quarta-feira, 19 de março de 2014

MUNDO: NO FOCO DO CONFLITO

                          Simferopol, Crimeia, 16 de março: anexação comemorada.

O conflito na Crimeia é fruto da expansão do Ocidente e de seu desrespeito às leis internacionais

Por Seumas Milne, publicado originalmente no Guardian.

Pronunciamentos diplomáticos são reconhecidos pela hipocrisia e moral dupla. Mas as denúncias ocidentais sobre a intervenção russa na Crimeia atingiram novas profundidades de auto paródia. A incursão até agora sem sangue é “um incrível ato de agressão”, declarou o secretário de Estado John Kerry, dos Estados Unidos.

No século 21 você não invade países “sob pretextos completamente inventados”, ele insistiu, no momento em que aliados dos Estados Unidos concordavam que foi uma inaceitável violação da lei internacional, para a qual “haverá custos”.

O fato de a “indigação” partir dos Estados que lançaram o maior ato de agressão não provocada da História moderna, com um pretexto inventado — contra o Iraque, uma guerra ilegal que já custou a vida de 500 mil pessoas, além da invasão do Afeganistão, troca de regime sangrenta na Líbia e a morte de milhares em ataques de aviões não tripulados no Paquistão, Iêmen e Somália, tudo sem autorização das Nações Unidos — deveria deixar claro que as declarações vão além do absurdo.

A agressão ocidental e a matança sem lei estão em escala totalmente distinta de que qualquer coisa que a Rússia tenha imaginado, muito menos levado adiante. Isso remove qualquer base crível para os Estados Unidos e seus aliados protestarem contra as transgressões russas. Mas, além disso, os poderes ocidentais também jogaram um papel central em criar a crise na Ucrânia.

Os Estados Unidos e os poderes europeus promoveram abertamente os protestos para derrubar o governo corrupto — mas eleito — de Viktor Yanukovych. Eles foram disparados pela controvérsia sobre um acordo tudo-ou-nada com a União Europeia, que teria excluído qualquer associação entre a Ucrânia e a Rússia.

Na sua notória chamada telefônica “foda-se a União Europeia”, que vazou no mês passado, a subsecretária de Estado norte-americana Victoria Nuland pode ser ouvida descrevendo como seria um futuro governo pós-Yanukovych — governo que em seguida virou realidade exatamente tal qual descreveu, quando o presidente foi deposto depois da escalada de violência, semanas depois.

O presidente tinha, então, perdido autoridade política, mas seu impeachment improvisado foi constitucionalmente dúbio. Em seu lugar, surgiu um governo de oligarcas, de neoliberais recauchutados da Revolução Laranja e de neofascistas, que teve como um dos primeiros atos a remoção do status oficial da língua russa, falada pela maioria nas regiões sul e leste, ao mesmo tempo em que se agia para banir o Partido Comunista, que teve 13% dos votos nas eleições mais recentes.

Alega-se, às vezes, que o papel dos fascistas nas manifestações foi exagerado pela propaganda russa, para justificar as manobras de Vladimir Putin na Crimeia. A realidade é suficientemente alarmante para não precisar de exagero. Ativistas informam que a extrema-direita representava cerca de um terço dos manifestantes, mas foi decisiva nos confrontos com a polícia.

Gangues fascistas agora patrulham as ruas. Mas também estão nos corredores do poder em Kiev. O partido de extrema-direita, o Svoboda [ex-Partido Nacional Socialista], cujo líder denunciou “atividades criminosas” do “judaísmo organizado” e que foi condenado pelo Parlamento europeu por sua visão “racista e antissemita”, tem cinco postos ministeriais no novo governo, inclusive os de vice-primeiro-ministro e procurador-geral. O líder do ainda mais extremo Right Sector, que esteve no coração da violência nas ruas, agora é vice-chefe de segurança nacional da Ucrânia.

É a primeira vez que se vê neonazistas em um governo na Europa, depois da Segunda Guerra Mundial. E isso é, num governo não-eleito, apoiado por Estados Unidos e União Europeia. Demonstrando desprezo pelos ucranianos comuns que protestaram contra a corrupção e esperavam mudança real, o novo governo indicou dois oligarcas bilionários — um deles administra seus negócios desde a Suíça — para serem os novos governantes das cidades de Donetsk e Dnepropetrovsk, no leste do país.

Enquanto isso, o Fundo Monetário Internacional está preparando, para a economia ucraniana, um plano de “austeridade” de fazer chorar. Ele aprofundará a pobreza e o desemprego.

De uma perspectiva de longo prazo, a crise na Ucrânia é produto do desastroso estilhaçamento da União Soviética, estilo Versalhes, no início dos anos 90. Como na Iugoslávia, gente que estava contente em ser uma minoria nacional numa unidade administrativa de um Estado multinacional — russos na Ucrânia soviética, ossetas do sul na Geórgia soviética — passaram a se sentir diferentes quando estas unidades se tornaram Estados pelos quais eles tinham pouca lealdade.

No caso da Crimeia, que foi transferida para a Ucrânia por Nikita Kruschev apenas nos anos 1950, isso está claro para a maioria russa. Ao contrário do que foi prometido na época, os Estados Unidos e seus aliados desde então passaram a expandir a OTAN até as fronteiras da Rússia, incorporando nove ex-integrantes do Pacto de Varsóvia e três ex-repúblicas soviéticas ao que efetivamente se tornou uma aliança militar anti-russa na Europa. O acordo de associação que provocou a crise ucraniana também tinha cláusulas que integravam a Ucrânia à estrutura de defesa da União Europeia.

Aquela expansão militar ocidental foi suspensa pela primeira vez em 2008, quando a Geórgia, estado-cliente dos Estados Unidos, atacou forças russas no território contestado da Ossétia do Sul e foi repelida. O confronto curto, mas sangrento, também sinalizou o fim do mundo unipolar de George Bush, no qual o império dos Estados Unidos imporia sua vontade sem desafios em todos os continentes.

Dado este passado, não é surpreendente que a Rússia tenha agido para evitar que a mais nevrálgica e estrategicamente sensível Ucrânia caia no campo ocidental, especialmente quando a única grande base naval de água quente da Rússia é na Crimeia.

Claramente, a justificativa de Putin para a intervenção — proteção “humanitária” e um apelo de um presidente deposto — é legalmente e politicamente frágil, ainda que não na escala das “armas de destruição em massa”. O nacionalismo conservador e o regime oligárquico de Putin também não tem grande apelo internacional.

Mas o papel da Rússia como uma contrapeso limitado ao poder unilateral do Ocidente tem apoio. Num mundo onde os Estados Unidos, o Reino Unido, a França e seus aliados tornaram o desrespeito às leis internacional uma rotina permanente sob um verniz moral, outros países são tentados a praticar o mesmo.

Felizmente, os únicos tiros disparados pela forças russas até agora foram para o ar. Mas o perigo de uma escalada de intervenção estrangeira é óbvio. O que é necessário em vez disso é um acordo negociado na Ucrânia, inclusive com um governo de coalizão em Kiev que não tenha fascistas; uma constituição federal que garanta autonomia regional; apoio econômico que não pauperize a maioria; e uma oportunidade para que o povo da Crimeia escolha seu próprio futuro. Qualquer outra solução pode espalhar o conflito. (Fonte: aqui).

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