quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

DA SÉRIE PRELEÇÕES SOBRE COMO INICIAR JORNADAS


"Ano novo, vida nova. De que adianta usar branco, pular sete ondinhas, vestir camisetas que pedem paz e levar um monte de hábitos desprezíveis para o ano que começa? Vamos entrar em 2016 livres de atitudes e manias que a gente nunca pensou que fossem tão daninhas, mas estão nos colocando no grupo de pessoas insuportáveis. Prepara!
1 — Não existe o jeito certo
Eu tenho métodos. O jeito certo de lavar louça. A ordem correta de tomar banho. A forma perfeita de organizar os armários. E todos eles foram criados durante os meus 30 anos de vida. Eles são uma mistura do que aprendi com meus pais, meus amigos, vi em filmes, li na internet, e do que faz mais sentido para mim.
Cada vez que meu companheiro vai fazer uma de suas atividades na casa eu preciso respirar fundo para não dizer que ele está fazendo errado. O motivo? Ele não está fazendo errado, apenas não está fazendo do meu jeito. E o meu jeito não é o certo.
Então não adianta a gente dizer que quer dividir tarefas de casa com o companheiro e cobrar que ele as faça no tempo em que a gente faria ou da forma que nós faríamos. Não existe um jeito certo. E se você escolheu estar ao lado daquela pessoa ela não pode ser tão incompetente a ponto de não conseguir desenvolver sua própria maneira de fazer certas atividades, certo?
Olhar para o outro com um pouco mais de generosidade cai bem em 2016 — e em todos os outros anos.
2 — Português correto não é mais importante do que ideias
Uma das coisas que mais me cansam nas discussões escritas sobre qualquer assunto nem é o famoso “vai pra Cuba, petralha” ou seus equivalentes, mas a tentativa de invalidar opiniões porque o português está errado.
A comunicação se baseia em algo simples: o ouvinte entender a mensagem que você quer passar. Deu certo? Pronto. O português estava errado? Foram usadas muitas gírias? Você escolheria outras palavras? O problema, infelizmente, não é da pessoa, mas seu. Lide com sua frustração ou escreva um texto próprio discutindo a questão.
No fundo estamos todos buscando entender nosso lugar na sociedade e quem somos. Essa sensação de não saber o que estamos fazendo ou de sermos fraudes bate em todo mundo de vez em quando, com ou sem português correto. Valorize o que as pessoas têm em comum, não o que as distancia.
Invalidar opiniões só porque você colocaria as informações de outra forma é elitismo, preconceito linguístico e idiotice. Não cai bem para começar o ano.
3 — Brincadeira só tem graça quando todo mundo mundo está rindo
Vou explicar isso da mesma maneira que explico aos meus filhos: se você está em um grupo de pessoas e alguém não riu da piada é porque tem um problema. Quando todo mundo ri de uma pessoa e ela não ri junto, temos um problema. Quando alguém deixa claro que não gostou da brincadeira e ela continua, temos um problema.
A piada ou a brincadeira passam a chamar abuso quando alguém se sente ofendido por ela. Não importa se você não teve a intenção de ofender, o que importa é como bateu no outro. E se você não quer mesmo ofender não vai se sentir mal em deixar de brincar daquele jeito, não é?
4 — Amor não é posse
Duas — ou mais — pessoas podem se amar o máximo possível, mas isso não dá o direito de nenhuma delas dizer o que a outra pode ou não fazer, como deve se portar, se vestir, com quem pode falar ou quais escolhas deve fazer.
Amor é algo lindo, mas não pode ser usado como desculpa para controlar o outro. É bem simples: se você ama a pessoa a ama porque a admira e confia em suas escolhas, não? Se você só a ama porque ela é bonitinha… bem, isso não é amor.
5 — Orientação sexual e identidade de gênero não são escolhas
Ninguém escolhe ser lésbica, bissexual, gay ou trans. A única escolha que existe aí é entre viver uma mentira ou ser quem você realmente é. E a escolha entre essas duas alternativas é bastante fácil, não?
A primeira coisa a fazer é parar de chamar de opção ou dizer que fulano decidiu mudar de sexo. Sabendo que não são escolhas você agora sabe que não faz sentido dizer essas coisas, né? E quando fala-se de orientação é no sentido de direcionamento, não quer dizer que alguém orientou aquela pessoa a seguir esse caminho, fechado?
Comece 2016 mais inteligente e pare de cagar regra sobre a vida alheia. 
6 — Ouvir o outro é mais importante do que falar
Tem uma técnica para criticar as pessoas de forma educada, do filósofo Daniel Dennett, que é incrível: (1) mostre que você entendeu muito bem o ponto do outro, (2) aponte o que você concorda (impossível não ter nada!), (3) mencione o que você aprendeu com aquela visão do assunto e então (4) faça sua crítica ou discorde com elegância. Isso te obriga a realmente ouvir o outro e levar em conta o que ele tem a dizer.
E quando a gente considera uma opinião contrária à nossa sem desacreditá-la no primeiro momento sabe o que acontece? Nossos argumentos ficam ainda mais fortes.
Além disso, é importante lembrar sempre que tem outra pessoa que vai receber sua mensagem, seja no meio que for. Ela é uma pessoa com sentimentos, história, família, problemas, desejos e sonhos. Por mais que você ache que não, ela é parecidíssima com você. Há necessidade de destruir alguém? A discussão é sobre quem está discutindo ou sobre o assunto que está sendo discutido? Pense mais antes de falar ou escrever.
Eu sei que é difícil ter essa paciência em discussões de internet, por exemplo, mas pode ser que aquela pessoa esteja falando pela primeira vez sobre o assunto que você fala sempre. E mudar o mundo dá trabalho, então força.
7 — Comprar não resolve vazio existencial
Seria simples demais se a gente conseguisse ficar feliz porque comprou uma roupa nova e essa felicidade durasse um bom tempo, mas ela não dura nem o tempo da fatura do cartão chegar e isso deve querer dizer algo…
Olhe para dentro com vontade e sinceridade para entender o que você precisa: e não é ter mais coisas que o coleguinha, isso eu posso garantir.
Existe um movimento incrível que busca sustentabilidade, ter uma vida mais equilibrada e sem desperdício. Ele ganha cada vez mais espaço e ajuda muito a entender esse momento que passamos a entender que o planeta não vai aguentar mais muito tempo se não começarmos a ter um consumo mais consciente. Você pode ler um pouco das coisas que a Fe Canna escreve na newsletter dela, seguir os posts do Um Ano Sem Lixo ou acompanhar o Mais Amor, Menos Lixo, fora todos os sites gringos que se baseiam na ideia.
8 — Não é mimimi só porque você não concorda
Cada pessoa vive de um jeito, tem uma história e teve certas experiências. Sabe aquele papo de que gato escaldado tem medo de água fria? Isso também acontece com pessoas. De acordo com o que vivemos nosso cérebro cria defesas para nos manter vivos.
O que pra você é algo simples e banal, como ir à praia, pode se tornar um momento difícil para quem quase se afogou lá. Na sociedade é igual. Certas coisas soam como mimimi para você, mas são importantíssimas para os outros. Se você nunca viveu aquilo como pode dizer que é mimimi? Não parece coisa de criança mimada? Pois é… em 2016 apenas pare.
9 — Pare de destacar as coisas ruins
Há centenas de pessoas produzindo conteúdo transformador. Outras centenas tocando iniciativas que transformam o mundo. Mais um monte de gente pensando em saídas para os problemas. E o que ganha mais destaque? O problema, a desgraça, a tristeza, as fotos de cachorros estrupiados e mulheres agredidas.
Há importância em divulgar essas coisas? Claro que sim. Tem gente que ainda não acredita que essas histórias sejam reais. Só que vamos combinar uma coisa: nesse novo ano tudo de ruim que for compartilhado vai ter, junto, uma solução. Aceita o desafio?
10 — Não repita frases feitas
Dentro dessa sua bela cabeça tem um negócio incrível chamado cérebro. Ele te dá uma capacidade poderosíssima: raciocinar. Você pega sua frase feita preferida, pensa bastante nela, vê se ela faz mesmo sentido e aí encontra sua própria maneira de dizer aquilo.
Por que isso é importante? Porque você vai pensar no que está dizendo e ver se realmente é algo interessante a se dizer. E isso vale para todo mundo: de reacionários a libertários.
Quando você começa a pensar no que está dizendo você cria senso crítico, para de comprar ideias alheias e torna o debate muito mais interessante e rico.
11 — Aceite que cada pessoa tem seu tempo
No ano passado você pensava diferente sobre alguns assuntos. No ano retrasado, sobre outros. E há 20 anos pensava totalmente diferente sobre quase tudo. Isso chama evolução. A gente vive mais, amadurece e vai mudando a forma de enxergar o mundo.
Cada pessoa tem seu tempo para isso. Algumas mudam primeiro coisas que você ainda vai mexer. Outras se transformam ao mesmo tempo que você. Há gente que só vai mudar as opiniões e formas de enxergar o mundo na velhice ou se sofrer algum trauma.
A escolha não é sua, então pare de achar que todo mundo tem que entender as coisas ao mesmo tempo que você. Bateu uma luz e você descobriu algo incrível sobre o mundo? Divida com as pessoas, mas não espere que todas elas batam palmas e concordem.
12 — Não demonize o diferente
Como é fácil ridicularizar quem é diferente da gente, né? Só que cada vez que a gente reduz uma pessoa para se sentir melhor em relação a nós mesmos, estamos sendo beeeeem babacas, não? O desafio na vida não é conviver com quem é igual, mas com quem é diferente.
Tente se colocar no lugar da outra pessoa. Olhe para ela com generosidade. Entenda o que ela quer dizer e como funciona seu raciocínio. Respeite.
Você não precisa concordar, mas também não precisa ser uma criança chorona que quer tudo do jeito dela. Fechado?
13 — Não queira estar certo, queira mudar o mundo
A internet deu voz a um bando de pessoas cheias de boas intenções, mas com um objetivo principal: estar certo. Li um post esses dias que falava bastante sobre isso e vai tocar em muitas feridas por aí. O nome dele é “A senhora lacra, mulher”: O ativismo narcisista e a escuta autoritária.
O resumo é que muita gente só discute na internet, e em espaços físicos, para ganhar palmas de seus amigos e pessoas que o admiram. E esse não é o caminho para sair desse mar de lama que estamos vivendo — seja qual for o mar de lama que você observa à sua frente.
14 — Não se ache melhor do que os outros porque você tem mais grana ou mais estudo
Um dia eu estava em uma reunião escolar e uma mãe disse, sem medo de ser feliz, que poderia pesquisar sobre qualquer assunto no mundo e completou: “sou uspiana”. Não consegui segurar um riso de canto de boca porque dali pra frente ninguém mais ouviria o que ela estava dizendo. Todas as boas ideias, depois desse comentários, iriam para o limbo.
Ninguém quer ouvir um discurso que começa com “eu sou melhor do que você”, seja quais forem as palavras usadas para dizer isso. Só faria sentido ela dizer que tinha se formado na USP se estivéssemos discutindo um problema na USP que só pode ser entendido por quem estudou lá. E, olhe lá, porque ver um problema de fora torna muito mais simples solucioná-lo.
Não importa o quanto você ganha, não importa quantos cursos você fez ou em qual faculdade de formou. Ninguém quer saber. Vivemos em um mundo em que certos grupos de pessoas não têm acesso à educação formal por diversos motivos — sendo um deles a falta de grana. Mas isso não faz com que essas pessoas não criem um amontoado de experiências e as transformem em sabedoria.
“Todo maloqueiro tem um saber empírico”, diz Criolo. E é exatamente isso que as pessoas precisam entender: o saber não vem apenas de uma fonte. Ele está em todos os lugares. Você pode chamar de autodidatismo. Pode encarar como vivência. Pode enxergar como um experimento social vivido na pele por aquela pessoa. A única coisa que você NÃO pode fazer — e que ninguém mais aguenta ver em 2015 — é fingir que aquele conhecimento não existe ou que você é superior a ele. A gente — eu e você — sabe que não é.
15 — Não crie ícones completos, monte o seu frankenstein de inspiração
Pessoas são corruptíveis. Pessoas têm problemas e dificuldades. Falamos isso de várias formas nessa lista, mas vou deixar mais claro: somos todos cagados. Não há palavra melhor que descreva nosso cerne. Estamos todos na merda, mas temos lampejos de genialidade.
Madre Teresa desviava dinheiro. Gandhi era racista e abusador. Tudo isso é uma merda, claro. Só que todo o bem que essas pessoas fizeram não pode ser ignorado.
O perigo de ter um ícone que você usa de modelo é ele ser destruído — porque é apenas um humano — e você ficar sem chão. Por isso é importante você pegar apenas as coisas boas dos heróis: fulano era ótimo em discurso, sicrano entendia as pessoas, beltrano sabia como multiplicar a verba para ajudar os outros. Aí você cria seu próprio frankenstein e sabe que cada pequena parte daquele ser só diz respeito a ela, e não às outras características dos heróis.
Leve esse mantra com você: heróis são pessoas e pessoas são cagadas.
16 — Se você é a exceção pare de se sentir ofendido
Você não tem preconceitos? Que bom. Você não é egoísta? Que lindo! Você não é machista? Maravilhoso! Você nunca abandonaria um cachorro? Adoramos isso! Você não joga lixo no chão? Parabéns!
Só que quando estamos falando sobre preconceitos, egoísmo, machismo, abandono animal ou gente que joga lixo no chão não estamos falando sobre você, certo? Se você não faz essas coisas não deveria nem se preocupar com a sua honra e legado ao ponto de falar: “mas eu não sou assim”.
Poxa, legal que você não é como aquele grupo de pessoas, mas você consegue enxergar que aquele grupo de pessoas existe? E que é importante discutir sobre o assunto para que esse grupo, do qual você não faz parte, deixe de existir?
Esse post do Empodere Duas Mulheres explica bem isso: “É verdade que o coletivo se dá a partir de muitas experiências individuais. Porém, a partir do momento que você usa as suas experiências individuais como argumentação universal, você está excluindo uma grande parcela das pessoas que não tem vivências como as suas”.
Ficar usando frases como “mas nem todo (insira aqui o grupo que você quer defender) é assim” não agrega nada ao debate, apenas mostra que você anda carente, precisa de atenção e um abraço. Porque quando você diz isso não está oferecendo uma solução ou um caminho para ser pensado, apenas está tentando minimizar o problema ao dizer que nem todo mundo faz isso. E, poxa, a gente sabe que nem todo mundo faz aquilo, senão nem teríamos como discutir o assunto, né?
Em 2016 vamos todos aprender que podemos pedir um abraço ou fazer um desenho bem bonito para receber as palmas que precisamos, mas não vamos fazer de conta que problemas não são tão importantes só porque a gente não age daquela maneira horrível. Combinadinho?"






(De Carol Patrocínio, no blog Medium, post intitulado "16 maneiras de não ser babaca em 2016", reproduzido no Jornal GGN - aqui).

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