domingo, 8 de agosto de 2021

CARTA MAIOR: OS ÚLTIMOS INOCENTES

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Um dos melhores filmes de 2021, "First Cow - A primeira vaca na América" é ambientado num mundo capitalista já desenhado no século 19 e vivido por dois amigos à margem da corrida pelo ouro


Por Léa Maria Aarão Reis

Um filme reconfortante para esses dias e noites extenuantes que se vive no Brasil de hoje; mundo doente onde impera a morte. Esse ''faroeste pelo avesso'', como anotou um crítico em sua resenha, é de uma delicadeza e uma compaixão raras vezes vista no cinema, em especial no cinema americano. First cow é um ''grande filme'', escreveu outro crítico, Luiz Carlos Merten, depois de assisti-lo no Festival de Berlim do ano passado onde fez imenso sucesso.

Ambientado entre ''os marginalizados à beira do domínio capitalista'', como anuncia tão bem a sua campanha de lançamento no streaming*, o filme de Kelly Reichardt, 57 anos, nascida na Flórida e uma das vozes cinematográficas mais luminosas do seu país, é uma joia rara. Um dos melhores exibidos aqui, este ano.

A primeira vaca na América (não pode haver pior título em português para o filme) carrega uma epígrafe de William Blake. ''The bird a nest, the spider a web, the man friendship'', entendida em tradução livre como ''para o ser humano a amizade é o que o ninho é para o pássaro e a teia, para a aranha".



Fábula extraordinária de duas horas de duração, um mergulho na bela natureza das florestas do estado do Oregon, território ainda ''livre'' em meados do século 19 quando a fundação da America estava em curso. Conduz o espectador à meditação sobre uma possibilidade ainda viva, há dois séculos apenas, do afeto fraterno nascido entre dois seres humanos nos espaços de uma sociedade americana em formação: o exímio cozinheiro Cookie e o imigrante King-Lu.

Um território virgem, ''um lugar novo onde a história ainda não chegou'', como diz King-Lu ao amigo em uma das breves, minimalistas conversas. O imigrante chinês começou a rodar o mundo sozinho, trabalhando a bordo de navios de Cantão desde os nove anos de idade, quando seus pais morreram. Cookie é um exímio padeiro e talentoso confeiteiro.

''Se quisermos, nós, os pobres, termos nossa sobrevivência garantida, um pequeno negócio, por exemplo, precisamos agarrar o capital. Ou será através de um milagre ou com um crime,'' King-Lu pondera.

O filme é baseado no romance The Half Life, de Jonathan Raymond, escritor, amigo e roteirista de Kelly em outras pequenas joias da filmografia de rara coesão, da diretora: Antiga alegria, Wendy e Lucy, O atalho, e Movimentos noturnos.

''Viver sob a sombra da História'' é a definição exata para esse conjunto de obra que, antes de Nomadland vencer o Oscar há pouco tempo, explora as vidas dos que foram e são esquecidos no país dos filmes dos faroestes machistas.

Dois eixos se cruzam na história de First cow: o social, onde acompanhamos o início da corrida do ouro, do dinheiro e do capital a ser obtido a qualquer custo, e a consequente desigualdade abissal entre os pobres (nesse contingente, os indígenas maltratados, espoliados e muitos deles, assassinados) e a arrogância e arreganho do poder político sempre bem articulado com o controle econômico. O outro plano é o individual, o da inocência perdida.



Uma das duas chaves que impulsionam e vão detonar a narrativa é uma torta de clafoutis, feita com frutas silvestres, que encanta o paladar esnobe (o mesmo de ainda hoje) das elites viajantes a Londres e Paris.

A segunda é o leite ordenhado às escondidas e na calada da madrugada, da primeira vaca que chega à América, de propriedade do administrador inglês da região. É preciso roubar o leite para fazer o clafoutis encomendado pelo ricaço para bem impressionar um amigo britânico.

Em paralelo transcorre a relação fraterna e delicada dos dois personagens. Os atores John Magaro (uma atuação memorável) e Orion Lee estão perfeitos. No primeiro, a contemplação, o talento criativo, o gestual preciso. No segundo, a racionalidade, a extroversão e o pragmatismo que vão impulsionar a dupla à ação.

Em recente entrevista, Reichardt faz estas considerações sobre seu filme: ''Eu sempre tento propor uma investigação da masculinidade a partir de pontos de observação que desmistifiquem lugares comuns de representação de gênero. A amizade entre homens e o Oeste são pontos que me interessam. Meus personagens não são pistoleiros valentes, mas empreendedores que se adaptam a uma nova realidade de trabalho e a novas estratégias de sobrevivência''.

Ela vê a América do século 19 como um espaço intocado que vai sendo explorado e corrompido pelo homem. ''Como se chegássemos no momento exato em que os últimos inocentes existiram antes de o capitalismo varrer esse 'tipo de gente' para sete palmos abaixo da terra''.

A inocência perdida como First Cow a mostra: haverá chance de reavê-la?

*Now, GooglePlay, Mubi.

**Na plataforma Prime Vídeo/Amazon e filme O atalho no Mubi.

(Fonte: Boletim Carta Maior Aqui).

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