quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

O CICLISTA DALTON TREVISAN

.
"...os adultos também podem apreciar a odisseia do rapaz que desafia o trânsito pesado de uma metrópole enquanto guia uma frágil bicicleta."
 

Por Armando Antenore

Dalton Trevisan é certamente um dos autores mais obsessivos e minimalistas do mundo. Sua obsessão se manifesta no afã de reescrever frases, orações e períodos ad infinitum, sem nunca atingir a plena satisfação. Já o minimalismo decorre da ânsia de economizar palavras, de dizer muito com praticamente nada. Quais escritores unem ambas as características de maneira tão eficaz e duradoura como o Vampiro de Curitiba? Lembro-me, agora, dos americanos Ernest Hemingway e Raymond Carver. Nenhum dos dois, porém, chegou perto de viver tanto quanto Trevisan, que morreu em 9 de dezembro passado, seis meses antes de completar 100 anos.

Ele lançou Novelas nada exemplares no finzinho da década de 1950. Trata-se do primeiro livro que não renegou (os anteriores caíram no esquecimento). A partir de então, o autor protagonizou uma carreira bastante fértil, que trouxe à luz mais de quarenta títulos. De acordo com as notícias que sopravam da Alameda Doutor Muricy, no Centro curitibano, onde o recluso literato morava, morreu ainda ativo.

O selo infantil Reco-Reco, do Grupo Record, publicou recentemente um livrinho que exemplifica bem o método do escritor. Chama-se O ciclista e apresenta uma história muito simples. São apenas duzentas e poucas palavras, distribuídas por 32 páginas. As ilustrações esfumaçadas de Odilon Moraes e a diagramação repleta de vazios possivelmente despertam o interesse das crianças, mas os adultos também podem apreciar a odisseia do rapaz que desafia o trânsito pesado de uma metrópole enquanto guia uma frágil bicicleta. “Curvado no guidão lá vai ele numa chispa – e a morte na garupa”, anuncia o parágrafo inicial da trama.

O texto nasceu como reportagem em outubro de 1952. Durante os nove meses seguintes, Trevisan o reelaborou e transformou em conto. Depois, ao longo de várias décadas, o cortou mais e mais e mais. Só guardou a ceifadeira quando a narrativa se tornou minúscula. No processo, o personagem principal abdicou de se chamar José e ficou sem nome, deixou de entregar sorvete e trocou o chapéu por um boné. A campainha da bicicleta, que antes gritava fom-fom, acabou ecoando trim-trim. O resultado final, paradoxalmente trágico e lírico, demonstra que a prosa urbana pode, sim, alcançar a força simbólica e a perenidade dos relatos míticos. O livro oferece, ainda, um breve e saboroso ensaio sobre o pequeno conto. Quem o assina é o crítico Augusto Massi, professor de literatura brasileira na USP.  -  (Fonte: Revista Piauí - Aqui).

Nenhum comentário: