"...Mas agora o malabarismo semiótico da grande mídia redobrou: junta-se a isso o ruído informacional da retomada do Afeganistão pelo Talibã, atropelando a narrativa da “intervenção humanitária” e da “luta contra o terror” do Ocidente no Afeganistão, terra de extremistas e fundamentalistas feios, barbudos, sujos e malvados."
Por Wilson Ferreira
Diante das imagens de um helicóptero estadunidense sobrevoando a embaixada de Cabul e de afegãos se agarrando em um avião na desesperada retirada de Cabul diante da blitzkrieg da retomada do país pelo Talibã, acompanhamos na TV brasileira correspondentes e apresentadores entre a irritação e consternação: depois de décadas dando apoio propagandístico à guerra contra o terror e a Doutrina do Destino Manifesto dos EUA, sentem-se agora órfãos e desamparados diante do reposicionamento geopolítico do Império. Já falam em “queda” na aprovação de Biden, revelando a natureza totalmente tautista da grande mídia: ao se apegar com fidelidade canina a uma narrativa hegemônica, torna-se cega à realidade. Mas, a crise do Afeganistão oferece uma mais-valia semiótica: a “turbulência política” internacional e brasileira servem de desculpa para inflação e o aumento dos combustíveis e energia.
Já foi o tempo em que a grande mídia podia se autocensurar ou simplesmente dar às costas para a realidade e sumir da pauta notícias que pudessem contradizer suas narrativas e interesses políticos. Hoje, os aquários das redações têm que mobilizar um sofisticado arsenal semiótico para filtrar ou ressignificar as notícias. Numa época de hegemonia das mídias de convergência, se a grande mídia não der a notícia, em algum outro lugar ela vai aparecer.
O dólar volta a disparar, enquanto os juros acompanham os aumentos das tarifas de energia e preços dos combustíveis – o que gera um efeito inflacionário exponencial por toda a economia – que a grande mídia ressignifica como “alta de preços”, para tirar o peso negativo da palavra “inflação”.
Para a grande mídia, que tenta descolar a imagem do ministro Paulo Guedes (e sua agenda de reformas e privatizações) da “crise institucional” de Bolsonaro, a escalada da crise econômica é um preocupante ruído para o bate-bumbo diário da solução neoliberal para o País.
Sem poder esconder os fatos, tem que ressignificá-los: as tarifas de energia sobem? É a bandeira vermelha por causa da seca decorrente das “mudanças climáticas” e “aquecimento global”. O desemprego aumenta? Foi a pandemia e, agora, a “crise política” que contamina o pessimismo dos mercados.
Por que a gasolina sobe?
O comentário do apresentador Roberto Kovalic no Hora 1 é um caso exemplar desse malabarismo discursivo: a tensão no Afeganistão poderá ser mais um fator que explique o aumento dos combustíveis, assim como a “retomada econômica no mundo pós-pandemia” que pressionaria o valor do combustível para cima – como tenta racionalizar o jornalismo econômico da Globo News, colocando fora de discussão a política de preços da Petrobrás atrelada ao valor internacional do petróleo.
Enquanto a CNN nem tenta encarar o esforço da racionalização. Já parte para matérias sobre a “composição dos preços dos combustíveis”, sugerindo jogar a responsabilidade dos reajustes nas distribuidoras, postos de gasolina e nos impostos estaduais – o que dá “match” com a retórica de Bolsonaro.
Para grande mídia, a economia está no caminho certo... o que estraga é a política |
Esse esforço retórico do jornalismo corporativo lembra a clássica operação semiológica da mitologização descrita por Roland Barthes (naturalização ou des-historização dos fatos), na qual tira-se o peso sociopolítico dos fatos para atribuí-los a fenômenos de duas naturezas: a primeira natureza, as mudanças climáticas; e a segunda natureza, a humana – os malditos políticos (de Brasília ou do Afeganistão) que insistem em provocar crises que tiram o sossego natural dos mercados.
As “turbulências políticas” tornam-se justificativas para a crise econômica, poupando Paulo Guedes e a imposição da agenda neoliberal: supostamente é o “clima de incertezas” que afasta investidores e deprime os pobres mercados.
A última vez que esse humilde blogueiro viu a grande mídia tão desnorteada, sem poder entender a aceleração dos acontecimentos, foi em 2013 na eclosão das manifestações nas chamadas Jornadas de Junho – num primeiro momento via nos acontecimentos um “misto de burrice com ressentimento”. Levou pouco mais de uma semana para os analistas de plantão entenderem o chamado político para, depois, entrarem de cabeça no jornalismo de guerra contra o governo lulopetista.
Por décadas a grande mídia sustentou a narrativa da política norte-americana do combate ao terror pós atentados de 2001 dentro da ideologia do “choque de civilizações” entre Oriente e Ocidente – a propaganda da luta das sociedades liberais e democráticas contra o fundamentalismo islâmico e o terror fundamentalista religioso. Sempre viu nos milhares de soldados estacionados no Iraque e Afeganistão como um esforço do Ocidente em levar para as pobres mulheres, prisioneiras dentro das burcas, os costumes liberais dos países democráticos. Enquanto oportunamente “esquecia” dos nossos próprios extremistas políticos e fundamentalistas religiosos – Trump, Bolsonaro et caterva.
Por isso, as imagens da verdadeira blitzkrieg na capital Cabul retomando o governo do Afeganistão pelos talibãs pegou os fiéis cães sabujos da grande mídia de surpresa. Simplesmente não conseguiam entender a facilidade como os “invasores” empurraram os colaboradores da chamada Zona Verde ocidentalizada para o aeroporto, numa tentativa desesperada de fuga – que mais tarde a mídia os chamou de “refugiados”, para criar um cenário de “catástrofe humanitária”.
Como bem observou o jornalista Pepe Escobar, na verdade a “perda” do Afeganistão representa um reposicionamento dos EUA dentro da nova configuração geopolítica: trocar a “guerra contra o terror” pela estratégia de, simultaneamente, “isolar a Rússia e fustigar a China por todos os meios possíveis para evitar a expansão das Novas Rotas da Seda”. Por isso, ocupara pequenos países deixou de ser a prioridade: “O Império do Caos pode fomentar o caos – e supervisionar uma variedade de bombardeios – a partir de sua base CENTCOM, no Catar – clique aqui.
Mas a grande mídia brasileira não está só no seu desamparo. Tem a companhia luxuosa da OTAN, Inglaterra e Itália, humilhados por terem dado tanto apoio enviando tropas à Zona Verde do Afeganistão e, agora, ser humilhada por um bando de pastores de bode.
Poucas vezes viu-se uma irritação e consternação tão grandes como a da correspondente nos EUA, Carolina Cimenti, escandalizada com o risco que “mulheres e meninas” passarão nas mãos dos malvados talibãs e o retrocesso dos costumes no país, abandonado de repente pelo Ocidente.
Vai levar algum tempo até os analistas liberais do jornalismo corporativo entenderem que a nova geopolítica norte-americana (iniciada com Trump e diligentemente executada por Biden) consiste na criação de um novo Eixo do Mal: o eixo Talibã-Paquistão-China. Como afirma Escobar, “o novo Grande Jogo na Eurásia acaba de ser carregado”.
Por ora, os analistas do jornalismo corporativo, órfãos e desamparados, estão usando as “mulheres e meninas” como moeda para suas racionalizações – roupas, costumes e o corpo das mulheres passaram a ser politizados. A sentença é: “o governo talibã será autoritário com as mulheres!”
Mesmo sabendo-se que, apesar da presença norte-americana no país, as mulheres não abandonaram burcas e a moralidade islâmica – pouco foi mudado no status das mulheres.
E o que é pior: na periferia da capital Cabul, a Zona Verde ocidentalizada, cresceram favelas com miseráveis procurando o que fosse nas latas de lixo de produtos ocidentais e uma rede de prostituição para os colaboradores do governo de ocupação – aqueles que agora o jornalismo corporativo chama de “refugiados”.
Além disso, desde a invasão dos EUA, aumentou dramaticamente no Afeganistão a produção de ópio que agora representa 90% do mercado global de heroína.
Como bem observou o cineasta norte-americano Michel Moore, “NÓS somos os invasores. O Talibã não é invasor – eles são afegãos – é país deles! Eles são loucos religiosos. Nós sabemos o que parece – nós temos os nossos próprios”.
Claro, esses “nossos” são os extremistas políticos e fundamentalistas religiosos os quais são lançados mão a cada crise do capitalismo para impor a ordem. Como bem demonstra a necessária guinada à direita atual no Ocidente para fazer o serviço sujo do Grande Reset Global do capitalismo.
“Match” grande mídia e extrema-direita
Autor do livro "Direito Natural e História", o filósofo teuto-americano Leo Strauss (1899-1973) é tido por muitos como o pai intelectual de todo o neoconservadorismo norte-americano e da cúpula de dirigentes do governo Bush e de sua política de guerra ao terror pós-atentados de 2001.
Sua obra procura combater o relativismo do olhar multiculturalista da antropologia, isto é, através da Razão e do Direito Natural, tenta encontrar um ponto de referência filosófico que permita o estabelecimento de juízos sobre culturas diversas no tempo e no espaço.
Em outras palavras, esse Direito Natural justificaria a doutrina do Destino Manifesto dos EUA no qual os norte-americanos acreditam que têm uma missão divina de expandir territorialmente levando a outros países e povos a civilização e o progresso – a Liberdade e a Democracia. A guerra ao terror e suas guerras eternas seriam justificadas por essa missão divina, no qual a grande mídia internacional e os parceiros geopolíticos europeus acreditaram.
Nesse momento a grande mídia sente-se “traída” de, por décadas, ter dado apoio ideológico, jornalístico e propagandístico à luta contra o Eixo do Mal feio, sujo e malvado – autoritário, intolerante, fanático e que esconde a mulher sob o véu do preconceito.
A forma como analistas, correspondentes e apresentadores estão reagindo com visível irritação e consternação (p.ex., já começam a espernear mostrando pesquisas apontando suposta queda na aprovação de Biden, outrora o campeão na luta contra o extremista Trump) a essa guinada narrativa do Império é uma lição para a esquerda aqui no Brasil: a grande mídia tem uma natureza tautista (tautologia + autismo midiático) – apega-se com fidelidade canina a narrativas hegemônicas, tornando-se cega quaisquer mudanças de conjunturas ou cenários no mundo real externo à narrativa – sobre o conceito de tautismo, clique aqui.
Até aqui a mídia corporativa brasileira parece aceitar as sucessivas absolvições de Lula na Justiça e a volta dos seus direitos políticos – a esquerda até chega a comemorar a presença do líder trabalhista no Jornal Nacional e ver William Bonner noticiar as decisões favoráveis a ele na Justiça.
O prezado leitor pode ter certeza: a narrativa lavajatista do justiçamento e da judicialização continua batendo forte nos aquários das redações do jornalismo corporativo. Quando for necessário, o escorpião voltará a ferroar as costas do sapo – como nos informa aquela célebre fábula do escorpião e do sapo que o levava através de um rio... - (Fonte: Cinegnose - Aqui).
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