Tiago Recchia.
Reflexões sobre um golpe
Por Mauro Santyana
A arquitetura das pirâmides e os guerreiros de terracota do primeiro imperador
da China são evidências de que, desde a antiguidade, a ideia de vencer a morte –
e se deslocar no tempo – sempre fascinou o espírito humano. Seria ótimo se
pudéssemos – como descrito no livro The Time Machine, de H.G. Wells (de 1895) –
também voltar ao passado e corrigir nossos erros, para garantir uma vida melhor
no presente ou no mais remoto futuro. A ciência moderna tem desmentido essa
possibilidade. Há, no entanto, outras maneiras de estabelecer pontes entre antes
e agora, sem o recurso a outras dimensões, como hipotéticos “buracos de minhoca”
ou “dobras” no espaço-tempo einsteiniano.
A História,
por exemplo, mescla, com naturalidade e ironia, o passado e o presente, e, bruxa
ou fada, surpreende e enfeitiça, burlando-se dos sonhos, esperanças,
desventuras, dos indivíduos, povos e nações, que participam da caminhada desta
nossa pobre espécie em sua ingente jornada para o futuro.
Completam-se,
neste mês, os primeiros 50 anos do golpe militar de 1964. Pela forma como foi
engendrado e deflagrado, com a participação de uma potência estrangeira – a cada
dia crescem as provas e evidências do envolvimento norte-americano –, o golpe já
deveria, há muito, ter sido condenado. Pelos abusos cometidos desde o primeiro
momento, e que se multiplicaram depois com o fortalecimento do radicalismo
antidemocrático e da repressão mais sanguinária, era para se tratar de um
episódio já execrado pela sociedade brasileira.
A geração que levou o
povo às ruas nas memoráveis campanhas das Diretas Já e na eleição de Tancredo
Neves para a Presidência da República não soube, no entanto, se dedicar como
deveria a manter viva, no coração do povo, a chama da liberdade e da democracia.
A aliança que possibilitou a redemocratização se esfacelou com o tempo. Muitos
movimentos, sindicatos e partidos se enfraqueceram, ou foram cooptados ou
absorvidos pelo sistema.
As sucessivas crises econômicas e o abandono da
população à própria sorte do ponto de vista da cultura e da cidadania –
inclusive por parte da mídia que havia participado da luta pela redemocratização
– aprofundaram o processo de “breguização” do país e abriram as portas para o
ressurgimento de um conservadorismo visceral, subjacente, que sempre viveu da
ignorância e despolitização do povo brasileiro.
O voto, no Congresso e
fora dele, tornou-se majoritariamente fisiológico. Passou a ganhar a eleição
quem oferecesse mais à população, isolando-se, ou deixando-se para segundo
plano, nas campanhas políticas, questões como o fortalecimento do país ou a
defesa e a preservação do Estado de Direito.
O Brasil mudou sua política
externa, houve avanços econômicos e sociais, como o combate à fome e à
exclusão, e a incorporação de milhões de pessoas ao consumo. Mas com relação a
questões como a forma de se enxergar o combate à violência, a criminalização da
política e a descaracterização dos partidos – com a sua transformação em meras
frentes de defesa de interesses – a sociedade brasileira, depois do retorno da
democracia, evoluiu muito pouco.
Voltamos a 1964, com o aparecimento de
dezenas de “institutos” de diferentes tipos – financiados com dinheiro
estrangeiro – dedicados a defender o neoliberalismo e a colonização do país. E a
combater o nacionalismo como algo anacrônico e estéril, em uma época que todas
as evidências demonstram que os países mais bem-sucedidos são justamente os que
não têm vergonha de defender claramente sua posição e interesses em um mundo
cada vez mais competitivo.
Como há 50 anos, “forças ocultas”, que já não
se importam em não parecer ocultas, querem pintar o Brasil como se estivéssemos
à beira do abismo, para defender velhos e perigosos caminhos de salvamento da
Pátria. “Analistas”, locais e estrangeiros, movem permanente campanha de
desestabilização da economia, por meio da distorção dos fatos e da manipulação
de dados, voltada para o enfraquecimento da imagem do país no
exterior.
Pela internet desferem-se ataques à democracia e crescem as
pregações golpistas, com a defesa do recurso à violência e à tortura, crescem no
mesmo meio em que vicejava nos anos 1960. Como ocorria às vésperas de março de
1964, multiplicam-se publicações, “filósofos” e “comentaristas” que professam um
anticomunismo esquizofrênico e patológico – já que claramente psicótico e
desprovido de qualquer contato com a realidade –, como se estivéssemos em plena
Guerra Fria, e se sustentam pela distorção da história e da verdade, como se
vivêssemos em outro planeta, situado em hipotético universo
paralelo.
Mistura-se o comunismo com o fascismo, quando foram as tropas
soviéticas que destroçaram os nazistas na batalha de Berlim em 1945. Atribui-se
qualquer suposto ataque ao conservadorismo ocidental a uma fantasia denominada
“marxismo cultural”. Atacam-se as bases filosóficas da modernidade, para propor
a volta a um obscurantismo tosco e medieval. Dessa fantástica doutrina, faz
parte a defesa, na internet – como cláusula pétrea de uma Igreja agora governada
por um papa que prega a conciliação – a excomunhão de pessoas por suas
convicções políticas.
Grupelhos voltam a desfilar, na frente dos quartéis
– como aconteceu em junho –, com as mesmas faixas e bandeiras usadas daqueles
anos sombrios.
Esse meio século de triste história deveria representar um
marco e uma oportunidade de reflexão sobre o Brasil que queremos e para onde
estamos indo como sociedade. É preciso voltar a colocar a defesa do regime
democrático em primeiro lugar na lista das prioridades
nacionais.
Chegamos a um ponto em que até mesmo pessoas que lutaram pela
volta do Estado de Direito, pressionadas pela maré conservadora, estão
defendendo a adoção de leis “antiterroristas” no Brasil. “Terrorista” era o
termo usado contra os que foram perseguidos pela ditadura. Seus rostos, que
podiam ser vistos em cartazes infames que se espalhavam pelos bares e colunas
das estações rodoviárias nos anos mais duros da repressão, eram encimados por
esse termo, seguido do apelo à delação.
As mesmas fotos que ilustravam os
cartazes de procurados são, às vezes, a única forma de lembrar os que foram
torturados, assassinados ou desapareceram naquela época.
Hitlernautas e
apresentadores de programas sensacionalistas propagam a aceitação normal do
retorno desse conceito – “Guerra Contra o Terror” é a base da doutrina de
segurança norte-americana e de seus sabujos pelo mundo.
Deixar de
raciocinar com base em princípios e convicções políticas, para se deixar pautar
pelo clamor fascista que estiver em voga, é o caminho mais curto para vir a
justificar – dependendo do governo de turno – a impressão de novos cartazes como
aqueles. Ou de acabar, eventualmente, aparecendo com o próprio rosto em um
deles. (Fonte: aqui).
quarta-feira, 19 de março de 2014
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