Se quisermos ler sobre a legitimidade, ou a falta dela, da mentira na política, temos literatura sobre o assunto datada desde Platão em diante. Digamos que os principais lados que se opõem são os moderados, para quem mentir na vida política é indispensável – pense em como a diplomacia serve como um parachoque na administração de conflitos internacionais – e os rigoristas absolutos (como Santo Agostinho ou Immanuel Kant), que achavam que a ausência de um compromisso universal com a verdade levaria à dissolução de todos os pactos sociais. Os rigoristas acreditam que uma pessoa nunca deve mentir – nem mesmo se você estiver escondendo um homem inocente e um assassino pedir que você revele o seu paradeiro.
Mas até os moderados reconhecem que há limites para a quantidade de mentira política que uma sociedade pode tolerar. A teórica política Hannah Arendt, nascida na Alemanha, a quem podemos confiantemente considerar moderada, comentou o assunto em 1971. Em “A Mentira na Política: Considerações Sobre os Documentos do Pentágono”, um ensaio publicado no “The New York Review of Books”, ela documentou como o governo norte-americano havia mentido notoriamente sobre vários elementos da Guerra do Vietnã, e argumentou que esse calibre de mentira sistemática é um insulto à factualidade, que, quando se torna tão alastrado, leva a um estilo patológico de política.
Então o que acontece quando um político mente sistematicamente, sem nenhum medo de que suas mentiras possam finalmente contradizer umas às outras? Comentando a política em sua época, Jonathan Swift publicou um panfleto em 1712 intitulado “A Arte da Mentira Política”. (Ou melhor, muitos acreditam que Swift o tenha escrito; a autoria ainda é amplamente debatida.) Independentemente da verdadeira autoria do panfleto, ainda hoje ele oferece alguns pontos úteis para pensar.
“Há um ponto essencial no qual um mentiroso político difere de outros do gênero”, argumenta o escritor. E continua, dizendo que um mentiroso político “precisa ter uma memória curta” para que não se lembre como se contradisse e, dependendo de seu público em um dado momento, jurar a lealdade a ambos os lados de uma questão muito disputada.
O escritor evoca “um certo grande homem”, que ficou famoso por sua habilidade de mentir, com um “fundo inexaurível de mentiras políticas, que ele distribui abastadamente a cada minuto que fala, e por uma generosidade sem paralelos ele esquece, e consequentemente contradiz, a próxima meia hora. Ele nunca considera se qualquer proposição é verdadeira ou falsa, mas se é conveniente afirmar ou negar dependendo do minuto presente ou da companhia.” Assim, o escritor acrescenta, não há sentido na tentativa do público de decifrar a posição real de um político assim: “você se descobrirá igualmente enganado, quer acredite nele ou não.”
O escritor continua: “alguns podem pensar que uma habilidade assim não seja muito útil para o político, ou para seu partido, depois que ela é praticada e se torna notória, mas eles estão profundamente equivocados”. É necessário muito pouco, diz ele, para uma mentira se espalhar amplamente -- mesmo que tenha sido originada de um mentiroso reconhecido. Além disso, ele acrescenta: “costuma acontecer que, se uma mentira é endossada por uma hora que seja, ela já fez o seu papel... A falsidade voa, e a verdade vem mancando atrás dela, então quando os homens descobrem a verdade, já é tarde demais.”
Esse tipo de político faz lembrar do vendedor de carros que diz para você que um certo modelo pode acelerar tão rápido que você estará andando a 160 quilômetros por hora sem perceber. Mas então ele vê que sua mulher, sogra e filhos estão esperando por você, e imediatamente diz que, por outro lado, é um carro dócil que pode andar a 100 por hora durante o dia todo sem nenhum problema.
Finalmente, ele acrescenta: “e se você comprá-lo hoje, eu darei os tapetes.”
(Por Umberto Eco. The New York Times). Tradução: Eloise De Vylder.
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(O Livro mais recente de Umberto Eco é “História da Feiúra”. Ele também é autor dos best-sellers internacionais “Baudolino”, “O Nome da Rosa” e “O Pêndulo de Foucault”, entre outros).
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