".Isso é absurdo. Muito disso vem da Europa, que está agora afundada em um completo retrocesso. Eles, que abandonaram qualquer tentativa de construir (uma opção viável), estão chamando isso de retrocesso?
.A eleição de Trump é a rebeldia da maioria trabalhadora branca do país contra seu abandono. Aí a crítica é: Trump não é uma resposta adequada.
Mas em política tudo tem a ver com as alternativas. Então, o que é melhor? Continuar com essa ortodoxia conservadora do Partido Democrata ou virar a mesa? Essas são as alternativas reais da política real.
A partir dessa reviravolta em Washington, os americanos devem buscar uma resposta mais adequada e séria para o problema que a eleição de Trump revela.
.A base essencial da eleição de Trump foi o grande vazio criado na política americana, há meio século, pelo abandono dos interesses da maioria trabalhadora branca do país.
O Partido Democrata substituiu o projeto do New Deal (série de programas implementados entre 1933 e 1937 pelo democrata Franklin Roosevelt para reformar a economia americana) por concessões aos interesses das minorias e pela representação da visão de mundo da classe que mora nos subúrbios ricos.
Diante disso, o Partido Republicano construiu uma fórmula exitosa. Ele fez concessões materiais para a classe endinheirada, como baixar os impostos, e concessões às preocupações morais da maioria pobre em temas como, por exemplo, o aborto.
Portanto, criou-se um grande vazio na política americana, que pedia um outsider.
.O projeto que estava no poder não atendia aos interesses da maioria trabalhadora e lhes dava como compensação que pelo menos ela não seria ofendida em suas convicções morais e religiosas.
Era algo como "vamos abandoná-los, mas evitaremos que suas crenças sejam excessivamente ofendidas".
Em algum momento, isso deixou de ser suficiente e criou a oportunidade que um aventureiro aproveitou. Se não fosse Trump, seria outro.
Havia, e há, uma base frágil na política americana, porque a maioria está abandonada em seus interesses. Homenagear negros, mulheres e latinos é muito bom, mas não substitui o problema essencial, que é a falta de oportunidades e capacitações para a maioria do país.
.É uma situação análoga à do Brasil. Os brasileiros não têm razão para considerar esse acontecimento tão absurdo e incompreensível. O Brasil é o país do mundo mais parecido com os Estados Unidos.
Como eles, nosso atributo mais importante é a vitalidade, hoje encarnada numa pequena burguesia empreendedora e numa massa de trabalhadores pobres que vêm atrás dela.
A tragédia dos dois (países) é negar oportunidades à maioria, que é cheia de energia, mas sem condições de transformá-la em ação fecunda.
Na nossa realidade, o formato desse enigma foi ter confiado num projeto baseado na massificação do consumo e na produção e exportação de commodities. Enquanto a mineração e a pecuária pagavam as contas, funcionou. Quando deixaram de pagar, ruiu.
Na discussão brasileira, os dois substitutos são as agendas (anticorrupção) da Polícia Federal e do conserto das contas públicas. É isso que serve de substituto para um projeto nacional que não existe. Também há um grande vazio na política brasileira, embora com outra feição e origens. Mas o resultado é semelhante.
.Especificamente na relação com os Estados Unidos, temos uma grande oportunidade agora.
Hoje temos uma dependência completa dos Estados Unidos em matéria de defesa e de segurança. O Brasil é objetivamente um protetorado dos americanos.
O grupo dominante no Partido Democrata aderia à doutrina do imperialismo liberal, tinha uma visão fixa da América Latina, na qual o nosso papel era ser uma linha auxiliar dos Estados Unidos em tudo, inclusive na defesa.
Já Trump volta-se para os problemas internos. Com relação à América Latina, fora a problemática migratória, ele não tem posição fixa. Portanto, há um grande espaço.
Há um tensionamento com o México e temos interesse em vê-lo superado. Mas, ao analisar com frieza, devemos compreender que a tendência será buscar compensação em outro lugar da América Latina. E o lugar natural é o Brasil.
.Na União Europeia, as regras determinantes da ordem econômica e social são cada vez mais concentradas no centro. No centro formal, que é Bruxelas, e no centro real, que é Berlim. E o poder de definir os direitos sociais dos cidadãos é delegado às autoridades nacionais.
Deveria ser o oposto. A UE deveria ser assegurar mínimos sociais e educacionais em toda a Europa, e permitir que países como Portugal ou Grécia pudessem desenvolver novas estratégias econômicas.
Do jeito como é hoje, a Europa virou uma camisa de força. É natural que se rebelem os países, inclusive a Inglaterra. O Brexit não precisa ser compreendido apenas do ponto de vista de uma reação nativista. Ele tem outra justificativa.
Já o nativismo dentro da Europa prospera porque a social-democracia conservadora abandonou as maiorias de seus respectivos países, confundindo a representação da maioria com a representação daquilo que os marxistas chamam de aristocracia operária, as pequenas minorias organizadas. Isso sim é semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos.
.Temos no Brasil 40% da população brasileira na economia informal. Na economia formal, uma parte crescente dos trabalhadores está em situação de trabalho precarizado. Se você somar os informais e os precarizados, é a maioria da força de trabalho do país. Quem os representa? Qual é o projeto para organizar, proteger e qualificar essa maioria?
A esquerda tradicional não faz isso. Ela faz parte do corporativismo das minorias organizadas, que comandam o país.
Se você me disser que o outsider é aquele que se rebela contra esse corporativismo, quero esse outsider.
.Não há esquerda na Europa. O que há é a social-democracia conservadora, que abandonou qualquer tentativa de reinventar o Estado ou a economia, e se satisfaz em atenuar as desigualdades com programas sociais.
Não quero ver o Brasil repetir o erro trágico da esquerda europeia, de demonizar a pequena burguesia que, em seguida, virou o sustentáculo dos movimentos de direita. Isso não aconteceu agora, mas ao longo do século 20.
Há mais pequenos burgueses do que há proletários industriais. E a população tem aspirações que começam por serem burguesas: um pequeno negócio, uma casa, uma modesta prosperidade. Temos que vir ao encontro dessas aspirações e oferecer opções que possam torná-las mais generosas."
(De Mangabeira Unger, filósofo e teórico, professor da Universidade Harvard e ex-ministro nos governos Lula e Dilma Rousseff, na BBC Brasil.
O que se vê acima são algumas das abordagens feitas por Unger; a entrevista completa está AQUI.
Clique aqui para ver comentários diversos).
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