Trump em duzentos anos de história
Por André Araújo
Em 1817, duzentos anos atrás, o General argentino San Martin atravessou os Andes (em 19 de janeiro) para libertar o Chile do jugo espanhol. Parece que foi há milênios, mas duzentos anos é pouquíssimo tempo. Eu mesmo ja vivi mais de um terço desse período, quem passou dos cem anos atravessou metade dessa era histórica que revolucionou a humanidade; duzentos anos é pouco tempo na História.
Nesses duzentos anos o mundo mudou completamente. Há duzentos anos não existiam os países hoje conhecidos como Itália e Alemanha, o Japão estava trancado em uma letargia feudal, a África Negra era conhecida apenas como fornecedora de escravos, no Brasil Colônia o tráfico negreiro era o principal negócio da economia, os EUA eram um país inexpressivo e sem importância, a França ressurgia da Revolução apagada pela Restauração Bourbon com Luis XVIII reinando em Versailles ainda como monarca absolutista.
Donald Trump é um ponto fora da curva da normalidade, como foram Napoleão, um italiano puro que virou Imperador da França, e Hitler, um vagabundo austríaco que dormia nos bancos de jardim de Viena e chegou ao ápice do poder no maior país da Europa ocidental.
Trump é também um ponto fora da curva, não faz parte do establishment político ou empresarial, não tem cultura, refinamento, experiência ou inteligência política, vai causar muita confusão antes de ser derrubado por afronta à Constituição que ele parece desconhecer e faz questão de não respeitar.
Um dos poucos dispositivos pétreos da pequena Constituição americana diz que o Estado não pode, em momento algum, invocar a religião como causa de atos de Governo. Trump, assessorado por sicofantas, áulicos e cortesãos, sem consultar o Departamento de Estado, emitiu decreto onde a expressão "muçulmano" é textual.
Poderia ter feito o mesmo decreto sem usar a palavra, que se refere a uma religião. Ao citá-la tornou o decreto inconstitucional; não se pode basear nada em religião em um ato oficial.
É possível que Trump, a partir dessa primeira derrota frente às instituições, não se corrija.
Se, por exemplo, der uma ordem inconstitucional aos militares, esta não será cumprida e seu governo acaba, ele terá que sair, é uma possibilidade para consertar esse engano político.
Os Estados Unidos sobreviveram em 241 anos de existência atravessando períodos turbulentos como a Guerra Civil, duas guerras mundiais, guerras regionais perigosas como a hispano americana, a da Coreia, a do Vietnã, a segunda guerra do Iraque. Presidentes medíocres como Harding, Coolidge, Carter, uma grave crise de governança com a doença do Presidente Wilson, onde sua esposa é que regia a Presidência, a crise dos assassinatos de Lincoln e de Kennedy. Os EUA têm uma estrutura institucional sólida, que agora será posta à prova com a Presidência Trump, um extraordinário erro de escolha da sociedade e do sistema político americano, que todavia não é imune a erros e, quando erra, o erro é monumental, afetando o País e o mundo onde os EUA projetam poder. (Nota deste blog: Jimmy Carter fracassou na tentativa de resgatar os reféns retidos pelo Irã na embaixada americana no citado país e, a despeito de defender direitos humanos e condenar ditaduras mundo afora, foi carimbado como medíocre...).
Trump, todavia, existe por uma razão concreta. A globalização trouxe benefícios a uma camada social dos EUA e imensos prejuízos a outra camada, ao contrário do que pregava o Consenso de Washington, a globalização é um processo desequilibrado e pouco eficiente.
Trump, todavia, existe por uma razão concreta. A globalização trouxe benefícios a uma camada social dos EUA e imensos prejuízos a outra camada, ao contrário do que pregava o Consenso de Washington, a globalização é um processo desequilibrado e pouco eficiente.
A globalização beneficiou essencialmente o mercado financeiro e as grandes corporações multinacionais e prejudicou o resto, as empresas médias e pequenas, os empregados destas, que são milhões; prejudicou os não muito brilhantes, que são a imensa maioria das populações de qualquer País; o mundo não é habitado por gênios ou estrelas profissionais.
A globalização de capitais e de mercadorias não se transformou em globalização de prosperidade, em melhoria do nível de vida de bilhões de despossuídos, trouxe benefícios desiguais para ilhas de atividades modernas, mas arruinou número maior pelo mundo.
Os EUA dos anos 50 e 60, pré-globalização, eram uma sociedade muito equilibrada, havia os muito ricos como os Rockefeller, os Mellon, os Guggenheim, os Duke, os Astor, os Harriman, os Huntington, os Vanderbilt, os Frick, os Ford, os McCormick, mas ao mesmo tempo o operário americano tinha excelente nível de vida, com casa própria, carro e a mulher em casa; a esposa não precisava trabalhar porque seu salário era suficiente para um nível de vida de classe média, um padrão de vida invejado em todo o planeta. (Nota deste blog: Num momento seguinte, a mulher mostrou que podia agir conforme entendesse: entendeu que gostaria de trabalhar e, casada ou solteira, partiu para enfrentar o desafio).
A globalização acabou com esse mundo, que durou de 1945 a 1980; hoje a lista de bilionários da Forbes tem 49 desconhecidos que administram fundos "hedge", especuladores puros que ganharam fortunas sem produzir um parafuso - o maior deles é George Soros.
Esses são os aproveitadores da globalização, um processo que desequilibrou a sociedade americana por completo, e a eleição de Trump é o resultado desse desequilíbrio.
Um exemplo: conheço um senhor que foi executivo de grande empresa industrial, fez vários cursos de aperfeiçoamento, ganhava bem, casa própria, dois carros. A empresa foi vendida para um grupo financeiro, depois retalhada e fechada, ele foi despedido, mais de 50 anos, impossível arrumar novo emprego, hoje sobrevive fritando hambúrgueres em um restaurante, a esposa que antes nunca tinha trabalhado agora é atendente em um supermercado. É o fim do "American dream"; essa faixa pega metade da população americana. Na Nova Inglaterra e Nova Iorque há outra realidade, os empregos estão nas grandes universidades e centros de pesquisa e no mercado financeiro, enorme em Boston e Nova York. Na Califórnia a base do emprego é a industria do entretenimento, do turismo, da alta tecnologia, foi beneficiada pela globalização. O sonho americano desabou foi no centrão industrial do Meio Oeste.
Um exemplo: conheço um senhor que foi executivo de grande empresa industrial, fez vários cursos de aperfeiçoamento, ganhava bem, casa própria, dois carros. A empresa foi vendida para um grupo financeiro, depois retalhada e fechada, ele foi despedido, mais de 50 anos, impossível arrumar novo emprego, hoje sobrevive fritando hambúrgueres em um restaurante, a esposa que antes nunca tinha trabalhado agora é atendente em um supermercado. É o fim do "American dream"; essa faixa pega metade da população americana. Na Nova Inglaterra e Nova Iorque há outra realidade, os empregos estão nas grandes universidades e centros de pesquisa e no mercado financeiro, enorme em Boston e Nova York. Na Califórnia a base do emprego é a industria do entretenimento, do turismo, da alta tecnologia, foi beneficiada pela globalização. O sonho americano desabou foi no centrão industrial do Meio Oeste.
Trump é o resultado do fim do sonho mas não é a solução para revivê-lo.
Trump é o tumor que supurou e veio à tona; ele pode fracassar mas as causas que o elegeram continuam latentes e serão de difícil solução. O mundo abriu lugar na mesa para países antes miseráveis como China e Índia e estas populações absorveram parte da comida servida no jantar, às custas dos comensais antigos que antes jantavam sozinhos.
Trump é notavelmente despreparado para governar, (como acima registramos) emitiu um decreto executivo redigido por conselheiros sem experiência de governo e sem conhecimento jurídico, onde introduziram na linguagem a expressão "muçulmano", quando a Constituição americana veda peremptoriamente o uso de conceito de religião em qualquer ato legal. Poderia ter pedido assessoria do Departamento de Justiça ou do Departamento de Estado e não fez, preferiu usar marqueteiros para redigir a ordem executiva, abrindo o flanco para ela ser fulminada na Justiça, que Trump também se encarregou de ofender com o epíteto de "ridícula".
Além do erro formal, Trump se submete a imensos desgastes para causas menores, irrelevantes para os grandes problemas econômicos e sociais dos EUA. O muro do México e a barragem a naturais de sete países árabes são alvos sem qualquer valor estratégico real, a imigração do México está em declínio há quatro anos e os viajantes árabes com visto válido e green cards são exatamente os amigos dos EUA: para um iraquiano ter visto americano é porque passou por todas as investigações imagináveis e provavelmente prestou serviços ao Exército americano de ocupação, barrá-lo é uma humilhação e uma ingratidão indesculpável.
Artigo de capa da principal revista de poder do mundo THE ECONOMIST reverbera o desastre atual e potencial de Trump e chama a atenção para o papel do Brasil, que pode liderar uma América Latina agora hostilizada por Trump através da agressão humilhante ao México. Em artigo anterior O ESTADO NACIONAL ONDE ESTÁ? chamei a atenção para a necessidade do Brasil se projetar como potência regional, em um contexto onde THE ECONOMIST vê o rápido enfraquecimento da liderança americana em todo o mundo pelo isolacionismo de Trump, abrindo espaços para novos líderes mundiais. Resta saber se o Brasil, tendo peso geográfico, demográfico e estratégico tem vontade de ser líder de qualquer coisa; aparentemente faltam as elites para esse papel internacional.
Trump só é surpresa para quem acha que o mundo é um processo organizado e que a História tem uma lógica evolutiva estabelecida. Nenhuma dessas realidades é presente, o mundo é um caos e a História é anárquica sempre. Trumps surgiram em muitos países, governantes do acaso eleitos por um jogo aleatório como uma roleta russa.
Os talentos para alguém ser eleito não têm relação com a capacidade para governar, capacidade intelectual e emocional. Normalmente administrar entes públicos é muito diferente do que administrar negócios privados e é raro o empresário sem experiência em política que dá certo na política, uma arte bem específica e que não se confunde com gerir uma empresa.
Trump é um acidente da História, como tantos; cada país e região vai reagir de alguma forma, se é possível ver alguma utilidade em Trump será a de desarrumar um pouco a globalização financeira e comercial que está sufocando o mundo, jogar água fria nos movimentos politicamente corretos que estão infernizando o planeta, desarranjar uma sufocante burocracia que está paralisando o crescimento mundial e as liberdades individuais e empresariais: ONGS, acordos de cooperação judiciária e policial, compliances sem fim e sem lógica, a burocracia multilateral que fez o Reino Unido sair da União Europeia e atrapalha empresas e cidadãos sem incomodar minimamente traficantes, criminosos e terroristas. Trump é uma espécie de inseticida que vai colocar pânico no formigueiro até ser parado ou esgotar sua energia, um acidente histórico como tantos que a História registrou. (Fonte: aqui).
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