O xadrez do novo normal jurídico
Por Luis Nassif
Começou a contagem regressiva para a votação final do impeachment, no Senado. Haverá a necessidade de aprovação por dois terços dos senadores. Na votação de admissibilidade conseguiu-se chegar a esse número. Mas qualquer defecção eliminará a maioria qualificada.
Vamos dividir nosso Xadrez de hoje em três blocos:
1. As megatendências: Os processos que irão evoluir independentemente das estratégias políticas.
2. O butim dos vencedores: as bandeiras centrais de cada um dos condôminos do poder.
3. A guerra pelo poder: cenários possíveis de disputa política.
As Megatendências
“Novo normal” é um termo que os economistas utilizam para definir um novo cenário no qual a crise altera os fundamentos que norteavam o cenário anterior.
Nosso novo normal significa uma ruptura com o período de relativa normalidade democrática que se seguiu à Constituição de 1988 e o início de uma era de arbítrio.
Tendência 1 -- Dificilmente o governo interino se viabilizará politicamente.
Nos primeiros dias de governo interino, Temer conseguiu acumular enorme desgaste, inclusive perante o público pró-impeachment. Há uma autocrítica da parte de senadores, parlamentares em geral. Perante a opinião pública, o governo não conseguiu legitimidade. Há um pipocar de manifestações por todo o país que parecem não refluir.
Por outro lado, nem mercado, nem empresários, nem a própria mídia - parceira preferencial do golpe - parecem ter se convencido da viabilidade do governo Temer.
Portanto, por aí haveria espaço para a não aprovação do impeachment.
É um fato com muitos desdobramentos, que serão devidamente analisados no capítulo sobre A Guerra do Poder. Ante a impossibilidade de preservar o poder através das futuras eleições, poderão ser tentados caminhos arbitrários.
Tendência 2 - A estratégia de Dilma Rousseff e do PT está restrita à mobilização das ruas.
Após deixar o governo, Dilma Rousseff cresceu na mesma proporção da perda de legitimidade de Temer. Surpreendentemente, tornou-se uma figura amada pelas esquerdas, algo que não foi e não fez questão de ser em todo seu governo.
Há uma tendência de ampliação dos movimentos de rua. E nenhum movimento de articulação junto aos poderes de fato.
Mobilização sem articulação nos níveis maiores de poder ajuda a segurar tentativas de golpe. Mas não é condição suficiente para a retomada de poder.
Dilma precisaria construir uma narrativa eficaz sobre o que seria seu governo, em caso de queda do impeachment. E montar, desde já, um arco de alianças político-institucionais.
Não é tarefa fácil sequer para políticos experimentados. Com Dilma, beira o impossível. (Dica para os historiadores: como uma presidente durante seu governo insensível para movimentos populares tornou-se amada a posteriori).
Tendência 3 - A disputa se estenderá a outras instâncias de poder.
Ministério Público e Polícia Federal estarão cada vez mais partidarizados e se distanciando dos sistemas de controle democrático através da ação individual de seus membros.
Tenta-se, agora, colocar as Forças Armadas na jogada explorando uma bobagem do PT que, na sua autocrítica extemporânea, menciona o erro de não ter promovido oficiais progressistas. Por uma bobagem à toa, compromete anos de relacionamento sério e produtivo com um setor que, até agora, comportou-se de forma irrepreensivelmente profissional.
As cassandras se alvoroçaram e trataram de dar gravidade ao episódio.
Tendência 4 – haverá o crescimento gradativo do arbítrio.
O processo do impeachment foi a consagração do novo normal jurídico: a retirada do poder de uma presidente por uma razão banal.
Consumado o ato, rasga-se a fantasia. Os protagonistas deixam de lado os pruridos de isenção e não se dão mais ao trabalho de buscar álibis.
Historiadores têm à mão uma análise de caso online sobre a maneira como se instala o arbítrio em um país (Dica para os historiadores: Como o arbítrio impõe um novo normal jurídico).
No início do processo, políticos e operadores da lei são seguidores do “livrinho” (a Constituição). Ações como as de Gilmar Mendes, impondo sua vontade sobre o STF através de pedidos de vista, anunciando julgamentos antecipados, agindo de forma radicalmente partidária, são encaradas como pontos fora da curva.
O jogo político se inicia liberando a besta (o sentimento de manada nas ruas) e alimentando-a com meses e meses de escandalizações.
Para atender à fome da besta, quebram-se as primeiras regras em nome de um suposto bem maior. Como há um garantismo e um cipoal processual que protege os réus mais abonados, aceita-se a flexibilização dos princípios do direito de defesa e da presunção da inocência em nome do combate à corrupção. E como os réus têm um histórico de impunidade, admite-se o jogo.
A besta provou da carne fresca e quer mais. Aberta as comportas, os demais direitos vão sendo gradativamente removidos. Da meia virgindade democrática evolui-se rapidamente para a promiscuidade, com cada agente do Estado lambuzando-se no novo espaço conquistado.
À medida que a besta vai impondo, personagens que deveriam fazer a mediação – como os Ministros do STF, o CNMP, o CNJ – se intimidam ou aderem, de qualquer forma abdicam de suas responsabilidades e rendem-se à malta.
As primeiras tentativas de calar as críticas serão tratadas como extravagância, como eram os esbirros autoritários de Gilmar Mendes. Á medida que se consolidar o “novo normal”, se tornarão prática corriqueira.
É quando se consolida o “novo normal”, um mundo institucional novo no qual alargam-se os poderes individuais dos agentes da lei, em uma escalada que vai até o guarda da cadeia.
Peça central desse processo é a manipulação das informações, visando impor uma narrativa que legitime os atos arbitrários. Daí a necessidade de calar qualquer voz contrária.
O butim dos vencedores
Grosso modo, o novo presidencialismo condominial (aquele em que os condôminos escolhem o síndico) é compartilhado por três grupos políticos: o de Eduardo Cunha, o do grupo Temer, o do PSDB. Além deles, há personagens associados, como o Procurador Geral da República e o Ministro Gilmar Mendes – associados ao PSDB -, o Ministério Público em geral e lideranças individuais, como a do presidente do Senado Renan Calheiros.
Cada qual tem uma agenda central, inegociável – e muitas vezes conflitante com os demais grupos.
Grupo de Eduardo Cunha
É o mais óbvio. Tem uma agenda moral conservadora e exige uma participação secundária no butim – indicação de cargos nos segundo e terceiros escalões e garantia de verbas para sua região, suas campanhas e seus bolsos.
Grupo de Temer
Não tem projeto mas tem perspectiva de poder. É um pessoal mão pesada que se valerá de todas as brechas para tentar se perpetuar. Seu ponto vulnerável são as ações na Lava Jato, o que poderá induzi-los a se aproximar do PSDB.
O PSDB
Quer controlar a agenda das privatizações aceleradas, patrocinar a flexibilização do pré-sal e consolidar a subordinação à geopolítica norte-americana.
Na privatização poderá haver conflitos com o grupo de Temer, através de Moreira Franco. No pré-sal, já há uma parceria selada entre Serra e Eduardo Cunha. Na questão geopolítica, o braço armado é a Procuradoria Geral da República. Aliás, a cada dia que passa ficam mais nítidos os sinais da participação norte-americana no desmonte de multinacionais brasileiras, em parceria com o MPF, conforme matéria do Estadão mostrando o apoio do Departamento de Justiça norte-americano à Lava Jato (http://migre.me/tUic6).
A guerra pelo poder
O poder foi empalmado por um grupo heterogêneo, tanto na base parlamentar quanto nas outras esferas de poder.
Sem condições de se viabilizar até 2018, haverá uma guerra encarniçada pela preservação do poder, em um quadro de ampla instabilidade política, social, jurídica e econômica.
Em comum, PSDB e PMDB apostarão no fechamento político até o limite das suas forças. E esses limites são dados pela reação da opinião pública, pelo maior ou menor sucesso em amenizar a crise e pela manutenção da parceria com a PGR – cujas ações continuam demonstrando uma notável coincidência com a agenda política tucana.
Já há bons indícios na perseguição implacável do Ministério Público Federal a Lula e da tentativa da Procuradoria Geral da República de cortar a possibilidade da volta de Dilma daqui a 6 meses ou de Lula em 2018 (Dica para os historiadores: como se dá a passagem de corporações do Estado, da defesa da lei ao exercício do arbítrio).
Daqui para frente, haverá o desenho de duas macro-estratégias de poder, uma conduzida por Temer e seu quarteto; outra pelo PSDB e seus aliados. Não se afastando a possibilidade de uma dobradinha entre os dois grupos.
A vulnerabilidade maior do PMDB são as ações da Lava Jato, alimentandas pela dobradinha MPF-mídia. A força maior do PSDB é justamente junto à mídia e à Procuradoria Geral da República.
Os dois grupos tentarão se aproximar do estamento militar, o PMDB com mais dificuldade devido à maior exposição à Lava Jato. A resistência virá das ruas.
As próximas semanas ainda serão de uma generalizada caça às bruxas, até que a poeira baixe e se permita uma visão mais clara sobre as tendências que prevalecerão.
Assim como ficou nítido, desde o ano passado, o viés partidário da Lava Jato, não tenha dúvida sobre as intenções do novo grupo de poder de inviabilizar as eleições diretas de 2018. (Fonte: aqui).
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