sexta-feira, 10 de junho de 2011

O MORDOMO DE JOÃO GILBERTO


Em face do aniversário de João Gilberto, que completa 80 anos, reproduzo o interessante relato de um jornalista que, por uma noite, deu uma de mordomo do pai da Bossa Nova:


Em 1992, fazia 30 anos que ele não se apresentava com Tom Jobim no Rio. O último show com os dois no palco havia sido em 2 de agosto de 1962, na boate Au Bon Gourmet, em Copacabana, ao lado de Vinicius de Moraes, Milton Banana e Os Cariocas, tendo sido batizado de "O Encontro".

O anúncio da apresentação de João Gilberto e Tom Jobim no Teatro Municipal em 7 de dezembro foi o suficiente para antever que aquele seria o acontecimento cultural do ano. Seria o reencontro. Os amigos davam versões conflitantes sobre há quanto tempo João e Tom não se falavam. Uns diziam que desde 1977 eles não conversavam; outros, que o encontro mais recente havia sido em 1986, um intervalo entre seis e 15 anos na convivência dos dois.

Um dos meus chefes na Folha me chamou e disse: "Você vai ser o mordomo do João Gilberto". Ele havia conseguido, de maneira não clara para mim, assegurar à direção do Teatro Municipal que eu era o mordomo particular de João Gilberto e aos assessores do cantor que eu era o melhor mordomo da equipe do Teatro Municipal.

Conseguira ainda infiltrar o jornalista Fernando Molica, então também na sucursal do Rio da Folha, no papel de assessor de um dos empresários do show.

Ele foi claro para nós dois: em nenhum momento nos textos que produzíssemos sobre o show de João Gilberto e Tom Jobim poderíamos dizer a forma pela qual obtivemos as informações, já que teríamos acesso a momentos privados dos dois artistas, que desconheciam que éramos jornalistas.
 

Às 18h30 do dia 5 de dezembro de 1992, Molica está no hotel Caesar Park, em Ipanema, para acompanhar um dos dois ensaios dos artistas para o espetáculo. "Nada de abraços e carinho sem ter fim: sorrisos, um aperto de mão, um arrastado 'oi, Tom'", descreveu ele o momento em que João Gilberto e Tom Jobim se reencontraram após anos.

Frutas, água, uísque...

Na segunda-feira seguinte, data do show, é a minha vez. Às 17h, chego ao Teatro Municipal e me identifico na portaria: Alcides, o mordomo de João Gilberto. Dão-me a chave do camarim dele e me perguntam se está tudo de acordo: champanhe Veuve Clicquot, queijos, pães, frutas, água mineral São Lourenço, café com leite.

Vi Tom Jobim chegar às 19h, enquanto aguardava no camarim de João. Simpático, sorri e entra na porta ao lado. Sua mulher, Ana Jobim, a tudo e a todos comandava, diligente com o horário, os músicos e até a marca do uísque e a quantidade de pedras de gelo no copo.

Uma hora depois, João Gilberto chega, segurando o próprio violão, acompanhado do empresário Gil Lopes. Cumprimenta-me rapidamente, eu pergunto se quer algo de especial. Ele pede só um copo de água. Em seguida, vai em direção ao camarim de Tom Jobim.

Ele está ao piano no camarim, com um copo de Logan ao lado das teclas, próximo do chapéu Panamá. Saúda o amigo: "Oi, João". "Oi, Tonzinho", responde, carinhoso, João.

Não conversam muito. Vão direto ao palco do teatro, com portas ainda fechadas, para passar o som. João sobe em um tablado com tapete persa sobre o palco, ficando dois palmos mais alto que o local em que está o piano de Tom Jobim.

Ajeita-se no banquinho, descansa os pés em um pedaço de madeira de um palmo e dedilha o violão. Canta trechos de músicas sem concluir nenhuma delas. Diz ao microfone: "O violão está opaco". Tom fica em silêncio.

Os técnicos correm de um lado para o outro. Não conseguem melhorar o som a contento de João. O engenheiro-chefe diz a ele que atrasaria em meia hora o início do show para que pudesse acertá-lo. João volta ao camarim. Pede a mim um café com leite. João senta-se no sofá e empunha o violão.

O empresário Gil Lopes pega folhas de cartolina e uma caneta Pilot azul. Uma a uma, vai repassando as canções que pretende tocar: "Sem Compromisso", de Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro, "Pra Machucar meu Coração", "Morena Boca de Ouro" e "Isto Aqui, o que É", de Ary Barroso, "Segredo" e "Ave Maria no Morro", de Herivelto Martins. Lopes vai anotando e trocando sugestões com João sobre a ordem das canções.

O ajuste de som demora uma hora. Às 21h30, João volta ao palco, agora sozinho. Dedilha e sussurra trechos de canções. Aprova o que ouve: "Antes, a freqüência estava muito alta", diz, para o alívio da equipe técnica, que temia que o cantor desistisse de se apresentar em razão da qualidade do som.

Na volta ao camarim, continua a repassar as canções que tocará pouco depois. Batem na porta. Caminho para atender, mas, antes que o fizesse, a voz do outro lado se identifica: "João, é Astrud". Ele se levanta do sofá, corre até o banheiro e se tranca lá. A cantora Astrud Gilberto havia sido casada com João entre 1960 e 1964. Fico perdido, sem saber o que fazer.

Olho para Gil Lopes, como a pedir socorro. Ele decide abrir a porta. Astrud entra no camarim, perguntando por João. Lopes inclina a cabeça em direção ao banheiro. Ela bate na porta e diz: "Abra aí, João. Sou eu". Todos ficamos em silêncio por alguns segundos. Ela insiste: "João, abra. Sou eu, Astrud. O que tem aí eu já vi". Novo silêncio, mas, alguns segundos depois, a porta é destrancada.
Esperava que João saísse, mas foi a vez de Astrud entrar no banheiro. A porta é trancada novamente. Não dá para ouvir a conversa dos dois. Ficam lá por alguns minutos. Para tornar a situação menos esquisita, Gil Lopes se aproxima da bandeja de queijos. Pega um e, numa inversão de papéis, oferece-me outro. Agradeço. A porta do banheiro é destrancada. Astrud sai, despede-se de Lopes e deixa o camarim.

João reaparece, ajeitando a gravata. Pára à frente do espelho, arruma o nó. Depois, começa a ajeitar o cabelo. Passa a mão na língua para dominar mais facilmente alguns fios rebeldes. Tenta disfarçar a calvície. "O cabelo não tem jeito. Ih, tá mar! Ih, tá mar!", graceja João, numa piada que à época fazia sentido. Itamar Franco era o presidente da República.

Alguém da produção se aproxima. "Já posso entrar?", indaga João Gilberto. Vê Tom Jobim tocando piano em seu camarim e vai em sua direção. "Que ansiedade!", diz ao amigo.

João é chamado. Acompanhado apenas do violão, entra no palco do Teatro Municipal. É ovacionado por Chico Buarque, Edu Lobo e Caetano Veloso, entre outros 2.000 convidados pela Brahma, patrocinadora do show e do especial de televisão que a Rede Globo levaria ao ar naquele final de ano.

Ar da Finlândia

A incerteza sempre rondou a produção. Todos temiam que, em algum momento, João Gilberto desistisse. O orçamento estava na casa dos R$ 5 milhões, em valores atualizados. Incluía um sistema especial de ar-condicionado que a Brahma dizia ter importado da Finlândia, dotado de duas peculiaridades: nível de ruído mínimo e capacidade de resfriar a platéia sem atingir o palco.

João começa a cantar. O som do violão e da voz está baixo. Poucos conseguem ouvi-lo a contento. Quando João cantava "Eu Sambo Mesmo" (de Janet de Almeida), o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor, sentado no balcão do teatro, irrompe aos gritos: "Aumenta o som. Não estou ouvindo nada!".

Todos temem que João, incomodado, encerre a apresentação e vá embora. Mas ele leva o samba até o fim. Três músicas depois, uma explosão acústica interrompe o cantor de novo. Ele esfrega as mãos no joelho e puxa aplausos.

Na coxia, o clima é de tensão. Aguardando o momento que deve entrar no palco, Tom Jobim anda de um lado para o outro, de modo lento, para não fazer barulho. Um técnico de som, já apavorado pelos problemas com João, sai em disparada à busca de um cabo, passa por Tom Jobim e, sem querer, esbarra numa torre de luz de alumínio no fundo do palco. Parte da torre cai, e o estrondo é ouvido, não só por João, mas por todo o Municipal.

Na hora do estrondo, João cantava "Sem Compromisso" (de Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro). Ele finge que não ouve e segue adiante, para alívio de todos. Encerra a primeira parte do show e, sob aplausos frenéticos, sai do palco após cantar 17 músicas.

Chega à coxia sorrindo. João abraça Tom Jobim e diz, bem-humorado: "Vamos lá, Tom. Vai ser espetacular. Vamos impressionar". Entram juntos no palco. O Teatro Municipal os recebe em pé.

Após quase duas horas de show, João deixa no palco Jobim e sua banda. Segue apressado para o seu camarim, acompanhado do empresário Gil Lopes. Pega a caixa do violão, quando ouve Tom chamá-lo ao palco novamente. Olha para Lopes, que o estimula a voltar. Deixa a caixa do violão em cima do sofá e volta para apenas mais uma canção.

Findo o bis, João Gilberto sai apressado em direção ao camarim, pega a caixa do violão e segue até a porta dos fundos do Teatro Municipal, onde um carro com motor ligado e a porta traseira aberta o espera. Não falou mais com ninguém --nem mesmo com Tom Jobim.

(Plínio Fraga, Folha de São Paulo - matéria publicada em 14.08.2008).

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