Por Brenno Tardelli
Está em curso para votação na próxima semana um projeto de lei que enterra o processo penal pensado a partir da Constituição Federal. O pacote anticorrupção vem aí para aplicar no varejo uma das técnicas que mais prendem no mundo, recriar um aparato da ditadura e eliminar institutos penais que limitam o poder de punir do Estado. Tudo isso nas chamadas “10 medidas contra a corrupção”.
Ou melhor: esqueça as “10 medidas”. Isso virou apenas o título de algo profundamente maior e mais perigoso. A cada relatório que passa na Câmara, mudam-se por completo as alterações no sistema punitivo brasileiro e são introduzidas matérias que nunca foram debatidas, nem com quem foi iludido e assinou aquela petição do MPF, nem com quem é da área.
Pelo que está sendo submetido à aprovação, o MPF conseguiu introduzir no projeto de lei o plea bargain na legislação brasileira. Isso significa a forma de negociação de pena típica daqueles filmes americanos em que a acusação força o réu a assumir a culpa e impõe uma condenação menor do que seria pela mão de um juiz.
POR CONTA DO 'PLEA BARGAIN', OS NORTE-AMERICANOS ESTÃO EM 1º LUGAR NO RANKING DO ENCARCERAMENTO
Somente por esse ponto, já é possível constatar que as 10 medidas não são contra a corrupção tão-somente, mas são contra o pobre. Contra o negro e a negra que cada vez mais são a clientela preferida do sistema penal. São eles que, fragilizados, terão de confessar crimes e aceitar penas impostas pela acusação para não enfrentar o processo comandado por uma Magistratura que quer se ver livre de julgar. É em nome da guerra às drogas, e não em nome da corrupção, que será feito o processo de aprofundamento do cárcere como poucas vezes já visto. Digo isso com provas e com convicção.
Como disse Rubens Casara, “esse modelo de ‘acordo’, no qual a vontade de uma das partes é viciada pela coação consistente na ameaça de uma pena mais grave, fez parte do projeto que gerou o grande encarceramento nos Estados Unidos da América, país em que a liberdade é tratada na lógica neoliberal como mais uma mercadoria. Lá a maioria dos estudiosos percebeu que não deu certo, aqui querem importar essa fórmula ineficaz e perversa”.
Casara resumiu brilhantemente o sadismo da proposta, que é a morte do processo penal brasileiro.
Além disso, como se não bastasse, as dez medidas fazem o favor de criar uma “Comissão de análise de denúncias de corrupção”, que não faz parte do Poder Judiciário, mas tem poder de investigar denúncias sem o conhecimento do denunciado, podendo, inclusive, “tomar as medidas cabíveis”. Qual a chance disso não virar um aparelho de perseguição política e macartismo?
Aliás, é difícil compreender quem que comemora a recriação da SNI. O MPF, tão inspirado em aprovar as medidas, certamente sai no prejuízo por dividir seu poder de investigação com outro grupo que pode vir a ser tão reacionário quanto. Já a minoria das carreiras certamente dispensa mais um instrumento de perseguição política travestido de moralismo.
Essa experiência de órgãos corregedores que, em nome do combate à corrupção, exercem poder sobre os investigados não é jaboticaba. Na Alemanha, havia a Gestapo, que hoje ocupa a lata do lixo dos livros de história, mas que, curiosamente, inspira não só esse projeto, como também nossas instituições acusatórias. Na Ditadura brasileira havia o Serviço Nacional de Investigação (SNI), morto com a redemocratização. Pena que pretendem ressuscitá-lo. (Nota deste blog: Não conseguimos localizar no Google informação sobre o SNI Serviço Nacional de Investigação. Teria tido o articulista a intenção de aludir ao Serviço Nacional de Informações?).
A loucura da inquisição e a sede pelo poder de acusar também transformaram o projeto no “Código da Acusação”, como definiu Marcelo Semer. Alguns delírios, por enquanto, estão de fora, como a morte do Habeas Corpus e a admissão de provas ilícitas, mas outros estão aí, como a morte da prescrição, por exemplo.
A cereja no bolo é o delator, que passa a ser tratado como profissão. Isso porque garante ao denunciante de 10 a 20% do valor, além de soltura da prisão, absolvição e toda e qualquer regalia imaginável. Trata-se da República dos Ratos, já que na atual conjuntura do Judiciário brasileiro, nem com a verdade o delator está compromissado.
Fica a revolta popular contra a anistia do caixa dois. Como uma cortina de fumaça, temo que com a pressão midiática, essa medida caia, fazendo as “dez medidas” parecerem um pacote “razoável” ou “moderado”. Não é. Ainda que caia a anistia, será um dos maiores retrocessos da história do Direito Brasileiro desde a redemocratização.
Brenno Tardelli é diretor de redação do Justificando.
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A propósito da questão do PLEA BARGAIN, em 18.11 publicamos - AQUI - o post a seguir:
O reincidente doleiro delator Alberto Youssef, condenado a 121 anos de prisão na Operação Lava Jato, foi premiado com a redução de sua pena para algo em torno de 3 (três) anos. Para que comparemos a delação premiada com o instrumento que teria inspirado o seu advento, vale a pena ler o post a seguir:
Delação Premiada versus Plea Bargain
Por Leonardo Avritzer
Delação Premiada versus Plea Bargain
Por Leonardo Avritzer
Plea bargain seria o equivalente norte-americano ao processo de delação premiada, tal qual ele existe no Brasil desde a aprovação em 2013 da lei 12.850. Aparentemente os dois institutos teriam objetivos semelhantes, forçar um processo de negociação através do qual o acusado por um crime trocaria informações com a procuradoria tendo em vista a redução da sua pena. De um lado, ganharia o acusado pela redução da sua pena e, por outro lado, o estado com a certeza de uma condenação que especialmente no sistema norte americano é incerta devido ao sistema do júri e às proteções que ele traz ao cidadão. Digo aparentemente, porque qualquer comparação mais aprofundada mostra a pouca relação existente entre o plea bargain no modelo norte americano e a nossa delação premiada.
Linguisticamente chama a atenção que o elemento central do instituto legal em uma língua é barganha e na outra a ideia de prêmio. Não surpreende o nome do instituto no direito anglo-saxão por um motivo principal, o plea bargain se espelha na ideia de contrato, isso é, na ideia de uma troca entre dois indivíduos ou entre um indivíduo e o estado através da qual cada um será capaz de auferir algum benefício. Portanto, cabe neste caso a ideia de barganha na qual em uma negociação, mesmo em uma situação assimétrica, existem ganhos mútuos. Por fim, vale a pena ressaltar que o objetivo do plea bargain entendido de forma contratual é a redução do risco, para o acusado de enfrentar a pena máxima e para o estado de não conseguir condenar o acusado em um tribunal. Portanto, a indeterminação do juiz ou do júri no caso de não aceitação da delação é o elemento principal que força a barganha. E ainda é importante ressaltar as limitações do juiz e procuradoria: as penas nos casos em que a prova existe em geral não são muito reduzidas.
Salta à vista de qualquer observador mais informado que não é apenas o nome que diferencia o instituto legal norte americano do brasileiro. O que diferencia os dois institutos legais são três características: a certeza da pessoa presa de que juiz irá condená-la o que torna a delação premiada no caso brasileiro uma pressão completamente indevida do estado sobre o cidadão; em segundo lugar, o tamanho do prêmio que é oferecido mesmo nos casos em que estado tem a prova da culpa, tal como estamos vendo no caso da Operação Lava Jato em especial para os diretores da Petrobras, a redução da pena foi de fato um prêmio. Mas, o terceiro elemento é o mais importante, o poder do juiz.
Vale a pena, mais uma vez, diferenciar o caso norte americano do brasileiro em relação a quem oferece a redução da pena. No caso americano, é o procurador de distrito quem oferece a redução da pena enquanto no caso brasileiro segundo o artigo 4 da lei 12850 é o juiz. Este é um dos elementos principais para entendermos a pessoalização e a privação de direitos realizada pela Operação Lava Jato. Em primeiro lugar, recusar a delação premiada passa a ser desafiar o próprio juiz e, portanto, o risco de não fazê-lo nunca é se submeter à incerteza de um sistema do júri e sim se submeter a certeza da condenação máxima, como vimos em diversos casos. Vale a pena também ressaltar as reduções absurdas de pena oferecidas pelo juiz Moro aos diretores da Petrobras e empreiteiros condenados. Portanto, o elemento central da delação premiada no Brasil é, como seria de se esperar, o rompimento do elemento contratual e o fortalecimento do estado na pessoa do juiz, envolvendo inclusive as suas convicções políticas. Só assim é possível explicar a politização da Lava Jato que alcançou o seu paroxismo na semana anterior às eleições com prisões de ex-ministros com objetivos completamente políticos. (Fonte: Aqui).
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Dois dos comentários suscitados merecem especial registro:
1. Do leitor Lucinei:
"'Só assim é possível explicar a politização da Lava Jato que alcançou o seu paroxismo na semana anterior às eleições com prisões de ex-ministros com objetivos completamente políticos.'
Bom dia, doutor.
"Vale a pena também ressaltar as reduções absurdas de pena oferecidas pelo juiz Moro aos diretores da Petrobras e empreiteiros condenados. Portanto, o elemento central da delação premiada no Brasil é, como seria de se esperar, o rompimento do elemento contratual e o fortalecimento do estado na pessoa do juiz envolvendo inclusive as suas convicções políticas."
Caiu a ficha da importância da subideologia do sinistro projeto de poder petralha? Não está claro que o objetivo era atingir determinado grupo político? Desde quando limitaram o escopo da campanha a partir de 2002 - mesmo com os funcionários deixando mais de uma vez claro que cometiam crimes desde 96! - ficou claro que o objetivo era político.
Na prática absolveram os crimes de 1996 a 2002 só porque não se encaixaram na 'tioria'.
Bom dia, doutor."
2. Do leitor Hydra:
"Os dois institutos analisados pelo articulista derivam da mesma fonte, e não por acaso, apesar das 'adaptações setentrionais', buscam o mesmo objetivo com alvos diferentes:
Enquanto o plea of guilty, ou plea of bargain, dirige-se a sistematizar a segregação social e econômica de milhões de rejeitados de sempre do sistema dos EUA (negros e latinos, e agora por último, em menor número, e por razões específicas, os muçulmanos), aqui se tem a delação premiada como objeto partidário de destruição de capital político de grupos adversários.
Há um engano comum no texto, próprio de quem analisa a questão apenas pelo viés "jurídico" (seja lá o que isso signifique)...
O acusado nos EUA não conta com a possibilidade, senão remotíssima, de sair-se livre no fim do processo, portanto, não há uma negociação onde o Estado queira afastar a possibilidade, ainda que remota, de absolvição...
Por outro lado, o acusado também sabe que será condenado.
O Estado sabe que o acusado será condenado, tanto pela manipulação das provas desde a colheita pela polícia e parquet, até pela hipossuficiência que coloca a defesa do réu sempre em desvantagem, pelos motivos que também conhecemos, tanto pelo conservadorismo arraigado nos júris, que refletem a visão já pré-determinada dos réus a partir de sua origem, e não com base nas provas (já viciadas).
O acusado sabe sua condenação pelas mesmas razões empíricas.
O que o Estado estadunidense quer, com os acordos, é a declaração de culpado com a maior celeridade possível, para alimentar a máquina privada penitenciária, em alguns casos de estados da federação, e, principalmente, para jogar os declarados culpados no sistema penal, de onde nunca mais sairão, e nunca mais se livrarão das consequências:
- sub-empregos por causa da anotação criminal;
- exclusão de todo e qualquer sistema de proteção social;
- impedimento de votar.
Logo, a reincidência penal é quase certa, e a política do three strikes you're out (três strikes - bolas perdidas do baseball - você está fora), agora reduzida para two strikes... em quase todos os estados, acarretará aos indesejáveis penas muitíssimo mais duras e a encarceramentos quase perpétuos ou perpétuos, em situações draconianas, como duas 'condenações' por posse e uso de drogas e uma de furto com invasão domiciliar... ou um assalto sem vítimas...
O artífice-cúmplice desse monstro penal (three strikes policy) chama-se Bill Clinton...
Nesse sentido, não há diferença entre os dois institutos, a não ser pelos alvos, e, claro, pelos resultados, mas ambas (as políticas) são instrumentos políticos definidos de ataque de classe por natureza precípua...
Há casos nos EUA de três ou quatro gerações de negros que NUNCA exerceram o direito de votar, desde a escravidão até a Restauration, passando por Jim Crow e agora a nova Jim Crow, a War on Drugs...
E tais estratégias são cruciais no sistema eleitoral estadunidense, a ponto de analistas afirmarem que o resultado das eleições de 2000 (Gore vs Bush Jr) seria outro se o eleitorado negro não estivesse impedido por acordos de culpa (plea of guilty) e parole (condicionais).
É cediço que a presença de negros é muito maior nas bases eleitorais democratas...
Nos EUA, os acordos servem sim aos criminosos mais ricos, tanto pela pouca possibilidade de reincidirem, quanto pela força de suas defesas em processos futuros... Nesse caso, pode-se considerar a transação (pré) processual como um acordo de fato, onde o Estado tem menores chances de condenação...
Não raro, os mais ricos preferem ir ao processo, exercendo o direito expresso no due process of law (devido processo legal), erroneamente interpretado aqui pelo aspecto da legalidade devida nos processos, mas que significa para os EUA algo como o processo legal que é devido ao réu...
No Brasil, a delação não alcança o andar de baixo da criminalidade, muito porque a condenação de pretos e pobres já traz toda uma gama de consequências trágicas, sem que o voto que ainda lhes é garantido quando livres altere o estado das coisas, e por outro lado, porque os crimes cometidos por eles não compensam diretamente a ninguém, ao contrário, é justamente o medo dessa criminalidade que dá coesão ao discurso fascista classe média...
Também não há muita preocupação com os aspectos penais e acordos de culpa no Brasil dos indesejáveis como instrumento de opressão de classe, porque ainda temos as execuções extra-judiciais das penas capitais nas periferias, outro instrumento eficaz de coerção de classe...
Mas repetimos: aqui como lá, não há acordo, e sim extorsão mediante sequestro."
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Dica de leitura:
"A delação premiada como instrumento de manutenção dos privilégios", por Raoni Vieira Gomes - AQUI.
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Dica de leitura:
"A delação premiada como instrumento de manutenção dos privilégios", por Raoni Vieira Gomes - AQUI.
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