Uma moeda estável em um país instável
Por André Araújo
A implantação do Plano Real foi realizada por economistas ideológicos fundamentalistas neoliberais, mas com sólida formação e bom nível profissional. Escrevi dois livros, A ESCOLA DO RIO e MOEDA E PROSPERIDADE, de crítica a essa ideologia então aplicada ao Brasil, raiz de nossos males de hoje pelas distorções que instalou ao trocar de moeda sem corrigir os desequilíbrios que causavam a inflação.
A inflação é a febre e não a doença, trocou-se de moeda sem curar a infecção. Mas devo respeitar o gabarito intelectual de Gustavo Franco, Edmar Bacha, André Lara Resende, Pérsio Arida e outros da equipe do Real, tinham uma política e a puseram de pé.
Hoje, o mesmo fundamentalismo neoliberal, fora de moda em todo o mundo civilizado, está sendo aplicado a frio no Brasil por cérebros de muito menor calibre e que levarão o País a uma crise social e política no limiar de uma guerra civil.
Prévias dessa situação estão sendo demonstradas em tempo real nos assassinatos e saques em Vitória, capital de um Estado-vitrine do "ajuste fiscal". Essa crise em um Estado que executou minuciosamente a cartilha ortodoxa está chocando os ideólogos do "ajustismo" que não conseguem entender como não deram certo suas políticas que deveriam levar ao paraíso econômico de quem faz tudo certinho.
A entrevista de Miriam Leitão com um exaltado governador Paulo Hartung é muito reveladora. Entrevistado e entrevistadora estão ambos aparvalhados, "como assim não deu certo?" O governador, na falta de outros argumentos, coloca a culpa nos policiais militares, suas esposas e filhos.
Miriam parece concordar, ela é a "musa do ajuste", espécie de Rosa de Tokyo que prega pelas ondas hertzianas as maravilhas das políticas fundamentalistas. Aliás, o Sistema Globo está exagerando nos elogios a Meirelles por causa de milímetros de redução em um dos índices de inflação, apresentando essa mera estatística como uma extraordinária vitória que salva a economia brasileira.
Como um coro de música sacra, os jornalistas da Globo rasgam loas a esse mítico feito, que não tem a mínima importância dentro da mega recessão, é um grão de areia no tamanho da crise, não vai gerar um emprego de gari, querendo fazer o espectador crer que isso demonstra o acerto da política econômica.
Dony di Nuccio disse, sem ruborizar, que "agora o Banco Central mostrou que valeu a pena ser conservador", como se essa mera planilha gráfica tivesse efeitos sobre o preço da comida nos supermercados, que em nada refrescaram a vida dos pobres e muito menos dos desempregados, é uma inflação teórica reduzida em milímetros, nem toca na conta do pão.
No programa PAINEL da Globonews de ontem, 11 de fevereiro, três economistas de vitrine - escrevem em jornais importantes -, José Roberto Mendonça de Barros, Zeina Latif e Alexandre Schwartsman, ao fim de uma hora de narrativas concluíram que a recessão ainda vai durar muito, há tênues sinais, segundo eles, para algum alívio no desemprego, e não tiraram nenhuma conclusão sólida sobre de onde virá o crescimento, se é que haverá.
O problema é que NÃO há nenhuma comprovação teórica ou empírica de que inflação muito baixa incentive o crescimento. Não há na história econômica essa correlação. O Japão tem inflação zero ou negativa, abundância de poupança e a economia não cresce.
Os economistas de mercado não conseguem separar investimento "financeiro", algo que eles conhecem - e geralmente trabalham com isso -, e investimento "produtivo", daquela pequena empresa com 10 empregados e que, ao contratar mais 3 empregados porque suas vendas estão aumentando, faz o País crescer, o emprego crescer e a arrecadação crescer.
Essa empresa, e dezenas de milhares como ela, cresce quando há DEMANDA para seus produtos e isso não depende de inflação baixa, às vezes ao contrário.
Minha sogra tinha uma pequena fábrica de 9 empregados em 1944, trinta anos depois, em 1974, tinha 400 empregados, cresceu exclusivamente com reinvestimento de lucros porque havia DEMANDA para seus produtos (material elétrico), isso em um período de completo caos inflacionário.
Os economistas do PAINEL da Globonews ao fim do programa pareciam aparvalhados, sem nenhuma ideia ou proposta de solução, apenas mais do mesmo; em economia há escolas variadas de pensamento, (mas) porque William Waack convida três economistas de idêntica escola, todos pensam numa só linha; se é um painel para debates, que tal convidar pelo menos um de outra linha, como António Corrêa de Lacerda, Reinaldo Carneiro ou Laura Carvalho, todos professores de excelente currículo?
De que adianta convidar três economistas que vão dizer a mesma coisa com diferenças tão sutis que sequer são percebidas? Os economistas de mercado não conseguem ver saída da recessão e portanto da recuperação de emprego antes de dez anos, MAS não há na vida real esse tempo de espera, as pessoas precisam trabalhar para sobreviver, para comer, para comprar material escolar, para cuidar de sua saúde e de seus filhos, não podem esperar dez anos para que as planilhas desses economistas atinjam suas duvidosas "metas", o Brasil não tem escassez de nada, pode produzir tudo o que seus habitantes precisam, não depende de importação; por que não se pode atender a população que precisa consumir mas não tem emprego para pagar as compras?
O tempo econômico precisa se acertar com o tempo social e isso só se faz com expansão acelerada, e não com políticas recessionistas visando garantir a renda dos aplicadores.
A crise de 2008 nos EUA que poderia causar uma mega recessão foi resolvida em seis meses com gigantesca injeção de dinheiro do Tesouro: o TARP deu diretamente US$780 bilhões, mas a ajuda real foi de US$ 7 trilhões; os EUA saíram da crise rapidamente, nem chegou a haver recessão.
Crises extraordinárias exigem MEDIDAS EXTRAORDINÁRIAS e não receitas de bolo, o tempo social tem total precedência sobre as fórmulas de cursinhos.
Se, em 1933, Roosevelt seguisse as cartilhas fundamentalistas de Herbert Hoover e Eugene Meyer, chairman do Fed, a recessão não acabaria nem em 50 anos. Grande depressão exige ideias novas, revolucionárias, inteligência no seu sentido de solução de problemas.
Para os crentes dessa seita burra, como a inflação só aumentou 0,38% no mês, quando esperava-se 0,55%, então por causa disso os juros vão cair (quanto? aonde?) e com essa queda dos juros a economia deslancha.
Como é que se pode vender isso como algo decisivo? Essa queda de um quinto de um por cento refresca o desemprego? Como esses jornalistas têm coragem de se olhar no espelho? Quando se manipulam números em economia é preciso relativizar, contextualizar, esse índice foi conseguido com a queda forçada do dólar através de super intervenção do Banco Central à custa de swaps cambiais que em 2016 deram prejuízo, só em um semestre, de R$207 bilhões, dólar empurrado para baixo visando melhorar o índice de inflação, mas que prejudica imensamente as contas públicas; o BC manda a fatura da "segurada" do dólar para o Tesouro pagar e atrapalha enormemente as exportações, o que também reduz o emprego.
Melhor, muito melhor seria uma dólar a R$3,80, mais exportações, menos custo para o Tesouro com um índice de inflação maior, ruim para os rentistas de Miami e bom para milhões de brasileiros pobres.
Uma política de ajuste a frio em cima dos mais pobres, sem nem de leve tocar nos 16.000 mega salários nas Assembleias, Poder Judiciário, Ministério Público, Câmaras de Vereadores e Congresso Nacional, onde ninguém teve vencimentos e auxílios reduzidos ou parcelados, vai levar a múltiplas situações-Vitória, é o "ajuste-pelos-pobres" e não pelo topo da pirâmide.
O ajuste como combate ao desperdício pode e deve ser feito, MAS com outros critérios. Por exemplo, o aluguel de prédios públicos absurdamente caros em áreas nobres quando nas grandes cidades há prédios vazios de aluguel modesto, o INSS tem prédios abandonados que podem ser recuperados e usados pelo poder público, as corporações jurídicas têm se esmerado na expansão de gastos em prédios novos e luxuosos em meio à mega recessão, a ideia é dar conforto aos burocratas e não atender ao cidadão que demanda seus serviços.
Os salários acima do teto são outro imenso desperdício, desde o Congresso onde são milhares de super-salários, passando pelas corporações jurídicas e chegando às Assembleias Legislativas, Câmara de Vereadores e Tribunais de Contas.
Indivíduos que, no mercado competitivo, não conseguiriam empregos de 2.000 reais estão ganhando 50 ou 60 mil pagos com escassos recursos públicos; como falar em "ajuste" ou política de austeridade sem qualquer movimento para enfrentar esses desperdícios?
É histórico que políticas de contenção e austeridade sempre começam pelo exemplo de cima; a Inglaterra e sua monarquia são casos clássicos: no período de escassez de divisas para importar alimentos e combustíveis entre 1945 e 1951, o Rei Jorge VI e a Rainha Elizabeth se submetiam ao racionamento, assim como todos os Ministros; o Palácio de Buckingham às escuras para economizar energia; ficou ancorado o iate real Britannia (depois vendido).
Na atual política de ajuste, se vê pouco exemplo de cima em matéria de corte de desperdícios, todos os 81 Senadores têm carro com motorista 24 horas do dia, não há Parlamento no planeta com essa mordomia, o mesmo com Ministros de tribunais superiores, jatinhos da FAB à disposição para viagens sem limite; nenhum movimento de contenção se viu nessas áreas-símbolo, ao mesmo tempo em que se apregoa uma política de "corte de gastos" na ponta do povo.
Tribunais em meio à crise continuam fazendo licitações para lanches refinados, coquetéis, banquetes e medalhas, reformas de palácios; continuam alheios à recessão. Não se veem gestos de mediação da crise pela austeridade exemplar das altas autoridades.
Uma política de corte de gastos sem exemplos de cima não é séria e o povo percebe a contradição e com razão se revolta.
O Rio é um exemplo clássico, paga-se policiais com grande atraso e parcelamento dos magros salários enquanto desfilam dois Tribunais de Contas no mesmo Estado e uma Assembleia com mais de 400 marajás acima do teto na sua burocracia, sem contar os Deputados, também com carro e motorista cada um.
E como fazer ajuste sem ao mesmo tempo incentivar a economia com estímulos para gerar atividade, como investimentos em infraestrutura? Há no Brasil de hoje um VAZIO MONETÁRIO, dinheiro foi recolhido e retirado de circulação para baixar a inflação, pior ainda, o Banco Central gastou só no 1º semestre do ano passado R$207 bilhões em swaps cambiais para segurar o dólar visando "levar a inflação para o centro da meta", quando a prioridade é sair da recessão.
Quanto mais baixa a inflação maior o juro real para os rentistas e menor o incentivo para aplicar em ativos reais, imóveis e empresas, a inflação baixa e caindo ainda mais desestimula o investimento produtivo e incentiva o rentismo estéril.
A queda da taxa básica repercute muito menos do que se espera no juro realmente cobrado de empresas e pessoas, o efeito da Selic nas taxas REAIS do mercado bancário é muito relativa no tempo e na proporção, ao contrário do que apregoam os "economistas de mercado" e seus porta vozes na mídia econômica; a "queda do juro" só existe nas planilhas das boas intenções e não no mundo real.
O economista André Lara Resende, um ortodoxo reconhecido, trouxe à luz uma tese nova que está escandalizando seus pares, as taxas de juro altas não só não inibem a inflação como contribuem para ela, porque juros altos aumentam o preço dos produtos, já que as empresas repassam o custo financeiro para sua mercadoria.
É uma tese nova e interessante, desmontando o argumento medíocre de que juros altos combatem a inflação. Formulações e ideias novas são fundamentais para o arejamento da política econômica, mas como esperar isso de nulidades como Meirelles e Goldfajn?
Eles não têm no seu perfil nenhum sinal de ideias inovadoras, não são de modo algum admiradores do contraponto, nenhum deles tem um fiapo do perfil intelectual de um Keynes, de um Friedman, ambos criativos e amigos do debate, o monetarista Friedman formulou a ideia do bolsa-família e do dinheiro jogado de helicóptero para estimular a economia, hoje em dia os Nobel de Economia Krugman e Stiglitz têm a cada ano novas formulações e contestações a dogmas como a austeridade-grega, hoje cada vez mais condenada nos círculos da inteligência econômica.
Em certas circunstâncias, e a depressão é uma delas, a inflação é útil e necessária; o Japão tenta fazer inflação há cinco anos sem sucesso; inflação é como uma dose de sangue em organismo debilitado, não se usa sempre mas usa-se quando necessário; inflação não é sempre ruim, é um instrumento neutro que pode ser usado, mas para isso é preciso inteligência, algo que evidentemente não há em equipes econômicas medíocres.
Porém, uma expansão monetária de R$1 trilhão em médio prazo para investimento em infraestrutura provavelmente não causaria inflação, dada a ociosidade na indústria e a mão de obra disponível, mas o segredo é tolerar o RISCO de inflação e não continuar na OBSESSÃO sobre meta de inflação que hoje é a bandeira da política econômica, com o Conselho Monetário Nacional agora querendo BAIXAR a meta para níveis japoneses, uma completa insanidade em um pais com os níveis de recessão e desemprego do Brasil.
A insistência na política de ajuste - e ainda por cima ajuste errado porque só em cima dos pobres - vai levar o Brasil em um impasse social e político. O Espírito Santo é só uma amostra. O tecido social brasileiro não tem gordura para tolerar um desemprego continuado por muito tempo: desemprego ou empregos precários são a pólvora de situações limites na política, é uma lição de História através dos tempos, especialmente no Século XX.
A atual política econômica não dá qualquer esperança de saída da recessão, foca exclusivamente na inflação quando deveria pensar na renda da população; inflação zero sem renda não adianta nada, é preciso criar demanda com ou sem inflação, só com demanda nova se sai da recessão e a saída pode ser bem rápida.
A incapacidade de formular e aplicar uma política dual, ajuste com crescimento, é resultante da modéstia intelectual do comando da economia, pessoas com experiência exclusiva de mesa e computador, sem nenhuma ligação com a vida real, com a vida política, com a vida nas periferias, com o chão de fábrica, com os caminhões nas estradas; Meirelles teve toda uma vida em gabinetes de bancos, Goldfajn uma existência entre planilhas de bancos em salas fechadas, um pessoal sem conexão com o a população, com a história política e social do País, indivíduos robotizados e inexpressivos; como levar para a saída do buraco uma economia de um grande País complexo com essas criaturas medianas?
Quando se mede esses personagens com um Delfim, com um Roberto Campos, com um Oswaldo Aranha, com um Mario Simonsen, salta aos olhos a imensa diferença de escala: estamos pretendendo tocar uma economia complexa em meio a uma grande recessão com pessoas sem ideias e sem ideais, o que os americanos chamam de "contadores de feijão”.
Foi vendida a noção ao País de que a recessão se deve ao déficit público, absolvendo-se a política de juros altos e valorização artificial do Real, verdadeira causa da recessão.
E dentro do déficit público, se apontou como culpado o gasto social, esquecendo-se dos gastos com a alta burocracia, mega salários, prédios luxuosos, viagens em excesso, propaganda, veículos demais, palácios e tribunais com milhares de funcionários, excessos que saltam a luz dos olhos.
O déficit orçamentário nunca foi causa de recessão, o Brasil conviveu 40 anos com déficits orçamentários crescendo a taxas na média das mais altas do mundo.
A recessão no Brasil tem outras causas, juros estratosféricos, Real valorizado fora da lógica, paralisia completa dos investimentos públicos, agora nos últimos dois anos a desestruturação das empresas de construção civil e naval pela cruzada moralista, o desmonte do setor de óleo e gás. Esses são os focos da recessão e que não estão sendo sequer tocados.
Achar que porque a inflação baixou décimos de um por cento agora vamos crescer é uma piada fantasmagórica, de mau gosto e má intenção; estão brincando com a população com um economês de quitanda.
Vamos chegar ao pico da crise com MOEDA ESTÁVEL, inflação no centro da meta, glória completa, e o PAÍS INSTÁVEL à beira da guerra civil, o Brasil nas páginas da imprensa internacional como mau exemplo de miséria em país rico. (Fonte: aqui).
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Artigo para lá de interessante, que suscita reflexões e bom debate.
Trecho 'convidativo' ao debate:
"Uma política de ajuste a frio em cima dos mais pobres, sem nem de leve tocar nos 16.000 mega salários nas Assembleias, Poder Judiciário, Ministério Público, Câmaras de Vereadores e Congresso Nacional, onde ninguém teve vencimentos e auxílios reduzidos ou parcelados, vai levar a múltiplas situações-Vitória, é o "ajuste-pelos-pobres" e não pelo topo da pirâmide."
Itens a alinhar: Garantia de intocabilidade nas vantagens salariais de alguns; injustiça fiscal (imposto de renda 'camarada'); autonomia para a concessão de vantagens de classe; artifícios 'criativos' (verba "indenizatória": isenção de imposto; influência zero relativamente ao teto constitucional remuneratório) etc., etc., e o mais importante: como cortar os privilégios e ao mesmo tempo preservar o incondicional apoio político recebido? Daí, certamente, o "ajuste-pelos-pobres".
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