Não há direito fundamental de fazer graça com discriminação
Por José Miguel Medina
Há poucos dias, foi proferida sentença em ação movida por uma associação ligada a pessoas portadoras de deficiência contra um humorista. Pediu-se na ação, por exemplo, que o humorista fosse impedido de fazer piadas com pessoas portadoras de deficiência mental, bem como que fosse condenado a indenização por danos morais. A referida sentença julgou improcedentes tais pedidos.[1]
Não desejo, aqui, examinar o caso ora referido. Gostaria, contudo, de lançar ao debate a seguinte questão: existe um direito, assegurado constitucionalmente, de fazer graça denegrindo ou tripudiando as dificuldades que alguém possa ter?
A questão não é simples.[2] Hoje, tornou-se “politicamente correto” defender a liberdade de expressão, a qualquer custo.
Por um lado, a Constituição assegura a liberdade de manifestação do pensamento — artigo 5º, IV — e de expressão, vedada a censura — artigo 5º, IX e artigo 220, caput e parágrafo 2º —, mas, por outro, garante também a proteção a outros bens (ou direitos), ao vedar a prática de racismo — artigo 5º, XLII —, assegurar direito de resposta e de indenização por dano material, moral ou à imagem — artigo 5º, V —, e, ainda, proteger a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas — artigo 5º, X —, etc.
Na jurisprudência, admite-se que a vedação à censura prévia é o modo mais básico do direito à liberdade de expressão,[3] mas reconhece-se, também, que a liberdade de expressão pode ser balizada, por exemplo, pelo direito fundamental à inviolabilidade da intimidade, previsto no artigo 5º, X.[4]
Vê-se, assim, que, para se compreender as várias dimensões do direito à liberdade de expressão, faz-se necessário examinar, além desse direito em si, também as restrições a esse direito previstas na própria Constituição.
À luz desse contexto, decidiu-se que “o preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra”.[5]Algumas manifestações preconceituosas podem configurar crime. Assim, por exemplo, o artigo 140, parágrafo 3º do Código Penal prevê expressamente o crime de injúria contra pessoas portadoras de deficiência.[6]
Pode-se dizer que piadas preconceituosas não dizem respeito ao direito, mas à moral.
Vivemos em um tempo em que tudo o que pertence à moral acaba sendo levado ao Judiciário. Parece-me correta a concepção de que o direito está inserido na moral, mas nem todas as questões morais são jurídicas.
Mas precisar o momento a partir do qual uma questão moral passa a ser uma questão jurídica, no entanto, não é tarefa tão simples, principalmente se se considerar o ambiente social em que vivemos, analisado à luz do texto constitucional.
De todo modo, a questão é importante, e há que se fazer uma discussão séria a respeito — que não se limite a dizer que tudo se resolve (deste blog: acho que o articulista pretendia escrever resume, em vez de resolve), aqui, a um sopesamento entre princípios.
A Constituição prevê a liberdade de expressão como direito fundamental, mas limitado, como se disse acima. Além disso, já no Preâmbulo e em seu artigo 3º, IV, a Constituição deixa claro que o preconceito não encontrará guarida, ao longo de seu texto.
Talvez eu admita a hipótese de considerar que a Constituição seja alheia à pretensão daquele que deseje fazer graça, e que isso não passe de uma questão moral.
Por outro lado, considero algo despropositado defender que o direito de fazer graça tripudiando preconceituosamente de outra pessoa seja garantido pela Constituição. Isso é algo que, para mim, não faz qualquer sentido.
A Constituição não garante o direito de fazer uma piada covarde, que se apoia na fraqueza de outrem que se mostra, muitas vezes, indefeso.
[1] Na fundamentação, afirma-se: “Vivemos num mundo aparentemente contraditório: de um lado, expandem-se formas novas formas de humor escrachado, como se percebe em programas televisivos, sites na internet ou em espetáculos de show do tipo stand up comedy”, como retratado nos autos. Em contrapartida, é cada vez mais perceptível uma exacerbação da sensibilidade da opinião pública, avessa ao humor “chulo” (ou talvez à explicitação dessa forma de humor) ou mesmo a qualquer tipo de exploração das diferenças.” Adiante, afirma-se que “inexiste a prática de ato ilícito pelo réu, protegido que está pela regra do artigo 187 do Código Civil. Age em exercício regular de direito (liberdade de expressão e manifestação artística). A ótica que me parece mais adequada é prestigiar a liberdade de expressão e da atividade artística, sem qualquer juízo de valor a respeito do conteúdo e, sobretudo, da qualidade do humor praticado.” E conclui: “o juiz não pode dizer se a piada é boa ou ruim, se o humor tem qualidade ou não tem” (cf. íntegra da sentença aqui).
[2] Examino o tema na obra Constituição Federal comentada, 3. ed. no prelo, Ed. Revista dos Tribunais, comentário aos arts. 5.º e 220.
[3]Nesse sentido, STF, ADIn 4.451, rel. Min. Ayres Brito, j. 02.09.2010.
[4]Cf. STF, ADPF 130, rel. Min. Ayres Brito, j. 30.04.2009; STF, Rcl 9428, rel. Min. Cezar Peluso, j. 10.12.2009.
[5]STF, HC 82424, rel. p/ acórdão Min. Maurício Corrêa, Pleno, j. 17.09.2003.
[6] Código Penal, Artigo 140: “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. [...] parágrafo 3º — Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena — reclusão de um a três anos e multa.”
(Fonte: aqui).
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Onde há colisão de direitos fundamentais, é grande a possibilidade de surgirem impasses. Daí a necessidade do acionamento, pelo julgador, do chamado sistema de freios e contrapesos. Mas tal sistema não assegura, a priori, a prevalência do Direito verdadeiramente cabível, dada a, digamos, volatilidade da natureza humana...
Dos comentários constantes na fonte, destaco o seguinte (não sem ressaltar que os demais merecem leitura):
"Ótimo debate.
- Bom dia, professor.
O tema é bem sensível, realmente. Outro dia estava passando na TV (agora não lembro o canal, acho que era TV escola) um programa sobre o (Noam) Chomsky (filósofo ativista, para quem não conhece). Ele tem uma opinião bem forte sobre isso. Acredito que a discussão era sobre um sujeito, na França, que negava o holocausto e foi proibido de expor suas opiniões. No Brasil nós tivemos uma situação parecida, com resultado parecido também, no HC 82.442/RS.- Enfim, o filósofo dizia que o sujeito poderia negar o holocausto, pois o Estado não tinha legitimidade para dizer o que eram "os fatos" da história. Em outras palavras, não poderia dizer o "certo" e o "errado" fora dos padrões de uma norma geral e abstrata, e.g, um tipo penal (como é o caso do crime de injúria) ou caso de responsabilidade civil por danos. Tudo, claro, com o antecedente prevendo esse "excesso" no exercício da expressão. O que pretende ir além disso, dizendo que é covarde ou não, engraçado ou não, bom gosto ou não, parece censura prévia e não pode prosperar (no sentido da sentença trazida).
- Como o Chomsky mesmo diz, 'Stalin e Hitler eram os que mais pregavam a liberdade de expressão', para o que lhes interessava, claro. Engraçado, mas aqui a gente se depara um pouco com aquele problema da teoria da decisão de que fala o prof. Lenio. Será que o judiciário pode ir tão longe, mesmo falando de princípios? Enfim, ótima discussão...".
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- Da Wikipédia: Teoria da decisão "é uma área interdisciplinar de estudo, aplicável a quase todos os ramos da ciência, engenharia e principalmente a psicologia do consumidor (baseados em perspectivas cognitivo-conductuais). Relaciona-se à forma e ao estudo do comportamento e fenômenos psíquicos daqueles que tomam as decisões (reais ou fictícios), a identificação de valores, incertezas e outras questões relevantes em uma dada decisão, sua racionalidade, as condições pelas quais após um processo será levado a ter como resultado a decisão ótima. É um campo relacionado muito intimamente com a teoria dos jogos. (...)."
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- Enfim, trata-se de assunto extremamente complexo. Mas vale a observação final do articulista (que deve ser lida no contexto do post):
"Talvez eu admita a hipótese de considerar que a Constituição seja alheia à pretensão daquele que deseje fazer graça, e que isso não passe de uma questão moral.
Por outro lado, considero algo despropositado defender que o direito de fazer graça tripudiando preconceituosamente de outra pessoa seja garantido pela Constituição. Isso é algo que, para mim, não faz qualquer sentido. (...).".
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