"Peço licença para uma pequena pausa na série de artigos sobre personagens para falar um pouco sobre Ponte dos Espiões, novo filme de Steven Spielberg que estreou quinta-feira passada (22/10), a fim de fazer uma breve reflexão sobre o momento pelo qual o país atravessa.
A certa altura do filme roteirizado por Matt Charman e pelos irmãos Coen a partir de fatos reais, o advogado James Donovan (Tom Hanks) é fuzilado pelos olhares de ódio dos passageiros de um trem que o reconhecem dos jornais. Donovan, saberemos, não é um fora da lei. Ao contrário, é apenas um advogado de seguros que recebeu a missão forçada de defender um homem acusado de ser um espião soviético (Mark Rylance, em grande interpretação) e usará todo o aparato legal e democrático da “América” para garantir a seu cliente um julgamento justo. Mas para aqueles cidadãos de bem, que também metralham a casa de Donovan e quase matam sua filha, o advogado é simplesmente um vermelho que defende o inimigo que veio, como diz o juiz do caso, “para destruir o nosso modo de vida”.
Essa histeria provocada pelo medo de um apocalipse nuclear, como é bem representada pelo filho pequeno de Donavan - que enche inutilmente banheiras de água para escapar de uma vindoura bomba atômica - e é alimentada pela imprensa da época, não é nada diferente do que vemos hoje no Brasil. E esse é o ponto a que gostaria de chegar.
Meses atrás eu fui agredido dentro do meu prédio. Fui acusado de não ter vergonha na minha cara por um homem de bem, religioso, pai e avô de família. Aquele cidadão modelo que contribui para nossa sociedade e que todos devemos aspirar a ser – embora tenha descoberto depois que ele é famoso por gritar com os funcionários do condomínio. Meu “crime”, apenas porque é a palavra que usam, foi ter votado na outra candidata. O caso, infelizmente, não é isolado. E é cego quem não vê esse padrão acontecendo hoje no Brasil.
Diariamente, pessoas estão sendo ofendidas nas ruas por conta da cor de sua camiseta. Ex-ministros são agredidos em restaurantes por covardes que depois se desculpam perante um juiz. Mensagens pedindo a morte de um apresentador de TV são pichadas na frente de sua casa. Bombas são atiradas contra prédios e a polícia nada faz para investigar estes crimes de ódio. A imprensa brasileira, por sua vez, minimiza cada um desses fatos – alguns “jornalistas” garantem que a bomba foi armação – e alimentam com mentiras e offs de faz de conta a turba raivosa, ao mesmo tempo que elege heróis com contas bancárias na Suíça. Ironicamente até jornalistas são agredidos, um por ser confundido com um ex-presidente, outro, carregando o filho no colo, precisa fugir para não ser linchado pela turma do bem. Ironicamente também este último é filho de um pena de esgoto.
Todo este clima é mostrado em Ponte dos Espiões. E para além do absurdo que lá é o auge da Guerra Fria e aqui um 2015 que ainda lida com fantasmas comunistas, a diferença é que no filme vemos o “inimigo” como um ser humano. E enxergamos o outro lado, hoje inexistente na imprensa e suas manchetes sensacionalistas. Ficamos sabendo quem é Donovan, sua família e a justiça de sua causa. Vemos a falsidade do governo americano, dos seus agentes de lei e incrivelmente simpatizamos mais com o espião soviético do que com o agente da CIA que veio para nos salvar do perigo vermelho. E humanizar é a raiz dos filmes de Spielberg – na minha opinião quem consegue fazer você chorar por causa de um boneco de plástico cujo dedo brilha é um gênio - e para a construção de qualquer personagem na ficção.
No começo de Ponte dos Espiões, Donovan é apenas um advogado de seguros competente, gentil e pai de família amoroso. Estranhamente, ele é convocado pelo governo dos EUA para defender Rudolf Abel, um pintor preso acusado de ser um espião soviético. A intenção do governo é mostrar para o mundo inteiro que, ao contrário da União Soviética, na “América” todos têm o direito a um julgamento justo e que os valores da Justiça e da democracia prevalecerão. Mas como tudo é ilusão, Donovan descobre que o julgamento é apenas uma fachada e que o sistema legal inteiro será desrespeitado para condenar Abel. O governo, a imprensa e até o juiz querem ver o acusado na cadeira elétrica.
Mas Donovan não será um peão neste jogo de ilusões e incorpora o espírito da lei para o qual dedicou toda a sua vida profissional, tratando Abel não como o inimigo, mas como um cliente que merece os mesmos direitos que qualquer cidadão. De bem ou do mal.
Ponte dos Espiões é mais um representante da cinematografia de Spielberg que lida com os grandes temas humanos contemporâneos. Ele vem acompanhado de A Cor Púrpura, Lincoln, Munique, Terminal, Amistad e A Lista de Schindler. Nesta nova parceira com Tom Hanks, o tema central é o respeito pela ideia de que todos os homens são iguais, seja um espião americano ou um soviético. Para Donovan, o que transforma uma pessoa em cidadão dos EUA não é o território em que nasceu, mas o fato de ter abraçado a constituição de um país que prega que todos os homens são iguais (embora em 1957, negros ainda não tivessem conquistado esse direito).
E é sendo fiel a esta ideia que Donovan rejeita quebrar o sigilo profissional entre advogado e cliente ao ser ameaçado por um agente da CIA e defende a anulação das provas contra Abel por terem sido colhidas ilegalmente. Ao levar essas informações ao juiz, no entanto, a realidade lhe dá um murro com listras e estrelas. Para o juiz, a falta de mandato é apenas uma tecnicalidade já que o caso se encontra no contexto da luta maior contra o comunismo e que Abel não tem os mesmos direitos que um cidadão, pois não nasceu nos EUA. Donovan, ele mesmo filho de imigrantes irlandeses, retruca e cita o caso antigo de um imigrante chinês que recebeu a garantia de ser tratado de forma igualitária perante o sistema legal americano. O magistrado se enerva e simplesmente afirma que Abel é O inimigo.
Como espectador, não é possível ficar indiferente a esta e outras cenas ao notar como o sistema legal é dobrado de acordo com interesses superiores. Afinal, queremos crer, sempre estaremos do lado do bem. É triste, no entanto, ver que essa consciência humanista que emerge entre os espectadores no escuro de uma sala de cinema não sobrevive ao contato da realidade.
No Brasil, pessoas são condenadas pela suprema corte com base em um dispositivo estrangeiro que o seu próprio formulador diz não caber no caso. O mesmo país em que uma juíza da sua corte máxima afirma ao emitir sua decisão: “não tenho prova cabal, mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite”. Outro juiz, imerso em denúncias graves contra sua atuação – logicamente ignoradas pela imprensa – e abertamente partidário, diz que “não se torna necessário que existam crimes concretos cometidos”. Já outros, se valendo de um cargo político, com a aparência e nome de tribunal, condenam um governo por um procedimento que antes sempre foi aprovado. Mas tudo bem. Temos um inimigo e ele precisa ser não derrotado, mas extinto, não importando que princípio seja demolido no caminho, tal como a cadeira elétrica é exigida pela turba contra Abel.
O interessante é que sabemos desde o começo que Abel é, sim, culpado. Ele de fato é um espião soviético e isso jamais é contestado pelo filme. Mas Donovan não deixa de admirar o velho espião cansado, que mesmo sem saída, se recusa a trair seu país, um traço de caráter que o advogado admira e gostaria de ver em cada americano que luta por seu país. E mesmo sabendo da culpa de Abel, o advogado faz uma provocação ao agente da CIA, que defende a pena de morte para o espião ainda que como resultado de um julgamento parcial: a superioridade dos EUA para vencer a guerra contra a URSS não estaria justamente em resguardar os ideais de democracia, liberdade e Justiça – a base formadora do país - a qualquer preço?
Não deixa de ser trágico que mesmo nos EUA engolfado pelo Macarthismo e pela paranoia da aniquilação atômica da década de 50, Donovan perde por um placar apertado de 5 a 4 quando leva o caso de Abel para as instâncias superiores da justiça norte-americana. O ódio relinchante no Brasil preferiria ver um placar mais elástico, talvez um 7 a 1.
O Donovan de Hanks e Spielberg representa, assim, o ideal puro de um país. Um homem que iremos admirar ao longo do filme por sua tenacidade e crença naquilo que é justo, tal como James Stewart incorporava esses valores nos filmes de Frank Capra. Um ideal que é mais forte do que a sede mesquinha dos homens de bem que pegam o trem todos os dias a caminho do trabalho.
Ponte dos Espiões é um filme mais necessário ao Brasil do que para os próprios Estados Unidos, que após o clima de ódio do Tea Party na eleição de Obama parece ter se assentado em outras questões, como a violência policial. No país campeão mundial em casos de linchamentos e cuja metade da população carcerária ainda espera pelo direito a um julgamento, entretanto, Ponte dos Espiões ressoa profundamente. E é incrível que um filme de ficção, ainda que baseado em fatos verídicos, sobre a Guerra Fria fale mais sobre a realidade brasileira do que o mundo paralelo vendido pela imprensa que se estrangula em mediocridades e crimes próprios.
Um ódio que ainda vai demorar muito tempo para passar. Ao sair do cinema na Avenida Paulista, após uma pausa para o café, reconheci do lado de fora o senhor calvo que estava na minha frente durante a sessão do filme. “Esse prefeito de merda”, disse apontado para a rua em uma conversa que apenas entreouvi. Mais adiante, a ciclofaixa da avenida, vermelha e livre, permanece disponível para quem tiver o bom senso de utilizá-la."
(De Henrique Melhado, no Jornal GGN, post intitulado "Ponte dos Espiões e a histeria brasileira" - aqui.
Irretocável).
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