguiu um efeito suspensivo. Em outubro o TCU anunciou que a decisão era definitiva. Dilma contou que, então, solicitou ao Congresso autorização para pagamento dos passivos e definiu em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. “Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes. Não é possível que não se veja aqui também o arbítrio deste processo e a injustiça desta acusação”.
A presidente aproveitou o debate com Agripino e Caiado para contestar o fato de o TCU ter classificado os atrasos nos pagamentos do Tesouro ao Banco do Brasil como operação de crédito. “Eu quero citar algumas instituições que afirmaram, ao longo do processo, que não é operação de crédito:
*Todo o corpo técnico do Ministério da Fazenda, do Planejamento, da AGU [Advocacia Geral da União] e da Casa Civil.
*A Secretaria do Tesouro que disse “não é operação de crédito”, em nota elaborada após o meu afastamento.
*O Ministério Público do Distrito Federal em uma ação criminal que se tentava mover contra seu governo.
*Auditores da Serur – Secretaria de Recursos do TCU, à qual o governo recorreu e cuja opinião foi ignorada pelo comando daquela unidade.
*Grandes especialistas na matéria, de várias universidades brasileiras, como Heleno Torres, Misabel Derzi, Carlos Nascimento e Ricardo Lodi.
“Por que não é operação de crédito?”, Dilma perguntou e respondeu: “Porque a União não toma nada emprestado do Banco do Brasil. O Banco do Brasil [é que] empresta a produtores. O que nós fazemos é a equalização dos juros. Nós pagamos a diferença entre o juro de  mercado e o juro que o Plano Safra estipula, após ouvido o Conselho Monetário Nacional”.
Nas respostas a Agripino e Caiado, especificamente, ela foi contundente. Disse a Agripino: “Ora, Senador, primeiro, a conta do senhor é muito estranha, porque o TCU apurou um valor de 55 bilhões ao final de 2015 como sendo [o valor de] todos os passivos pendentes [desde 2008]. Se a gente for somar [os números de Agripino] deve dar uns 200 bilhões”. E disse a Caiado: “O Plano Safra, da agricultura comercial e da agricultura familiar é, fundamentalmente, desde a sua criação [no governo Itamar Franco, em 1992] executado substantivamente pelo Banco do Brasil. Os bancos privados [que participam diretamente dos empréstimos são] dois bancos cooperativos que têm uma participação menor, bem menor do que 10% do total dos empréstimos. E os demais bancos privados entram via Banco do Brasil”. O BB pode transferir para algum banco privado interessado a execução de parte dos empréstimos, principalmente no que se refere a financiamento do investimento e especificamente de bens de capital, ela esclareceu a seguir. “O Tesouro não se relaciona diretamente [com os bancos privados]. Então, não é possível dizer que nós tivemos um tratamento diferente [para os bancos privados]”.
A presidente já tinha falado, após uma intervenção de sua apoiadora e ex-ministra Kátia Abreu, da evolução dos volumes de empréstimos no Plano Safra, que foram de cerca de 2,5 bilhões de reais em 2003, no primeiro ano do governo Lula, para 200 bilhões em 2015, o primeiro ano do seu segundo mandato. Aproveitando a resposta a Caiado e o fato de que podia falar sem limite de tempo, a presidente explicou também do porque os pagamentos das subvenções do Plano Safra não serem feitos de imediato. O Plano, disse ela, envolve milhares, “para não dizer milhões” de agricultores “pequenos, médios e grandes”. São várias formas de crédito, de prazos dos empréstimos e de bônus. Há por exemplo, bônus da adimplência, pelo fato de o pagamento ter sido feito no prazo. Depende do segmento, do tamanho do produtor, do produto que é financiado.
A respeito do mesmo assunto, a senadora Lúcia Vânia (PSB-GO) perguntou à presidente do porque os atrasos de pagamentos, pelas subvenções aos juros devidas pelo governo aos bancos públicos, não constarem das estatísticas do Banco Central e, assim, terem alterado, para melhor, os resultados do superávit primário. A presidente disse que a metodologia de formação das estatísticas do BC tinha sido essa, sempre. O TCU só questionou essa formulação, de forma final, em outubro de 2015. “Até então, nem o Senado nem tampouco o TCU tinham, ao longo do tempo, falado nada [contra] essa metodologia do Bacen”. “Do ano de 2015 para frente, nós acertamos [os pagamentos], disse a presidente. Agora, se paga”. “Como?” Dilma perguntou e explicou: “Vence de seis em seis meses. O banco apresenta [a conta dos subsídios de juros ao Tesouro] e, a partir daí, são cinco dias para pagar. Mas é de seis em seis meses que vence [o prazo para pagamento das subvenções de juros ao BB]. 
Outros temas da presidente:
A defesa da LRF
A presidente Dilma Rousseff falou muito, nem sempre, nos seus improvisos, com um português escorreito que, como se sabe, não é o seu forte. Mas, sempre tratou de temas relevantes e com posições claras, para os que a ouviram com atenção. Ela fez, por exemplo, uma categórica defesa da Lei de Responsabilidade Fiscal, a despeito de seu partido, o PT ter votado contra essa lei. Ela, ao que tudo indica, não vê o contexto no qual a LRF foi criada e o seu papel, atual, de garantidora da manutenção no País, já por praticamente um quarto de século, da maior taxa de juros do planeta, como já se disse num dos capítulos de nossa história. Pela mesma razão, possivelmente, a presidente também não se referiu ao brutal custo do atual sistema de financiamento do governo, hoje de mais de 10% do PIB ao ano, quando mesmo países considerados superexplorados pelo capital financeiro, na União Européia, como a Grécia, por exemplo, pagarem por essa conta menos da metade do que é pago em nosso País. 
A avaliação da conjuntura
Mas, no que interessa para nossa história, deve-se destacar o fato de a presidente, em relação à conjuntura geral, ter atacado, com fatos, a avaliação, a um só tempo oportunista e grotesca, dos que, para justificar a cassação de seu mandato, atribuíram os problemas do País ao atraso no pagamento dos subsídios dados ao Plano Safra e à assinatura, por ela, de três decretos de crédito suplementar. A senadora Simone Tebet (PMDB-MS), por exemplo, uma das articuladoras da tática oposicionista de apresentar apenas duas testemunhas para depor diante do Senado, na certa porque, como a maioria dos senadores, considerava dispensável provar a existência dos crimes de responsabilidade, a certa altura disse à presidente que a maquiagem dos dados do governo tinha começado em 2009. Dilma retrucou: “Em 2009, senadora, ficamos diante da maior e mais grave crise que o mundo já enfrentou e nós ainda não saímos dela... É a quebra do Lehman Brothers [um dos grandes bancos de investimento de Wall Street] que abre a crise. [Mas] há um processo acelerado de contaminação internacional, cai de forma absolutamente acentuada o comércio internacional, afetando o mundo inteiro. O que faz o governo Lula? […] Faz isso [adota políticas anticíclicas] e, em 2010, temos uma significativa recuperação [… Mas] a crise continua lá fora e continua forte. Eu lembro à senhora que, em 2011, 2012, 2013, há a crise o euro [...] Então, Senadora, nós não inventamos a crise, não. Ela vinha por aí [… ] e nos atinge de forma forte […] a partir de outubro de 2014, você tem o fim do superciclo [de alta do preço] das commodities e a saída dos americanos da política de expansão do crédito, três dias depois que acabou o segundo turno [das eleições brasileiras daquele ano]. Isso deu um estremecimento geral em todas as moedas do mundo. E elas despencaram. [...] Depois disso, há a desaceleração da China, que é efeito e causa dessas coisas”.
A presidente disse coisa semelhante aos senadores José Medeiros (PSD-MT), Aécio Neves (PSDB-MG), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Ronaldo Caiado e outros. “Não inventamos isso, […] não inventamos o momento em que ocorreu. No final de 2014 não apenas nós, mas todo o mercado, acreditava que em 2015 haveria crescimento econômico, mesmo que pequeno [e não o que ocorreu, uma queda de 3,6% do PIB]. Então, é muito difícil começar-se a discussão dizendo que a culpa da crise são três decretos e a operação do Plano Safra. 
O destaque ao papel de Eduardo Cunha
A presidente respondeu duramente também às acusações mais políticas, que lhe fizeram, destacadamente, os senadores peessedebistas Aécio Neves, que ela derrotou nas eleições de 2014, e José Aníbal, que conhece há décadas e foi seu companheiro de movimento estudantil na luta contra a ditadura. Aécio citou o fato de a presidente ter dito que os derrotados nas urnas em 2014 – como ele, é claro - não tinham se conformado com a derrota nas eleições e se empenharam em dificultar seu governo. José Aníbal, sobre o mesmo assunto, disse que Dilma, nas suas falas, tentava terceirizar culpas que seriam apenas dela mesma. Dilma respondeu: “O que eu tenho dito, afirmei no meu discurso e reafirmo aqui para o senhor, é que, a partir do dia seguinte da minha eleição, uma série de medidas políticas para desestabilizar o meu Governo foram tomadas, infelizmente.
A presidente fez uma extensa lista dessas medidas: de contestação de sua eleição, com pedido de recontagem dos votos, de auditoria nas urnas e nas contas de sua campanha; de paralisação do governo com a não instalação de comissões do Congresso essenciais para o exame de projetos do executivo e com a aprovação de pautas completamente opostas ao que o governo pretendia, as chamadas “pautas bombas”, de elevação de gastos e não de contenção e ajuste, como se queria. Nesse aspecto, disse a presidente, a eleição de Eduardo Cunha para Presidente da Câmara, em fevereiro de 2015, tem um significado especial. Cunha, disse Dilma, foi “o vértice da sua aliança golpista”, da articulação que levou à perda da maioria parlamentar do governo e da construção do “clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014”.
Respondendo ao senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) que disse ter o impeachment nascido da livre manifestação do povo nas ruas, a presidente declarou: “ Nenhum de nós aqui, Senador, é ingênuo de não saber quem é o responsável pela aceitação desse processo de impeachment […] até […] um dos acusadores, aqui presidente [ a presidente não citou mas se referia, claramente, ao jurista Miguel Reale Júnior, um dos assinantes do pedido de impeachment, que estava no plenário do Senado] declarou à imprensa que a aceitação do meu pedido de impeachment [era] uma chantagem explícita do ser Eduardo Cunha”. 
A homenagem às mulheres
“As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. Cobriram-me de flores e me protegeram com sua solidariedade. Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher Presidenta da República”, disse a presidente ainda, como um reconhecimento e homenagem. Destaque-se, na batalha em sua defesa no Senado, tanto no plenário como na Comissão Especial do Impeachment, o papel das senadoras Fátima Bezerra (PT-RN), Gleisi Hoffmann (PT-PR) e Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM)
2.
A trama que fatiou a condenação de Dilma Rousseff e preservou seus direitos políticos
A manutenção dos direitos políticos da presidente Dilma Rousseff foi recebida com indignação pelos representantes da direita mais ideológica. Disse O Estado de S. Paulo, com certeza o principal representante dessa posição no País, no seu editorial principal, no dia seguinte à votação do impeachment: “Todo cidadão honesto deste país há de estar estupefato com o desfecho do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Malgrado o fato de que a petista finalmente teve seu mandato cassado, levando alívio ao País, tão maltratado pela incúria administrativa e pelo desleixo moral da agora ex-presidente e de seu partido, um punhado de notórios personagens da vida política – desses que não se consegue identificar bem na escala biológica, porque são ao mesmo tempo animais de pluma, couro e escama – aproveitou a deixa para urdir uma maracutaia digna de uma república bananeira. O objetivo, claro, foi beneficiar todos os políticos facínoras que a Justiça está por alcançar. Mas o resultado da trama, do qual essa chusma de irresponsáveis talvez nem tenha se dado conta, é que o governo de Michel Temer, do qual vários deles esperam fazer parte e colher seu quinhão, corre o risco de terminar antes mesmo de começar [...] Como toda maquinação, esta não ficou clara senão pouco a pouco, minuto a minuto, para assombro geral, em meio ao drama da votação que determinou o impeachment de Dilma no Senado”.
O Estadão, que esta série de artigos acompanhou no dia a dia, ao longo de todo o processo de impeachment no Senado, fez um péssimo trabalho de cobertura jornalística desse grande acontecimento político. Basicamente, fez apenas um levantamento diário, geralmente de mais de meia página do jornal, sobre o placar do impeachment, no qual mostrava a foto e o nome dos senadores, separados em três categorias, a dos que votariam pela cassação do mandado da presidente, dos que votariam contra e dos ainda indecisos ao longo do processo. Não fez, no entanto, ao contrário do que fizemos, um trabalho de reportagem sobre a produção das provas da existência dos crimes de responsabilidade, para o qual bastava escalar um de seus muitos repórteres para acompanhar os trabalhos da CEI, a comissão na qual provas e contraprovas foram apresentadas. Com esse editorial de 1 de setembro, o tradicional jornalão paulista, além de manifestar seu horror pela não cassação dos direitos políticos da presidente, erra, também, ao dizer que a decisão do fatiamento foi uma trama urdida de ultima hora.
Muita coisa ainda tem de ser investigada sobre a cassação do mandato da presidente Dilma Rousseff. O deputado Eduardo Cunha promete, com seu reconhecido oportunismo, aos brasileiros, para este Natal, um livro no qual contará tudo que sabe sobre a eleição de Michel Temer. E, com certeza, ele sabe muito. Como disse o deputado Paulinho da Força, do partido Solidariedade, de São Paulo, em novembro de 2015, pouco antes de Cunha aceitar a ultima forma do pedido de impeachment da trinca Janaína Paschoal, Hélio Bicudo e Miguel Reale Júnior: “Nós achamos que ele é a única pessoa que pode iniciar o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Minha estratégia é segurar Cunha para derrubar a Dilma”.
Para a versão final desta série, a ser transformada em livro, vamos examinar outros detalhes da trama pelo impeachment que envolveu lideranças de vários partidos e diversos ativistas ligados ao TCU e não apenas as duas testemunhas – Júlio Marcelo e Antônio D´Ávila, que mostraram seu rosto no Senado e dos quais falamos no início deste texto. O ministro Augusto Nardes, dessa corte, por exemplo, foi o relator da decisão do TCU de rejeitar as contas da presidente em meados de 2015 e, com a posse de Temer na presidência, quando este nomeou para ministro do Trabalho, o pastor Ronaldo Nogueira, teve o irmão, Carjar Nardes, alçado ao posto de deputado federal, pelo PP gaúcho. O deputado Paulo Pimenta (PT-RS), gaúcho como Nardes entrou com ação no STF contra a decisão de Temer de nomear Nogueira, apontando-a como sendo um desvio de finalidade. O objetivo verdadeiro da ação seria premiar o relator da rejeição das contas da presidente em 2014, considerada por alguns ativistas pro-impeachment, como a “bala de prata” que possibilitaria derrubar Dilma Rousseff. Pimenta aponta Nardes como ativista do bloco pro-impeachment e diz que ele contribuiu para fazer com que a Comissão Mista do Orçamento atrasasse definitivamente suas deliberações até o final de março, para boicotar a votação das contas da presidente no plenário dessa comissão, tendo como relator Acir Gurgacz, senador pelo PDT de Rondônia, que dera um parecer favorável à aprovação.
Voltando à história do fatiamento, o Estadão diz que “o ministro Lewandowski, não conhecendo o artigo 52, aceitou o destaque que fatiou a votação. E assim, com a inocente anuência do presidente do Supremo Tribunal Federal, a Constituição foi reescrita no joelho”. Não é verdade. O fatiamento foi longamente analisado pelo presidente do STF e se aproveitou de fatos absolutamente claros, dos quais se aproveitaram três forças: o PT, o bloco dos contra o impeachment, ao final, 20 senadores e uma parte dos pro-impeachment, que aceitou a cassação do mandato da presidente mas quis mostrar uma posição diferenciada. O primeiro fato, mais simples de entender, é que o regimento do Senado Federal permite às bancadas dos partidos da casa o chamado DVS, destaque para votação em separado.
Ou seja, o regimento permite que se separe do proposição em votação, quando ela é apresentada ao plenário, um trecho para votação posterior, após a votação do conjunto da proposta. E foi isso o que foi apresentado logo na abertura da sessão final do julgamento, pouco depois das onze horas da manhã do dia 31 de agosto, quando o secretário da casa, o senador Vicentinho Alves (PR-TO), a pedido de Lewandowski, leu o requerimento de apresentação do DVS. “Requeiro, nos termos do art 312 parágrafo único do Regimento Interno do Senado Federal o destaque da expressão – aspas – "ficando, em consequência, inabilitada para o exercício de qualquer função pública pelo prazo de oito anos" – fechas aspas – do quesito que é objeto de julgamento por parte dos Senadores no processo de impeachment da Senhora Presidente da República Dilma Vana Rousseff”.
Imediatamente após a leitura do requerimento a acusação, através do senador, Cassio Cunha Lima falou contra a sua aceitação do requerimento. Cunha Lima disse que o requerimento estava fora de hora, que nas reuniões preparatórias do julgamento final, entre Lewandowski e os líderes dos partidos no Senado, ela não fora apresentada. Disse que, na ocasião, a acusação requereu uma modificação do texto a ser submetido à deliberação do plenário, a modificação foi feita e a defesa não se manifestou. O pleito que a defesa apresentava no momento, então, estava “precluso”, superado, disse Cunha. A seguir, ele leu o artigo 52 da Constituição, parágrafo único que, de fato, é claro.
O artigo diz, para o caso de impeachment: “limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”. Cunha Lima destacou, falando para Lewandowski: não se trata de uma pena principal com outra, acessória. Trata-se disse ele, destacando o “com”, da frase: “à perda do cargo ´com´ inabilitação por oito anos.”
Lewandowski deu a palavra à defesa e, nessa condição, falou o senador Randolfe Rodrigues (Rede, AP). Randolfe argumentou citando a sessão da pronúncia no Senado, que transformou a presidente em ré no processo, e tinha sido feita por partes, com o plenário apreciando separadamente cada uma das acusações formuladas. “Se assim foi possível na fase de pronúncia, por que não seria nesta fase da sentença final?” Randolfe apresentou a seguir os termos de Lei nº 10.079, de 1950, que rege o processo do impeachment, e que no seu art. 68, parágrafo único, difere da Constituição: prevê que o julgamento sobre a inabilitação seja feito de forma separada do julgamento sobre a perda do cargo.
Lewandowski, a seguir, disse que, dada a importância da matéria em exame, iria abrir a palavra para mais dois debatedores de cada lado. Os argumentos, de um lado e do outro, de certo modo se repetiram. Lewandoswski disse, então, que iria decidir a questão. Falou extensamente. Disse que, como presidente do Supremo Tribunal Federal, ao presidir a sessão de impeachment, não estava ali para exercer a função de juiz constitucional. “Não me cabe interpretar o art. 52, parágrafo único, da Constituição Federal”, disse, referindo-se ao artigo citado várias vezes pela acusação e que estaria sendo descumprido com a votação fatiada. As suas atribuições, ao presidir o processo de impeachment, disse Lewandowski, estariam “limitadas exclusivamente à solução de questões procedimentais e regimentais”. Por outro lado, continuou ele, ao desempenhar a função de presidir o Senado no impeachment, tinha procurado “manter a máxima isenção, imparcialidade e também coerência” nas decisões.
Lembrou a seguir, como fizera o senador Randolfe, falando pela defesa, que na sessão de pronúncia, “após muito debate”, tinha deferido quatro destaques, baseado no Regimento Interno do Senado. Em todos esses destaques, citou Lewandowski, nomeando cada um deles, estavam em jogo interpretações de textos constitucionais. “Não tenho como, Sras. Senadoras, Srs. Senadores, mudar de comportamento […] Se eu admiti os destaques, com fundamento no art. 312, em questões complexas, em questões que deviam ser contrastadas com a Constituição, não vejo como, sem faltar com a minha coerência e com o dever de juiz [...] não vejo como deixar de deferir agora também a apreciação deste destaque.
Lewandowski citou também o fato de que o Regimento Interno do Senado fora modificado por uma resolução do início de 2016 para garantir exatamente que “independerá de aprovação do Plenário” o requerimento de DVS “apresentado por bancada de partido”. Desse modo, ele concluiu “parece-me absolutamente claro e fora de qualquer dúvida” que os DVSs podem ser apresentados de duas formas, regimentalmente previstas, ou por por qualquer senador, caso em que há necessidade de aprovação em plenário, ou por bancada de partido, caso em que a concessão do destaque se processa de forma automática, dispensando aprovação pelo Plenário”.
Lewandowski rebateu ainda argumentos da acusação quanto ao fato de estar sendo votada uma questão muito mais relevante que uma proposição qualquer, disse ainda que o destaque pretendido não deixava sem sentido o texto remanescente, o que seria proibido pelo Regimento e finalmente rebateu o argumento de que o pedido de destaque era intempestivo, precluso, fora de hora. Referiu-se, então, ao fato de estar estudando a questão, “que já se antecipava nos jornais desde sábado (dia 27)”. Disse que tinha acordado muito cedo para se preparar para a sessão. Disse que tinha relido o relatório e o roteiro que tinha acertado com os líderes dos partidos no Senado para saber se havia de fato menção à possibilidade de destaques na votação final. Mas viu que “naquele dia não tínhamos nenhuma ideia ou antecipação de que poderiam existir destaques”, que “só vieram a ser apresentados no dia 9 de agosto, na sessão de pronúncia.”
Nessa sessão, disse, é que teve de “mergulhar mais verticalmente no texto do Regimento e me dei conta de que existem destaques, uns facultativos ou a juízo, ou à discricionariedade do Plenário, que são aqueles apresentados pelos Senadores, e outros compulsórios, obrigatórios, como esse que ora foi apresentado e que é de iniciativa de um partido político, de uma bancada”. Lewandowski disse também que a apresentação do destaque não vinha fora de hora porque o roteiro aprovado entre ele e os líderes dos partidos, logo depois de publicado no sítio eletrônico do Senado Federal, foi alterado a pedido dos advogados autores do pedido de impeachment. Ele próprio mandara fazer a alteração, ao reconhecer que não havia atentado para emenda feita na pronuncia, no relatório final da acusação aprovada, o relatório do senador Anastasia.
A acusação dá ao juiz os fatos; é o juiz que os enquadra “nos dispositivos legais que considerar aplicáveis”, disse, lembrando que, no caso, os juízes eram os senadores. Lewandowski lembrou, a propósito, também como o senador Randolfe, que a apresentação dos destaques para votação em separado poderia ser comparada aos quesitos a serem submetidos aos jurados. “Se nós tecermos uma analogia com o processo do júri, segundo o artigo 483 do Código de Processo Penal, o momento da quesitação é este, e as impugnações à quesitação poderiam, em tese, ser apresentadas, se fosse o júri, neste momento. E estão sendo agora apresentadas neste julgamento que se assemelha, de certa maneira, a um júri”.
Foi lembrada ainda, na discussão do fatiamento, a sessão de julgamento, no final de 1992, do impeachment do então presidente e atual senador, presente à sessão do julgamento de Dilma Rousseff, Fernando Collor (PTC-AL). Este então defendeu o não fatiamento, dizendo que, no seu caso, renunciou ao mandato pouco antes de seu pedido de impeachment ser iniciado no Senado. E atacou o fato de o então presidente do STF, Sidney Sanches, que comandava o julgamento, ter interrompido a sessão, para dar posse ao vice presidente [Itamar Franco] e retomado os trabalhos, em seguida, quando foram cassados os seus direitos políticos, numa atitude que, segundo ele, foi considerada “uma violência”, “absolutamente fora dos parâmetros mais abrangentes com que se queira interpretar a letra da Constituição”.
Collor concluiu que, para sua surpresa, no julgamento da presidente se colocava a mesma questão “de poder analisar de forma separada, quando a Constituição juntou, perda de mandato com inabilitação”. Lewandowski lembrou, porém que Collor apelou para o STF no sentido de rever a decisão do fatiamento. E que houve, então, um empate. E a questão só foi resolvida em nova sessão, com o voto de três ministros de outros tribunais superiores, convocados para o desempate. Sua conclusão, disse então Lewandowski, era de que se tratava de questão complexa que deveria ser submetida ao plenário do Senado. “As Sras. e os Srs. Senadores, que são aquilo que a doutrina chama de intérpretes originais da Constituição, V. Exas, mais do que ninguém, saberão extrair do texto constitucional a verdade que nele se contém”.
A votação foi feita, então, em duas etapas, a primeira com o texto, mas com o destaque para a votação em separado: o impeachment foi então aprovado por 61 votos a favor e 20 contra. A segunda, a votação do destaque: 42 votaram pela cassação dos direitos políticos da presidente por oito anos; 36 votaram contra; e 3 se abstiveram. Um encaminhamento especial, contra a inabilitação política: o do presidente do Senado, Renan Calheiros. “No Nordeste”, disse ele, "costumam dizer uma coisa com a qual eu não concordo: ´Além da queda, coice.' Nós não podemos deixar de julgar, nós temos que julgar, mas nós não podemos ser maus, desumanos.     O meu voto é contrário à inabilitação”. Com Renan, do PMDB, votaram contra a inabilitação mais sete senadores e mais dois se abstiveram. Todos tinham votado pela cassação do mandato.
De outros partidos, que também mudaram de posição e votaram contra a inabilitação: 3 do PR, 2 do PSB e 2 do PDT. Também mudou e foi contra a cassação dos direitos políticos da presidente o senador do PPS-DF, Cristóvam Buarque.
O presidente do STF, Ricardo Lewandowski, lavou as mãos e não interveio para  pressionar contra o visível descumprimento da Constituição – e do golpe, é claro – ao se derrubar no Senado uma presidente sem que a acusação tivesse, minimamente, provado a existência de crime de responsabilidade. E, também como Pôncio Pilatos, não se opôs ao fato de o Senado ter colocado acima da Constituição, uma lei, a 1079 – de fato um remendo feito numa lei de 1950, no governo Fernando Henrique Cardoso, a pedido do FMI e do governo americano. Não se sabe se o STF voltará a debater tanto uma coisa como a outra. Vários pedidos nesse sentido já deram entrada no tribunal. Além de lavar as mãos o STF também tem outra opção, parecida: de sentar sobre os pedidos até que Michel Temer termine seu mandato. 
(Raimundo Rodrigues Pereira, 76 anos, é jornalista profissional desde 1965. Trabalha na Editora Manifesto que está lançando neste mês de outubro uma campanha para a discussão de um novo semanário, em defesa da independência nacional, da democracia e da elevação do padrão de vida material e cultural dos trabalhadores. Neste texto, teve a colaboração do coletivo O Processo)
(Fonte: aqui).

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