Impeachment: a política e a mitologia
Por Ion de Andrade
Vivemos um divisor de águas. Ao usar essa expressão me vem a imagem do mar de lama da Samarco adentrando pelo mar azul. Do lado da lama o arbítrio, a mentira, as contas não declaradas no exterior, a manipulação... Do lado do mar azul a democracia e o futuro. Vou tratar esse divisor de águas em três dimensões, a da Política, a da Sociedade Civil e a Mitológica.
A dimensão da política
A vitória das forças golpistas por margem insuficiente para o impeachment na votação que escolheu a Comissão (embargada depois pelo STF) selou o destino do processo. Os votos deram ao governo mais do que o suficiente para garantir a permanência da presidenta Dilma no governo. Essas forças vitoriosas, embora minoritárias, governarão o Brasil e já o sabem. Razão por que não serão vencidas pela oposição. Não se trata do quanto a mídia poderá bater. O bolo do poder vai ser repartido após a derrota da oposição e das forças traidoras. Nesse sentido, o voto aberto, pela simples razão de que o governo detém as cartas decisivas, deverá mostrar placar mais largo do que o da última votação para a formação da Comissão. É que alguns deputados não vão querer estar fora da partilha que se seguirá à derrocada dos oposicionistas.
Se fosse no mercado de ações poderíamos dizer que vivemos uma mudança de posição entre acionistas. Um lado, o que fez o investimento errado, vai quebrar a cara e o outro lado já sabe disso, já fez os cálculos e espera pacientemente o encerramento do circo, pois ganhou a guerra. Entretanto, é interessante perceber o quanto essa oposição curta de análise parece eletrizada, o quanto são incapazes de antecipar duas jogadas. Diz Sun Tzu, n’A Arte da Guerra, que o general que mais calcula é o que vence a batalha. É interessante observar também o quanto esse longo esperneio da oposição pretendeu, na verdade, adiar a inevitável precificação da sua derrota eleitoral de 2014. Não se trata, pois, de uma vitória de Dilma, nem de uma vitória da esquerda, ou de uma derrota da direita enquanto tal. A prisão de Cunha e o fracasso do golpe sobre Dilma edificam um Brasil novo, onde a democracia venceu as trevas.
O fracasso do golpe será a derrota do PMDB “Cunhista” ou “Temerário” que perderá os seus cargos e a sua parte no Poder. A Roda da História os catapultou desse mundo. Picciani e Pezão devem estar a rir da perda da liderança na Câmara.
A Sociedade Civil
O elan que nos trouxe até aqui, saídos da ditadura, dificulta enormemente a aventura golpista. É difícil, por exemplo, num país como o Brasil golpear a democracia contra a posição oficial não somente da Igreja Católica, mas também do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil. É também difícil golpear sem qualquer apoio dos movimentos sociais, ao arrepio da OAB, dos melhores juristas brasileiros, dos trabalhadores, do MST e de tantos e tantos outros movimentos que perderíamos as contas. Não se trata apenas de que os movimentos sociais vão “botar gente na rua”, como temos realmente que botar. Se trata de que são forças permanentes a modelar o Brasil, ou como quer Gramsci, são a linha de trincheiras de uma sociedade que foi esculpida pela ideia do Poder pelo Consenso que se exprime na liturgia democrática. Essa imagem de trincheiras de Gramsci vem da Primeira Guerra Mundial ocorrida uma década antes dos seus escritos. A guerra de trincheiras é uma guerra assassina que pune com o massacre as tropas que se aventuram no combate aberto. Quem está nas trincheiras não precisa se expor, pois lhe basta atirar; Michel Temer ousou colocar o nariz de fora depois da Carta: foi vaiado e chamado de golpista. Ele prepara com pompa e circunstância a sua entrada na história como um traidor.
Questões simbólicas e mitológicas
O Brasil está profundamente enfermo. É interessante notar que os elementos que compõem o perfil de Eduardo Cunha o aproximam enormemente dos perfis dos líderes tenebrosos pintados nas obras de aventura e suspense. Cerca-o o dinheiro, o poder e o manejo da sacralidade em seu proveito e para assegurar para si total impunidade, ainda que ao custo da manipulação destruidora do maior patrimônio do Brasil: o seu duramente conquistado Estado de direito. A doença do Brasil se revela no fato de que esse personagem das trevas tem hoje um poder incomensurável, o que também vai de par com as lendas que contam a história de Reis tenebrosos e poderosos. Ocorre que, tal como nas histórias que representam esse tipo de cenário, o seu fim está próximo. Todos o sabem. Mas as forças das trevas parecem fortes e parecem construir vitória certa, isso agrega suspense às histórias. Para o seu mal Eduardo Cunha e os seus aliados representam o polo que será derrotado, permitindo o alvorecer de um país liberto dessa malignidade. Na psique humana o mito funciona como um padrão arquetípico, que faz com que o universo social conspire contra ele. É necessário que seja derrotado para que o Novo possa finalmente emergir. A lenda é uma mensagem ancestral, a comunicação de uma sabedoria milenar. Dilma, por sua vez, foi alçada por essa mesma lenda, apesar de tanta inabilidade, à condição da mocinha que deve ser salva do perigoso Dragão. O Sábio Leonardo Boff, seu aliado, com as suas longas barbas brancas, questiona ao Cosmos como seria possível a um bandido macular a Presidenta honrada. Alguém ainda fará um filme com essa trama. Aguarda-se apenas o desfecho batido dos filmes de aventura. A última cena do filme é a festa na rua.
PS: Aos que quiserem criticar o meu otimismo (lembro) que um artigo não é uma fotografia, é antes um vetor que contribui para a construção da situação alvo.
Meus agradecimentos a Petrônio Spinelli que me ajudou a escrever esse artigo. (Fonte: aqui).
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