segunda-feira, 10 de outubro de 2011

PALAVRA DE NORDESTINA


A vergonha que não tenho de ser nordestina

Por Sheila Raposo
Do blog de Luis Nassif 
Cultivado entre os cascalhos do chão seco e as cercas de aveloz que se perdem no horizonte, cresceu, forte e robusto, o meu orgulho de pertencer a esse pedaço de terra chamado Nordeste.

Sou nordestina. Nasci e me criei no coração do Cariri paraibano, correndo de boi brabo, brincando com boneca de pano, comendo goiaba do pé e despertando com o primeiro canto do galo para, ainda com os olhos tapados de remela, desabar pr’o curral e esperar, pacientemente, o vaqueiro encher o meu copo de leite, morninho e espumante, direto das tetas da vaca para o meu bucho.

Sou nordestina. Falo oxente, vote, danou-se. Vige, credo, Jesus-Maria-José! Proseio numa língua ligeira, que engole sílabas e atropela a ortoépia das palavras. O meu falar é o meu mais fiel retrato. Os amigos acham engraçado e dizem sempre que eu “saí do mato, mas o mato não saiu de mim”. Não saiu mesmo! E, olhe: acho que não vai sair é nunca!

Sou nordestina. Lambo os beiços quando me deparo com uma mesa farta, atarracada de comida. Pirão, arroz-de-festa, galinha de capoeira, feijão de arranca com toucinho, buchada, carne de sol... E mais uma ruma de comida boa, daquelas que quando a gente termina de engolir o suor já está pingando dos quatro cantos. E depois ainda me sirvo de um bom pedaço de rapadura ou uma cumbuca de doce de mamão, que é pra adoçar a língua. No outro dia, de manhãzinha, me esbaldo na coalhada, no cuscuz, na tapioca, no queijo de coalho, no bolo de mandioca, na tigela de umbuzada, na urêa de pau com café torrado em casa!

Sou nordestina. Choro quando escuto a voz de Luiz Gonzaga ecoar no teatro de minhas memórias. De suas músicas guardo as mais belas recordações. As paisagens, os bichos, os personagens, a fé e a indignação com que ele costurava as suas cantigas, e que também são minhas, estavam (e estão) presentes em todos os meus momentos, pois foi em sua obra que se firmou a minha identidade cultural.

Sou nordestina. Me emociono quando assisto a uma procissão e observo aqueles rostos sofridos, curtidos de sol do meu povo. Tudo é belo neste ritual. A ladainha, o cheiro de incenso. Os pés descalços, o véu sobre a cabeça, o terço entre os dedos. O som dos sinos repicando na torre da igreja. A grandeza de uma fé que não se abala.

Sou nordestina. Gosto de me lascar numa farra boa, ao som do xote ou do baião. Sacolejo e me pergunto: pra quê mais instrumento nesse grupo além da sanfona, do triangulo e da zabumba? No máximo, um pandeiro ou uma rabeca. Mas dançar ao som desse trio já é bom demais. E fico nesse rela-bucho até o dia amanhecer, sem ver o tempo passar e tampouco sentir os quartos se arriando, as canelas se tremelicando, o espinhaço se quebrando e os pés se queimando em brasa. Ô, negocio bom!
Sou nordestina. Admiro e me emociono com a minha arte, com o improviso do poeta popular, com a beleza da banda de pífanos, com o colorido do pastoril, com a pegada forte do côco-de-roda, com a alegria da quadrilha junina. O artista nordestino é um herói, e nos cordéis do tempo se registra a sua história.

Sou nordestina. E não existe música mais bonita para meus ouvidos do que a tocada por São Pedro, quando ele se invoca e mete a mãozona nas zabumbas lá do céu, fazendo uma trovoada bonita que se alastra pelo Sertão, clareando o mundo e inundando de esperança o coração do matuto. A chuva é bendita.

Sou nordestina. Sou apaixonada pela minha terra, pela minha cultura, pelos meus costumes, pela minha arte, pela minha gente. Sou não sou apaixonada por uma pequena parcela dessa mesma gente que se enche de poderes e promete resolver os problemas de seu povo, mentindo, enganando, ludibriando, apostando no analfabetismo de quem lhe pôs no poder, tirando proveito da seca e da miséria para continuar enchendo os próprios bolsos de dinheiro.

Mas, apesar de tudo, eu ainda sou nordestina, e tenho orgulho disso. Não me envergonho da minha história, não disfarço o meu sotaque, não escondo as minhas origens. Eu sou tudo o que escrevi, sou a dor e a alegria dessa terra. E tenho pena, muita pena, dos tantos nordestinos que vejo por aí, imitando chiados e fechando vogais, envergonhados de sua nordestinidade.

Para eles, ofereço estas linhas.

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Comentários sobre este relato podem ser lidos AQUI.

4 comentários:

Anônimo disse...

Muitíssimo obrigada por ter meu despretensioso texto em seu blog (achei-o tão bonitinho!), é uma honra pra mim!
Essa coisa de tempo tá mesmo muuuuito complicada... Trabalho demais, estudo, cuido de casa... Afe! Mas vou me esforçar mais pra conseguir brechas nesta vida corrida.
Minha família agora está morando em Campina Grande. Morou um tempo, depois voltou pro Cariri, e agora está de novo em Campina. Meu pai era do BB, trabalhou em Pocinhos... Mas fez a grandessíssima bobagem de sair num daqueles infames e criminosos PDVs... Nossa vida nunca mais foi a mesma. O BB é uma instituição f.d.p., me desculpe o termo. Mas vendo o que aconteceu com meu pai e com tantos outros bancários, não posso pensar diferente.
Bom, mais uma vez, valeu mesmo pelo post e pelos elogios! Fico muito ancha! Hehehehe!
Sheila Raposo

Dodó Macedo disse...

Campina Grande é para lá de acolhedora. Vale a pena morar lá.
Conheci Pocinhos, Sheila. Fica pertinho de Campina, é diminuta e está encravada em região muito rochosa. Teu pai deve ter feito um bom sacrifício por lá, no BB, pois a equipe, muito pequena, tinha de se esborrachar nos chamados dias de pico nos serviços. Os PDV foram certamente uma das mais desastradas atitudes do BB, no auge da tal modernidade, ou seja, downsizing. O que tenho de amigos que se prejudicaram não está no gibi. Há famílias ainda hoje à míngua (comparando com o padrão, mesmo modesto, que detinham quando no banco).
Sucesso e saúde, e capriche também no seu blog.
Um abraço.

Marilia disse...

Oi Dodó,

Amei o texto da Sheila. Compartilhei com os amigos do FB. Beijokas.

Dodó Macedo disse...

Que beleza, querida Marília. O texto é mesmo de primeira.
Beijos.