O homem que sabia economês
Por André Araújo
No célebre conto O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS, o escritor Lima Barreto narra a trajetória de um homem que fez sua vida no Rio de Janeiro do começo do século passado, usando como gancho na sua escalada um pretenso conhecimento do idioma de Java.
Como ninguém no Brasil daquela época tivesse conhecimento da língua de Java, ninguém podia conferir o conhecimento do personagem do conto. Lima Barreto quis demonstrar como existem pessoas que se apresentam ao mundo como sábios que não são, mas, como ninguém se dá ao trabalho de conferir, passam toda uma vida ostentando uma ficção de conhecimento.
A grande habilidade ou esperteza é não se deixar pegar em falso, mantendo sempre a aparência de sábio daquilo que não sabe, caso do personagem do conto.
O HOMEM QUE SABIA ECONOMÊS - Na República dos Coqueiros surgiu um Ministro que se promoveu por todo lado como grande conhecedor de economia e enorme relacionamento no alto mundo financeiro internacional. O porte pomposo, a voz empostada, o discurso solene, transmitem laivos de sabedoria, experiência, seriedade. O papel lhe cai bem.
Ninguém verdadeiramente avaliou seus conhecimentos da ciência econômica como formulação de opções a partir de um amplo contexto social e político. Ninguém, por sua vez, sabe de sua visão de Estado nacional, do papel da República no mundo, da estratégia para que a República garanta sua posição no contexto geopolítico mundial.
Ninguém conhece, porque nunca escreveu um livro expondo em linguagem de estilo sua visão de História, de economia, de política. Nada se sabe, mas consta que ele sabe muito.
Como nunca ninguém conferiu, nem aqui e nem nas rodas mais altas do poder financeiro mundial, se ele é o que parece, fica valendo o que parece que é.
Grandes comandantes de economia de um País com as dimensões do Brasil, o Embaixador Roberto Campos, participante da Conferência de Bretton Woods, onde foi arquitetado o mundo econômico pós Segunda Guerra, legou enorme obra memorialística, seu LANTERNA NA POPA tem 1.450 páginas. Além dessa, mais oito livros. O Ministro Delfim Neto, professor catedrático de economia da USP, que tem a maior biblioteca particular do Brasil sobre economia, tem muitos livros publicados, o primeiro sobre café, uma de suas muitas especialidades.
O Professor Mário Henrique Simonsen, fundador da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas, era também autor de boas obras. Uma é primorosa, a monografia sobre Oswaldo Aranha como Ministro da Fazenda nas suas duas fases, a de 1930 e a de 1950, onde Simonsen se aprofunda nas duas históricas gestões quando Aranha fez milagres com a dívida externa brasileira. Sua cultura não se restringia à economia, Simonsen era profundo conhecedor de ópera e barítono nas horas vagas.
Outro Ministro, da escola mais ortodoxa possível, fundador dos cursos de economia no País, Gudin tem sua obra clássica, PRINCÍPIOS DE ECONOMIA MONETÁRIA, verdadeiro manual que guiou os primeiros estudantes de economia do Pais.
Ministro da Fazenda precisa ter estofo intelectual, cultura de História, de História da Economia, de História do Pensamento Econômico, precisa ter intimidade com todos os grandes mestres do passado, de List a Pareto, de Leontiev a Kaldor, refletir e elaborar sobre esses filósofos da economia porque eles nos dão as luzes da ciência no tempo histórico.
Fico pasmo com o pouco debate sobre a PEC de teto de gastos, má ciência e má política. Não há paralelo histórico, taxa de inflação não é um referencial fundamental para balizar como leme o orçamento. Quem dá tanta importância à taxa de inflação já está revelando sua linha de política econômica, que é a preferência da estabilidade sobre a prosperidade, uma visão anti-keynesiana, retrógrada e contra a tendência geral pós-Trump, onde a inflação se torna menos importante que o emprego. Trump já indica que não curte limite de gastos, muito pelo contrário, vem aí inflação em dólar, expansão monetária, tudo na contramão da PEC 55. O Brasil é o único País que está valorizando sua moeda contra o dólar, na contramão do mundo, vamos ser o novo Portugal de Salazar, moeda forte e povo faminto.
Na lógica, um limite de gastos no orçamento deveria ter como teto a arrecadação. É esse o parâmetro universal para controle da despesa nos orçamentos, não se pode gastar mais do que se arrecada, a receita fiscal deve ser o limite e nunca a inflação, pois poderemos chegar ao absurdo da receita subir 20%, a taxa de inflação ser 3% e a despesa estaria congelada em 3% mesmo com forte subida da receita. Está claríssimo que o objetivo da PEC não é administrar racionalmente o Orçamento Federal, é garantir sobra para os juros da dívida publica. Quem inventou essa PEC está pensando nos rentistas e não na população em geral.
Com em nenhum outro ciclo da História, o Brasil está entregando seu futuro econômico a um plano do fim do mundo, apocalíptico e sem projeto de execução, uma simples ideia de limite de orçamento como se isso fosse o total da economia e definidor das demais variáveis.
A função do Ministro da Fazenda no histórico dos 87 Ministros da Fazenda da República é cuidar da economia na sua totalidade e não só do orçamento. A economia no seu conjunto é muito maior do que o Orçamento Federal, cuidar da economia é ter clara visão dos problemas de conjuntura e da organização dos fatores para o médio prazo e para os alvos finais.
A maior distorção do Orçamento é a conta de juros, agora somada a outra conta da mesma origem, o custo dos seguros cambiais que o BC usa sem nenhuma preocupação com o que isso significa para as finanças públicas, custo esse que mantida a conta do primeiro semestre pode chegar a R$ 400 bilhões, somados aos juros da dívida de R$ 600 bilhões, chegaremos a R$ 1 trilhão em 2016, número jogado atrás do pano para se expor exclusivamente os gastos das despesas correntes. Estas necessitam de muitas correções sobre desperdícios evidentes, mas não são elas a causa da recessão. O Brasil teve nos últimos 60 anos seguidos déficits no orçamento federal mantendo ao mesmo tempo pujante crescimento econômico.
Os custos do seguro cambial oferecido pelo BC ao mercado financeiro impactam diretamente no gasto do Governo porque o BC manda essa conta para o Tesouro; se assim é, por que o Congresso não estipula um LIMITE ao BC para gastar com seguro cambial?
Como está hoje, o BC tem um limite em branco, pode gastar quanto quiser com essa mega despesa, SEM TETO, pode quebrar o Tesouro para segurar o câmbio; o BC faz aquilo que se quer impedir que o Governo faça, gastar sem limite e sem controle.
A recessão tem múltiplas causas, variáveis não virtuosas que levam a um "clima" de desconfiança da gestão econômica do País mas, especialmente, da política monetária, de crédito e cambial, todas a cargo do Banco Central. BC que se faz passar por inocente passivo em relação ao Tesouro mas que é, na realidade, o grande maestro da política econômica e principal causa da recessão no País ao patrocinar uma política com dois efeitos perversos, juros muito acima do padrão internacional e consequente valorização do real, o que torna o País caro e em desalinho com os preços internacionais, algo que os brasileiros verificam quando viajam ao exterior. O viés monetarista do BC só se agravou com a nomeação de um ultra ortodoxo para sua Presidência, alguém que cultua um fetiche da moeda como fim último e não como instrumento para a prosperidade e bem estar da população.
A política econômica de um governo, certa ou errada, tem que ter amplitude, medidas de curto, médio e visão de longo prazo, precisa dar vislumbre de objetivos, não só de meios. O orçamento federal é apenas uma parte de um plano de política econômica, não é a totalidade dessa política. A atual equipe só tem um tema, que é o orçamento; onde estão os demais?
Política cambial, qual é? Política de crédito, qual é? Política de comércio exterior, qual é?
Qual é a política para sair da recessão e voltar a crescer? Qualquer política econômica digna desse nome tem que ter uma meta virtuosa, de criar prosperidade. Até o Plano Erhard, da Alemanha destruída pela Segunda Guerra, tinha uma meta de crescimento da economia. Um plano também é um portador de esperança sem a qual ninguém vive.
Política econômica é a OPERAÇÃO no dia a dia, no varejo e no atacado, dos instrumentos de manejo da economia. Reformas, no sentido de grandes rearranjos de regras e normas, são outra coisa. O Brasil precisa de muitas reformas, como a da previdência, mas essa plataforma não se confunde com política econômica. Esta se refere ao AQUI E AGORA, ao dia a dia. Essa separação ficou muito clara no Governo Castello Branco, quando o dia a dia ficou com o Ministro da fazenda Octavio Gouveia de Bulhões e as reformas com o Ministro do Planejamento Roberto Campos, separação perfeita, um cuida do dia a dia, do curto prazo, e outro cuida do futuro.
Usar a desculpa das reformas para não fazer nada no AGORA é o que hoje se apresenta.
Tudo depende da PEC do teto dos gastos, tudo depende da reforma da previdência, então devemos esperar a PEC dos gastos ser aprovada, algo cujo efeito só se daria daqui a dois anos, e depois a Reforma da Previdência, que só terá efeito real daqui a uma década, para então consertar a economia de hoje. Isso é PREGUIÇA de agir hoje para tirar o País da recessão, jogar algo aleatório no futuro para não fazer nada agora.
Mas a atual equipe econômica não tem objetivos; se tem, não comunicou à população.
Teto de gastos é um MEIO, não é um objetivo. Quais são os demais instrumentos para a economia crescer? Vai crescer pelas exportações? Delfim com sua engenhosidade criou o BEFIEX, plano que produziu notável crescimento das exportações de manufaturados.
Esta equipe tem uma ideia sobre exportação? Nenhuma.
Pela primeira vez, desde a fundação da República em 1889, o Brasil tem um governo que não tem um projeto econômico. Até o instável Governo João Goulart tinha seu plano econômico, o Plano Trienal de Celso Furtado. JK tinha seu Plano de Metas, 30 metas e Brasília. Os Governos militares tiveram os seus Planos Nacionais de Desenvolvimento a cada governo.
Reformas são projetos institucionais, não são planos econômicos.
A explicação pela ausência é simples, nenhum dos dois comandantes da política econômica - e são só dois, porque o Ministro do Planejamento, que deveria ser parte integral de uma política econômica evidentemente não participa da torre de comando - tem a capacidade de formular qualquer política econômica, seu único objetivo é reduzir os gastos de custeio para garantir o pagamento da dívida publica.
Só isso. Esse é o plano econômico do governo, não tem mais nada. A isso é que se resume a política econômica da dupla, porque essa é sua função no governo, e mesmo que quisessem não têm nenhum apetite para voos mais altos, a noção de Brasil dos dois termina na sala de reuniões de um banco.
Mas mesmo que a política econômica ultra monetarista tivesse maior consistência, além de um corte de gastos, há a questão do tempo social e do tempo político para a execução desse roteiro ultra ortodoxo à la grega, que implica em aprofundamento da miséria.
Esse tempo não existe. Uma política econômica desse viés exige um período de governo mais longo e um imenso capital político, além de pleno apoio popular, fatores complicados em uma crise de sobrevivência de milhões de famílias.
Melhor seria, para um governo de transição, adotar políticas de estímulo à produção e ao emprego.
A ciência econômica foi inventada para diminuir os custos e os sacrifícios que a natureza da economia exige. Através da ciência se pretende harmonizar melhor os fatores de produção para administrar a escassez da forma menos onerosa possível à população.
Se é para arrancar dentes a martelo e sem anestesia não é preciso existir dentistas.
Porque então um governo, cuja lógica universal é se manter no poder, opta pelo caminho mais pedregoso e fazendo a população sofrer colocando em risco sua capacidade de governar?
A explicação me parece ser óbvia: um gigantesco erro de diagnóstico vendido como verdade.
O erro vem do grupo de economistas ligados ao PSDB, que aparentemente tem carta patente de sabedoria econômica desde o Plano Real e que aparenta ter ascendência sobre o comando político do PMDB. A receita do corte de gastos tem o cheiro inconfundível desse grupo, uma visão exclusivamente monetarista "demodée" até na Universidade de Chicago, onde nasceu a Segunda Escola monetarista, a de Milton Friedman, hoje impopular na sua própria alma mater. O legado de Friedman passou para a Carnegie Mellon University de Pittsburgh, onde leciona seu herdeiro intelectual Alan Meltzler.
Após a crise de 2008, cujas causas vêm desse monetarismo a outrance (excessivo, exagerado) de Friedman, ocorreu uma grande revisão do monetarismo cru e das premissas do neoliberalismo doutrinário de Hayek, Reagan e Thatcher, porque só se resolveu essa crise com fortíssima intervenção do Estado, através do programa TARP, onde a salvação da economia americana veio do Tesouro e não do mercado. Políticas monetaristas e neoliberais puras já não são mais digeridas cruas. Aqui, como em tudo, as ondas revisionistas de qualquer coisa chegam muito atrasadas e os economistas de mercado continuam dando entrevistas pregando velhas receitas dos anos 80 e 90, quando o mundo a la Brexit e Trump indica muito maior protecionismo e intervencionismo porque se viu que o mercado sem controle agrava problemas econômicos.
O desperdício e o aumento de gastos do Orçamento Federal é uma realidade sobre a qual aqui já escrevi incontáveis posts. O Governo tem poder imediato para intervir, sem PEC, em grandes núcleos de gastos elevados, como aluguéis de prédios para órgãos públicos, contratos de terceirização de mão de obra e veículos, compra de tecnologia de informação, consultorias de todos os tipos, cursos de treinamento, equipamentos para hospitais; nada disso necessita PEC, basta agir. Tudo isso é necessário, mas não é daí que vem a recessão. E consertando essas ilhas de desperdício não será por isso que o País volta a crescer.
E é chocante achar que a economia total de um País tem como único eixo o orçamento federal e nada tem a ver com políticas como a monetária, a de crédito, a cambial, a de comércio exterior. Então o diagnóstico desse grupo de economistas é limitado, viram um furúnculo mas existem muitos mais a extirpar, e, pior que tudo, não conseguem enxergar que a política econômica pode, ao mesmo tempo em que pratica a austeridade, agir para estimular a economia produtiva e esta, pelo aumento da arrecadação, irá auxiliar o ajuste fiscal.
O diagnóstico desse grupo diz que a recessão brasileira é causada pelo excesso de gastos do orçamento federal. O excesso de gastos é real, mas ele não é a causa primeira da recessão. Esta vem de outros fatores, especialmente da péssima política monetária e cambial do BC, ao manter juros absurdamente altos e com isso valorizar o Real para conter a inflação a um custo incrivelmente alto para o conjunto da economia. Com o dólar a R$ 5 e juros 3% acima da inflação, a economia teria oxigênio para crescer ou, pelo menos, estabilizar.
Com o erro de diagnóstico vem o erro de solução. Pretende-se interferir exclusivamente no orçamento sem tocar nas políticas erradas do BC. O paciente tem câncer e resfriado e o médico está tratando só do resfriado, não lhe interessa o câncer. O paciente vai ficar bom do resfriado e morrer de câncer. É isso que faz o BC ao se concentrar exclusivamente na meta de inflação abandonando qualquer outro objetivo.
Sinal inequívoco nessa direção é o fechamento de quase 700 agências do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal e a devolução de R$ 100 bilhões do BNDES para o Tesouro, que serão inteiramente direcionados para a dívida publica.
Essas duas medidas significam REDUZIR o papel dos bancos públicos em um momento em que eles são mais essenciais para sair da recessão. Tirar recursos do BNDES significa menos investimentos na economia. Fechar agências do Banco do Brasil em locais valiosos como em Fóruns (15 agências) significa reduzir sua base de captação de depósitos e portanto sua capacidade de emprestar, tudo favorecendo o sistema privado, que vai obviamente suprir os Fóruns e Tribunais com suas agências e em detrimento do sistema público de crédito.
Todas as essas providências não são uma política, mas são um roteiro para diminuir o papel essencial do Estado no crescimento, que na História do Brasil sempre foi o maior agente de desenvolvimento e isso não mudará porque é parte da formação do País. Ao reduzir o papel do Estado está se condenando o Brasil a não crescer, a mais que isso: a regredir a condições inferiores de economia primitiva sem fontes de sobrevivência para dezenas de milhões de famílias, é o que os números mês a mês estão demonstrando. A cada período cai o emprego e fecham empresas, em um círculo vicioso onde o desemprego e a falência de hoje são o motor de mais desempregos e mais falências no ano próximo. Não há NENHUM fator nesse roteiro que indique algum indutor de crescimento na economia.
Poucas vezes na História Econômica do Brasil se viu tal erro de diagnóstico e consequente erro de tratamento na economia do País. Períodos sim ocorreram de males difíceis como as altas inflações de certos períodos, mas os que cuidavam da economia tinham pleno domínio dos fatores e operavam dentro das possibilidades do terreno, não praticavam políticas econômicas de engano e desfoque como hoje, verdadeiros roteiros para o desastre.
(Fonte: Jornal GGN - AQUI).
(Fonte: Jornal GGN - AQUI).
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