Direito: ciência, técnica ou arte?
Por Juliana Giovanetti Pereira da Silva
Resumo: O presente artigo pretende abordar a natureza do conhecimento do Direito, verificando se este deve ser considerado como ciência, técnica ou arte. Tendo por foco a análise das características desse ramo do conhecimento, constata-se que o tema causa grande controvérsia entre os juristas, não havendo uma posição uníssona sobre o assunto, contudo predomina a visão de que este seria um conhecimento científico. Entretanto, não é esta a conclusão auferida, após breve análise, vez que a possível melhor definição seria considerá-lo como arte, pois retrata uma abordagem mais completa, englobando em si tanto a ciência, quanto a técnica, bem como atingindo amplamente os anseios sociais. Do ponto de vista metodológico aplicou-se o método racional dedutivo, utilizando-se de deduções para a obtenção da conclusão, constatando-se que o direito reflete uma arte redefinida.
Palavras-chaves: Direito; ciência; técnica; arte.
Sumário: Introdução. 1. Direito como Ciência. 2. Direito como técnica. 3. Direito como Arte. Conclusão. Referências.
Introdução
Uma indagação sempre presente e que ronda os operadores do Direito refere-se ao caráter deste conhecimento. Dessa maneira, questiona-se se o conhecimento jurídico seria ciência, técnica ou arte, conforme se detona dos ensinamentos de Maria Helena Diniz (1995, p. 6): “A ciência jurídica é considerada ora como scientia, pelo seu aspecto teórico, ora como ars, pela sua função prática. Outros ainda dão ao problema uma solução eclética”.
Nesse contexto, a questão é ampla e a polissemia da palavra “direito” dificulta bastante a presente análise, de forma que se deve manter toda a cautela antes de se obter conclusões afoitas, necessitando-se de uma densa análise sobre o caráter deste conhecimento.
Conforme salientado, a palavra não é unívoca, abarcando diversos significados, os quais devemos trazer à baila antes de prosseguimos. Desta feita, podemos utilizar o vocábulo “direito” para nos referirmos a um conjunto de normas; ou no sentido de honrado, íntegro; ou aquilo que é justo, conforme a lei; ou ainda como um ramo do conhecimento humano, sendo este último o significado que norteará a seguinte explanação.
Esclarecido esse ponto, quanto aos diversos significados vocabular do “direito” e já posicionado o sentido que será aqui utilizado podemos adentrar a análise do tema proposto, pois o Direito não pode ser encarado com base em modelos sintéticos e pré-concebidos.
1.Direito como Ciência
No âmbito dos juristas, a questão da cientificidade do conhecimento jurídico é bastante discutida, dessa forma alguns a consideram como tal de forma incontroversa, como o célebre jurista Hans Kelsen e seus seguidores; outros admitem seu caráter cientifico dentro do ramo da Sociologia, negando-lhe autonomia; e outros ainda, negam peremptoriamente qualquer cientificidade ao direito. Assim, a perspectiva da cientificidade do Direito nascida no final do século XVIII, início do século XIX traz inúmeras divergências e críticas.
Inicialmente, cabe-nos analisar o significado da palavra ciência, o qual comporta diversas opiniões, gerando uma dificuldade em se estabelecer uma definição uniforme, pois falar em ciência é falar no complexo. Por isso, trazemos à baila o conceito do Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, para iniciarmos a análise:
“Ciência. [Do lat. Scientia] S. f. 1. Conhecimento (3): tomar ciência. 2. Saber; que se adquire pela leitura e meditação; instrução, erudição, sabedoria. 3. Conjunto de conhecimentos socialmente adquiridos ou produzidos, historicamente acumulados, dotados de universalidade e objetividade que permitem sua transmissão, e estruturados com métodos, teorias e linguagens próprias, que visam compreender e, poss., orientar a natureza e atividades humanas. 4. Campo circunscrito, dentro da ciência (3), concernente a determinada parte ou aspecto da natureza ou das atividades humanas, como, p. ex., a química, a sociologia, etc. 5. A soma dos conhecimentos humanos considerados em conjunto: os progressos da ciência em nossos dias (grifo do autor). 6. Pop. Habilidade intuitiva, sabedoria: ‘a ciência da aranha, da abelha e a minha, muita gente desconhece’ (Luiz Vieira e João do Vale, da canção popular Na asa do Vento). [...] Ciências jurídicas. O conjunto das ciências derivadas do direito (13), ou fundamentalmente influenciadas por ele: o direito internacional, o direito criminal, etc. [...]” (FERREIRA, 2009, p. 465-466).
Não obstante, quanto às diversas variáveis do vocábulo em questão, Tércio Sampaio Ferraz Júnior salienta:
“A expressão ciência não é unívoca; não obstante de com ela se pretender designar um tipo específico de conhecimento, não há um critério único e uniforme que determine sua extensão, natureza e caracteres, devido ao fato de que os vários critérios têm fundamentos filosóficos que extravasam a prática científica” (FERRAZ JÚNIOR, 1973, p. 159-160).
Assim, independente da polissemia da palavra, Rubem Alves (2000, p. 151) analisa o surgimento da ciência em si: “[...] historicamente, a ciência surgiu quando certas pessoas, repentinamente, se perguntaram sobre as razões por que as coisas corriqueiras ocorriam da forma como ocorriam [...]”.
A partir disso, o citado autor (2000) enxerga a ciência como uma especialização, um refinamento de potenciais comuns a todos, não sendo um órgão novo do conhecimento, mas sim uma hipertrofia de capacidades que todos possuem, podendo isto ser bom ou perigoso, pois a tendência da especialização é conhecer cada vez mais de cada vez menos.
Nesta esteira, Boaventura de Souza Santos (2010) acredita que todo conhecimento científico é um autoconhecimento, pois para ele a ciência não descobre, mas cria, e o ato criativo de cada cientista tem que se conhecer intimamente, antes que conheça o que com ele se conhece do real.
Adentrando propriamente ao conhecimento científico, devemos ressaltar as principais pressupostos que esse possui: a) objeto determinado; b) ser um conhecimento conceptual ou tipológico; c) ser adquirido mediante método; d) ser um conhecimento organizado, configurando um sistema (CUNHA, R., 2008).
A partir disso, devemos verificar se o direito enquadra-se em cada um desses elementos acima elencados, para podermos definí-lo como uma ciência.
Nesse ínterim, uma ciência deve determinar uma parcela da realidade a qual se dedicará, sendo este seu objeto. E assim indagamos: o Direito possui objeto determinado? Evidentemente, a resposta deve ser afirmativa para mantermos a abordagem do Direito como de caráter cientifico, e de fato a resposta é sim, pois podemos considerar como objeto do conhecimento jurídico um conjunto de normas de caráter obrigatório, bem como o controle dos comportamentos sociais.
Superada essa questão, devemos adentrar na segunda hipótese para que um determinado conhecimento possa ser considerado como ciência, assim nos remetemos a existência de um conceito, que de acordo com a lógica tradicional seria a simples apreensão da essência de alguma coisa, mediante a eliminação das características acidentais do objeto (CUNHA, R., 2008). Assim, a ciência persegue como prioridade conceituar os objetos de que se ocupa, ocorrendo o mesmo com o ramo do Direito, que a todo o momento em suas normas e códigos conceitua e descreve comportamentos e fatos, como por exemplo, a definição de domicílio do artigo 70, do Código Civil: “O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo”. E dessa forma age o Direito, sempre definindo e conceituando.
Quanto ao método, de fato, impossível é a produção de conhecimento sem a utilização de um determinado método, que consiste no caminho trilhado pra se chegar a determinado trabalho, como por exemplo, método analítico, dedutivo ou indutivo, o qual será eleito de acordo com o objeto desta ciência.
Conforme destaca Ferraz Júnior (2012) método não pode ser confundido com técnica, já que uma ciência pode se utilizar de diversas técnicas, mas apenas de um método, sendo esse último um conjunto de princípios de avaliação da evidência, considerando a Ciência do Direito uma ciência normativo-descritiva que estabelece normas para o comportamento. E por óbvio, para o desenvolvimento de seus trabalhos o direito utiliza-se de métodos, sendo o mais comum nesta área o método dedutivo.
Quanto à “sistematicidade” do conhecimento científico, relaciona-se a obtenção metódica e comprovada desse conhecimento, ou seja, “uma atividade ordenada segundo princípios próprios e regras peculiares” (FERRAZ JÚNIOR, 2012, p. 13). Nesse ínterim, o conhecimento científico se organiza em forma de sistema, pressupondo uma diversidade de princípios ordenadores e elementos, exprimindo suas relações mediante leis, como por exemplo, lei da gravidade, lei de Newton, dentre outras que pretendem validade universal (CUNHA, R., 2008).
Contudo, no ramo do conhecimento jurídico não podemos obter enunciados gerais, emitindo apenas leis de tendência, sendo relevante as considerações de Porcher Júnior (2006, p. 7) sobre o assunto: “entre as principais críticas se faz ao Direito como sistema estão a arbitrariedade na escolha dos princípios jurídicos e a necessidade de adequação do sistema ao caso concreto quando da aplicação do Direito”.
Ele ainda prossegue sobre o tema, demonstrando-se contrário a visão do Direito enquanto conhecimento científico:
“A noção objetiva dos conceitos jurídicos imputa uma falsa sensação de finitude do sistema, denunciando um esvaziamento de seu conteúdo frente aos fenômenos sociais. Não pode o Direito se furtar a um pensamento ecologizante, que leve em consideração também as novas tendências sócio-culturais” (PORCHER JÚNIOR, 2006, p. 3).
Dessa maneira, de acordo com o autor Ferraz Júnior (2012), o conhecimento jurídico como ciência pretende se distinguir das demais por seu objeto e método, assim através da captação da norma em determinada situação concreta far-se-ia dessa ciência uma ciência interpretativa, tendo em vista uma finalidade prática.
Nesse sentindo, cabe-nos trazer à baila as palavras de Porcher Júnior:
“O percurso traçado pela evolução dos entendimentos científicos (em especial da física e da matemática) em busca de uma adaptação de suas teorias à realidade do mundo não deve ser sonegado pelo Direito. O esforço em interpretar o mundo em suas minúcias é, também, meta do operador jurídico, reclamando uma sempre atualizada adaptação das concepções normativas aos acontecimentos da vida. Tal noção de Direito evidentemente não encontra abrigo nos ideais formalistas e sistêmicos que se construíram ao longo dos séculos. Configura uma premissa epistemológica a compreensão do Direito como um sistema poroso, apto a consubstanciar sua atuação no ponto de contato com a realidade fenomenológica social, servindo-se, para isso, de uma hermenêutica que integre ao mundo jurídico todos os elementos externos necessários à obtenção da justiça. Se é correto afirmar que “a procura da melhor interpretação é, por assim dizer, a verdade da hermenêutica”, então não é aceitável fugir a uma concepção aberta do Direito” (PORCHER JÚNIOR, 2006, p. 3).
Superada a análise dos pressupostos da ciência e o posicionamento dos destacados autores, adentramos propriamente a uma cientificidade jurídica, assim Hans Kelsen foi o primeiro a levantar o Direito com tal. Desta feita, ele acreditava que o conhecimento jurídico não necessitava das demais áreas do conhecimento para se auto-explicar, defendendo uma autonomia metodológica da Ciência do Direito. O jurista austríaco enxergava o ordenamento jurídico como um sistema fechado, sem interferências externas e constituído em forma de uma pirâmide, onde normas inferiores encontravam sua validade em normas situadas acima destas. Assim, para ele o ato de decisão judicial não seria apenas mera aplicação do Direito, mas também de criação, ressaltando a independência do direito das demais áreas do conhecimento (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012). Logo, na visão kelseniana o Direito apenas seria uma ciência, enquanto ciência pura e dentro deste já citado sistema fechado, sem comunicação com as demais áreas.
De forma diversa pensam aqueles que admitem o caráter de cientificidade do Direito dentro da Sociologia. Aqui, encontramos a visão do notável civilista Orlando Gomes (1957, p. 12): “A ciência do Direito, ramo da Sociologia, tem por objeto o estudo do fenômeno social, que se denomina jurídico”. E ele não esta só, compartilhando de sua posição o filósofo do direito Silvio Romero, acompanhado por outros contemporâneos.
Quanto aqueles que negam o caráter científico a dogmática jurídica, encontramos o jurista alemão Theodor Viehweg e o já citado professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior, que atribuem ao Direito o caráter de tecnologia.
Outro que considera insatisfatória a visão do conhecimento jurídico como ciência é o jurista Michel Villey (2009), entendendo como mais adequado visualizá-la como arte jurídica.
Dentre aqueles que negam o caráter científico ao Direito, a justificativa para esta tomada de posição, está em dizer que o conhecimento jurídico não é possuidor de princípios com validade universal, o que não lhe justifica a terminologia de ciência, pois conforme versa Rubem Alves (2012, p. 57), uma teoria científica tem sempre a pretensão de oferecer uma receita universalmente válida, que abarque todos os casos, logo “leis que funcionam aqui e não funcionam ali não são leis”.
Antes de sedimentarmos uma tomada de posição, cabe-nos analisar o Direito como técnica e o Direito como arte.
2.Direito como Técnica
Quanto à etimologia da palavra Técnica, temos: “[...] relativo a uma arte, próprio de uma arte, técnico; industrioso, hábil; feito como arte; artificial, pelo lat. technicu, que, no entanto, só se documenta como s. m. (especialista, técnico em uma arte); por via oculta [...]” (MACHADO, 1952, p. 2058).
Através desta análise etimológica do termo técnica podemos notar que esta provém de arte, seja quanto nos remetemos ao latim techné ou quando nos remetemos ao grego technikós, obtemos a mesma definição para o vocábulo.
Dessa forma, não cabe muito ao que nos alongarmos nesta discussão, vez que o próprio termo esclarece a insuficiência da técnica perante a arte, porém ainda assim, torna-se importante trazermos o posicionamento de renomados juristas sobre o tema.
Para o professor e jurista Renan Severo Teixeira da Cunha (2008), o conhecimento jurídico enquanto técnica seria o conjunto de atividades desenvolvidas para resolver situações concretas da vida, geralmente conflituosas, decidindo-as com fundamento em algum direito, como por exemplo, o advogado ao equacionar certo problema jurídico, o juiz ao solucionar uma lide, o promotor de justiça ao oferecer uma denúncia, para ele estão desenvolvendo uma atividade técnica e não científica, embora pressupondo seu conhecimento científico do Direito.
Outros autores conferem ao direito o caráter de tecnologia, como os já destacados juristas Theodor Viehweg e Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Para este último o conhecimento jurídico não se preocupa com a verdade, mas sim com a decidibilidade, buscando estabelecer critérios para solucionar os conflitos sociais, possuindo a questão da decidibilidade um caráter tecnológico. Isto nos traz a reflexão de que no mundo contemporâneo a técnica se transforma em tecnologia (FERRAZ JÚNIOR, 2012). Já para Viehweg (apud PORCHER JÚNIOR, 2006), o Direito é tão somente uma técnica de resolução de conflitos, que articula uma necessidade aparente de sistema, porém injustificável na prática.
Assim, surge outro problema acerca do significado da palavra “tecnologia”, que neste caso pode ser descrita como “o estudo dos procedimentos técnicos, naquilo que eles têm de geral e nas suas relações com o desenvolvimento da civilização” (LALANDE, 1999, p. 1111). Para Cunha, R. (2008) seria uma espécie de teoria da técnica, compartilhando deste posicionamento o professor Milton Vargas (1999) que considera a tecnologia como a última e mais sofisticada etapa histórica da técnica.
Portanto, apesar da respeitável posição dos juristas supracitados, ao considerarmos amplamente o conceito de técnica torna-se clara a impossibilidade de o Direito ser considerado apenas como tal, devido a sua insuficiência em abranger a complexidade do conhecimento jurídico, vez que o Direito não é algo mecânico, não se resumindo a simples aplicação do fato a norma, ademais etimologicamente técnica refere-se à arte, o que nos remete a terceira análise sobre o caráter deste conhecimento.
3.Direito como Arte
Etimologicamente, a palavra Arte: “Do lat. Arte-, f., talento, saber, habilidade, arte (em sentidos geral e moral); aquilo em que se aplica o talento; profissão, mister, arte, ciência; conhecimentos técnicos, teoria, corpo de doutrinas, sistema, arte [...]” (MACHADO, 1952, p. 260).
Conforme se denota, o termo arte se demonstra como o mais amplo entre os três em análise, englobando em si tanto a ciência, quanto a técnica. Dessa maneira, se retrata a completude da palavra como bem deve ser o Direito e as decisões dos juristas, que para a tomada de suas posições devem adotar uma abordagem ampla da realidade, vez que toda decisão possui uma carga política e axiológica.
Sem embargo, levando em consideração o exposto, cabe-nos a constatação de que Direito e arte são termos correlatos, vez que são abstrações construídas a partir de outras abstrações, como por exemplo, a elaboração das normas e das obras artísticas (SCHWARTZ; MACEDO, 2008).
Assim, o caráter artístico prevê a superação da percepção do Direito como elemento isolado da sociedade, fazendo com que este se relacione com as demais áreas do saber, diferentemente do que dizia Kelsen ao pregar que o direito não necessitava das demais áreas do conhecimento para se auto-explicar.
Ademais, a atividade do jurista pressupõe sempre uma carga subjetiva deste ao exercer seu ofício, ou seja, não há como o intérprete ou julgador exercer sua atividade de forma totalmente destituída de uma carga axiológica, condição esta que elimina qualquer possibilidade de o Direito ser considerado como ciência ou técnica e evidencia a caráter artístico deste conhecimento, pois a arte pressupõe aspectos pessoais de seu elaborador que caracterizam sua obra.
Nesse sentido versa Porcher Júnior:
“A obra artística, por assim dizer, ao passo que limita o horizonte de expectativas estéticas do seu observador, na medida do conteúdo que traz explícito ou implícito, também reserva um espaço para construções circunspectas ao tema proposto. Da mesma Forma, o ordenamento jurídico se conserva substancialmente poroso e elástico, para abraçar a infinidade de casos concretos que possam surgir, ao passo que traz dispositivos com caráter de balizas para suas respectivas sociedades, conforme os valores por estas aspirados: são as chamadas cláusulas pétreas, dotadas de uma tenacidade que, quando ignorada, faz abalar, a partir da desconstituição de categorias do direito subjetivo, todo o sentimento de justiça de um povo” (PORCHER JÚNIOR, 2006, p. 25).
Já a ciência, é um conhecimento axiologicamente neutro, pois o cientista ao exercer suas atividades não deve transportar seus elementos pessoais para as tarefas desenvolvidas, devendo apenas constatar fatos. Nesse diapasão, podemos mencionar as lições de Rubem Alves:
“[...] Os indivíduos, ao contrário, se caracterizam por este fato trágico e grandioso: sua decisão de ser diferentes do que são. Isso os torna dolorosa e maravilhosamente particulares, neuróticos e sofredores, capazes de criar a arte, de amar, de se sacrificar, de fazer revoluções e se entregar às causas mais loucas, de cometer suicídio. Mas são essas variações, entretanto, que jazem fora do campo da ciência. Porque a ciência, em sua busca de leis e uniformidades, só pode lidar com tipos (grifo do autor)” (ALVES, 2012, p. 115).
Neste ponto, nos deparamos com a teoria tridimensionalista de Miguel Reale (1986), o qual considera o Direito como o conjunto de três aspectos: fato, valor e norma. Dessa forma, a tridimensionalidade funcional do saber jurídico (REALE, 1986) enxerga a norma como o resultado da valoração dos fatos sociais, onde os três aspectos acima citados coexistem de forma dialética, demonstrando-se mais uma vez o lado artístico desse conhecimento.
Outrossim, devemos vislumbrar o Direito como um objeto claramente cultural, pois de acordo com determinado país ou espaço temporal, certos comportamentos podem ser qualificados pelo ordenamento jurídico, o que não, necessariamente, ocorrerá em outra cultura. Aqui, demonstra-se a ausência de universalidade do conhecimento do jurídico, excluindo-se mais uma vez o caráter de ciência do Direito e ressaltando o elemento arte à atividade.
Nas esteiras do conhecimento jurista francês de Michel Villey, este conclui:
“Pode haver uma ciência do direito, tomando esta palavra em sentido estrito, se o direito for um conjunto de fatos: ciência das leis do Estado existentes, ou então ciência das sentenças dos juízes. Ao contrário, se o direito não tem realidade positiva, mas é um valor a ser buscado, melhor seria falar de arte jurídica: e a extensão e método das investigações serão diferentes” (VILLEY, 2009, p. 5 – 6).
E Villey não se encontra sozinho em seu posicionamento, sendo acompanhado por Pedro Lessa (1992), o qual considera as regras de direito como preceitos artísticos, normas para fins práticos, determinações, ordens, que se impõe à vontade, não se confundindo com afirmações científicas, que se dirigem à inteligência.
E Villey não se encontra sozinho em seu posicionamento, sendo acompanhado por Pedro Lessa (1992), o qual considera as regras de direito como preceitos artísticos, normas para fins práticos, determinações, ordens, que se impõe à vontade, não se confundindo com afirmações científicas, que se dirigem à inteligência.
Cabe-nos ainda trazer à baila a visão de Paulo Ferreira da Cunha (2005), o qual enxerga o Direito como um fenômeno a ser analisado segundo uma tríplice perspectiva, qual seja, técnica, ciência e arte, obtendo a partir isso a conclusão de que é a arte que comanda a vida do Direito, enquanto a ciência e a técnica são suas servidoras imprescindíveis.
Sem deixar de mencionar, que o Direito enquanto arte encontra-se intrinsecamente relacionado à literatura, vez que este conhecimento reflete um contar de histórias:
“Ainda, não se pode olvidar que o Direito é um “contar” de histórias. Assim como os antigos perpassavam o conhecimento por intermédio da oralidade, um processo judicial é, além de conhecimento (processo de conhecimento), um conjunto de histórias contrapostas uma à outra. Sua lógica sequenciada permite ao juiz a compreensão do acontecimento dos fatos, da mesma forma que uma boa obra literária reporta o leitor ao entendimento linear de sua narração. A correta narrativa judicial é, portanto, um meio de se assegurar uma decisão que estabilize as expectativas lançadas pelas partes em um procedimento judiciário. Dessa forma, resulta factível que a observação do Direito como Literatura pode trazer novos parâmetros de interpretação da “realidade” jurídica constitucional, sendo capaz de inovar em um terreno que há muito carece de novas ideias” (SCHWARTZ; MACEDO,2008, p. 1026-1027).
Da mesma forma leciona Marga Inge Barth Tessler (2013, p. 10) ao considerar que “como arte educativa, a literatura contribui para a formação do direito, abrindo perspectivas novas, e especialmente para a atividade interpretativa, por sua perspectiva humanizadora”.
A partir disso, verifica-se a clara relação entre a disciplina do Direito, que se mostra como um elemento narrativo e a literatura, uma das perspectivas da arte, afinal a cada nova decisão proferida o magistrado baseia-se em seus precedentes, constituindo-se como um romancista em série.
Em suma, devemos superar a visão de que o Direito é um elemento separado da sociedade, mostrando-se a visão artística do conhecimento jurídico como a mais ampla e completa vez que abarca os demais, quais sejam ciência e técnica, demonstrando o caráter artístico do mundo do Direito.
Conclusão
Podemos denotar que antes a visão do Direito possuía uma abordagem mais retórica e com o positivismo ocorre uma abertura desta perspectiva, levando alguns a defenderem o campo científico, outros o da técnica ou tecnologia e outros, ainda, o da arte, não havendo uma compreensão uníssona sobre o tema, apesar de o posicionamento científico ser predominante entre os juristas, como para Hans Kelsen, por exemplo.
Sob essa perspectiva, constata-se que no mundo contemporâneo ocorreu à transformação da ciência em técnica e da técnica em tecnologia, pois o conhecimento científico está voltado à lógica da invenção e construção de objetos teóricos, estando cada vez mais atrelado a citada tecnologia e esta última a produção de conhecimento, retratando uma interação. Sem deixar de mencionar, que como já salientado técnica nos remete a arte, a qual abarca os dois outros elementos: ciência e técnica.
Assim, conforme o exposto, claro se torna o fato de que o Direito e arte estão conectados, sendo esta a definição mais ampla capaz de abarcar a completude deste conhecimento, já que este é por demais complexo para se restringir à normatividade ou a simples aplicação da lei ao caso concreto, senão se resumiria a mera técnica.
Dessa maneira, Direito e arte sempre andaram afinados no discurso e estranho seria se assim não sucedesse, pois a forma de percepção dessas duas esferas sofre, indiscutivelmente, a influência histórica do pensamento das sociedades, que transpassa todas as produções culturais e as ciências, deixando verdadeiras impressões digitais a identificar a congruência dos diversos campos do saber (PORCHER JÚNIOR, 2006).
Portanto, o Direito enquanto arte se revela como algo inacabado, em constante formação de acordo com o período e os anseios sociais, refletindo-se como uma arte redefinida, intrinsecamente relacionada com a literatura, que contribui para a formação do Direito, abrindo-lhe novas perspectivas. Logo, conforme se depreende das sábias palavras de Ronald Dworkin (2000, p. 237-238), “o Direito retrata uma criação contínua, um romance cujo enredo não possui um final único e sim um último ‘contador”.
Referências
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DINIZ, Maria Helena. A Ciência Jurídica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 2012.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação. São Paulo: Saraiva, 1973.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 4. ed. Curitiba: Editora Positivo: 2009.
GOMES, Orlando. A crise do direito. São Paulo: Max Limonad Editor, 1955.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Trad. Fátima de Sá Correia et. al. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
LESSA, Pedro Lessa. Estudos de Philosophia do Direito. Rio de Janeiro: Editora Obra Prima, 1912.
MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 1ª ed., v. II. Lisboa: Editorial Confluência, 1952.
PORCHER JÚNIOR, Roberto Ernani. Direito e Arte: intersubjetividade e emancipação pela linguagem. Rio Grande do Sul, 2006. (Trabalho de Conclusão de Curso). Curso de graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul 2006. Disponível em:
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 16. ed. Porto – Portugal: Edições Afrontamento, 1987.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
TESSLER, Marga Inge Barth. Justiça também se faz com literatura O acesso ao livro – um direito cultural. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 57, dez. 2013. Disponível em:
VARGAS, Milton. Técnica, tecnologia e ciência. Ciência e tecnologia: informativo semanal da radiobrás. Disponível em:
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. 2. ed. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
SCHWARTZ, Germano; MACEDO, Elaine Harzheim. Pode o Direito ser Arte? Respostas a Partir do Direito & Literatura. In: XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI, 2008, Salvador. Anais do Conpedi. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 1013-1031. Disponível em:
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