segunda-feira, 6 de junho de 2011

DE COMO UM CÃO COMEÇOU A UIVAR PARA A LUA


Em 1974, li Um Cão Uivando Para a Lua, livro de estreia de Antônio Torres. Fiquei um tempão impactado. Afinal, não é todo dia que nos deparamos com uma crônica acossada, um romance sombrio, um livro desesperado. Muitos outros romances se seguiram, publicados no Brasil e no exterior.

Ocorre que o consagrado Torres acaba de ser preterido pela Academia Brasileira de Letras, que elegeu o jornalista Merval Pereira para a cadeira 31, ocupada anteriormente por Moacyr Scliar. Fazer o quê?

Fazer o quê?! Ora, satisfazer uma curiosidade: conhecer o processo de criação de Um Cão Uivando Para a Lua.

Eis o que disse o escritor Antônio Torres em palestra proferida no Instituto de Letras da UERJ, no primeiro semestre de 1999:




PROCESSO CRIATIVO, OU:
COMO UIVAR PARA A LUA NUMA NOITE SEM A MENOR POSSIBILIDADE DE ESTRELAS

Em princípio, criar e coçar é só começar. Mas como é que se faz para começar? Se tudo

depende da primeira frase, já temos uma para entrar neste tema que vem despertando muita

curiosidade, principalmente para os jovens que estão se iniciando no mundo das letras. Como

se o processo criativo fosse a caixinha de Pandora que cada escritor guarda dentro de si. Essa

busca ao tesouro começa com outra pergunta, curta e concreta, que pode gerar respostas

longas e subjetivas, pois, ao entender deste já velho escriba, não há arte mais abstrata do que

a escrita. A pergunta é: "Como nasce uma história?"

Um escritor norte-americano chamado Henry Miller, hoje em desuso mas que fez muito sentido

para a minha geração, definiu o processo criativo de uma forma um tanto quanto

megalômana: "Deus fez o mundo em 7 dias. Depois entrou nele. Este o segredo da criação".

Já o nosso Gláuber Rocha, um cineasta de vocação literária por excelência, e que tinha fama

de delirante, baixou ao terreiro dos deuses afro-baianos, ao falar da gênese de seus filmes, em

entrevista ao locutor que vos fala, quando do lançamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1964.

Disse ele: "O negócio é fazer mandinga e esperar o santo descer. Aí então a gente é bem capaz de

fazer um take de 4 minutos, na mão, entre luz e sombra, entre

foco e fora do foco, balançando ou não. Será possível ir aos infernos de outra maneira?" Clarice

Lispector também confessou que às vezes ficava dias e dias, com os olhos numa folha em

branco, à espera de que o texto baixasse em seu teclado. Igual a qualquer um de nós, hoje,

diante da telinha de um computador, até que o milagre aconteça. Ou que uma voz salvadora

sopre em nossos ouvidos: "Fé em si mesmo e mãos dadas às teclas. Com sorte, você terá uma

frase, um parágrafo, quem sabe uma página inteira que valha a pena".

O escritor aqui levou trinta anos para começar. Foram trinta anos lendo um livro atrás do

outro, obsessivamente. Pedindo socorro a Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano

Ramos, Drummond, João Cabral e Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges, Gabriel Garcia

Marques, James Joyce, William Faulkner e Scott Fitzgerald. Lendo até bula de remédio, para

ver se achava a receita. Trinta anos cantando "O teclado não me ama, o teclado não me quer.

O teclado não me chama, de Baudelaire". Trinta anos lendo rostos, ruas, becos, estradas,

cidades, paisagens. E escrevendo, escrevendo, escrevendo. Para a cesta do lixo. Cheguei aos

trinta com uma frase de Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, em meus ouvidos, como uma

condenação: "Eu conheço mais de duas mil palavras. Mas o que isto me adianta?" Até que

numa bela manhã ... Não, era uma noite escura, feíssima, sem a menor possibilidade de estrelas. E foi

em São Paulo, aquele país amigo ao sul do Brasil, onde um dia William Faulkner, depois de ter

bebido uma parte considerável de seu Prêmio Nobel, acordou numa ressaca homérica, abriu a cortina

do hotel, olhou a cidade, bateu na testa e disse: "Oh, my God, Chicago again?". Pois foi lá

mesmo, na locomotiva da nação, destino de todos os baianos, que o baiano aqui, numa noite

de nuvens negras, pesadas como aquela cidade, percebeu que tinha algo nas mãos, para começar, e

que desta vez, quem sabe, ia ser pra valer. Estava sozinho no meu quarto de um

hotel barato na Alameda Barão de Limeira. Estava só no Brasil. Estava só nas Américas. Numa

noite de breu sem luar. E ouvindo Miles Davis tocando sem parar uma terna canção

americana, chamada My funny Valentine. A canção do Dia dos Namorados. Só que Miles Davis

– todos os trompetes havidos e a haver – parecia transformá-la num grito de dor, seguido por

gemidos de angústia e desespero. Foi aí que me lembrei do velho Faulkner, outra vez: "É a

memória, e não a dor, que faz você se lembrar de ruas selvagens e ermas." E outra vez me

lembrei de Scott Fitzgerald: "Numa noite escura da alma são sempre três horas da manhã." E

continuei ouvindo Miles Davis tocar My funny Valentine, indo e voltando para a mesma faixa do

disco. Aquele trompete lancinante parecia interpretar os tormentos da minha geração: uma

parte dela ouvia Jimmy Hendrix e se entupia de LSD, até ir parar debaixo dos choques

elétricos nos manicômios. Outra parte gemia nos porões da ditadura. Uivando até a morte

para um luar inexistente. Pronto: Miles Davis havia acabado de soprar nos meus ouvidos o

título que eu buscava há 30 anos: "Um Cão Uivando para a Lua". Era só ir para o teclado e

começar a história. Para encurtá-la: começou com a idéia de um conto sobre um louco

batendo papo consigo mesmo. De repente o teclado andou. Agora, sim, Eu e ele parecíamos

nos compreender, nos aceitar reciprocamente. E já que estávamos – finalmente! – nos

tornando amigos íntimos, fui em frente. Oito meses depois eu tinha um romance nas mãos. E

foi como ter tirado uma espinha da minha garganta, depois dele vieram outros, um atrás do

outro. Mas nunca mais iria conseguir escrever um livro com tanta rapidez. É bom lembrar que

por trás dele havia toda uma vida, marcada pela obsessiva, incessante e tantas vezes

desesperadora busca de um texto. Eis aí, em rápidas pinceladas, o esboço do meu começo.

Que significou uma vitória sobre muitas mortes, porque eu vivia com um terrível sentimento

de morte a cada tentativa fracassada ao longo do percurso. E, no entanto, o fracasso faz parte

do aprendizado, É a pilha de realimentação do seu processo, o limão que você pode

transformar em limonada. (...)       

5 comentários:

Anônimo disse...

Dodô
Antonio Torres sim é escritor. Merval Pereira não é ninguém na literatura, muito menos no jornalismo. Porta voz da elite brasileira, não tenho palavras para dizer. Mas estas mediocridades passam, um escritor mesmo continua.
abraço
joão

Dodó Macedo disse...

Pois é, amigo, o poeta William Melo Soares, aqui da terrinha, me falou acerca de um bate papo com Antonio Torres, sobre assuntos triviais, há coisa de 2 anos. Ficou cativado pela simplicidade do cara. Assim é Torres, o baiano do Junco: postura simples, texto soberbo.
Grande abraço.

Anônimo disse...

Dodô
Muito bonita sua homenagem.Eu li vários livros dele(que está fora de moda hoje, não sei porque), e adorei. É um escritor compromissado com seu tempo,e esta midia que está aí não quer isto.Quer um Ferreira Gullar, que agora está subserviente, e sai em tudo quanto é capa de revista.Tristes tempos.
ab
joão antonio

Marilia disse...

Olá Dodó,

Eu adoro ler sobre a experiência dos autores quanto a inspiração, o ato de escrever.

Antônio Torres descreveu com tamanha sinceridade seu sofrimento de colocar no papel suas ideias que me fascinou bem como me inspirou.

Obrigada por compartilhar tantas maravilhas.

Beijos da amiga

Marília

Dodó Macedo disse...

Cara amiga,

Muito bonitas as suas palavras sobre a sinceridade de Antonio Torres. Ele com certeza iria gostar de ler esse seu comentário.
Gracias, e um grande abraço.