quinta-feira, 29 de julho de 2021

QUESTIONANDO O CULTO AOS MATADORES

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O Antagonista estampou horas atrás manchete informando que "Preso, Homem Assume Participação em Incêndio da Estátua de Borba Gato" (Aqui): em nota, o entregador Paulo Roberto da Silva Lima, o Paulo Galo, fundador do Movimento dos Entregadores Antifascistas, diz que "o objetivo do ato foi abrir o debate", e arremata: "Agora, as pessoas decidem se elas querem uma estátua de 13 metros de altura de um genocida". 
A propósito da investida incendiária e considerando a imagem heroica e edulcorada com que os bandeirantes foram brindados pelos detentores do poder, reproduzimos o artigo a seguir, de autoria de Mário César Carvalho:


Fogo No Borba Gato É Um Bom Estopim Para Discutir Monumentos  Que Homenageiam Matadores

escritor  Alcântara Machado (1901-1935) publicou em 1929 um livro que trazia uma nova visão sobre os bandeirantes. “Vida e Morte do Bandeirante” não endossava a visão ufanista com que os paulistas construíram a figura mítica do desbravador do sertão. Ao mostrar a vida cotidiana dos bandeirantes, Alcântara Machado revelou o lado B dessa saga: eles escravizam e exterminavam índios e negros e o estupro de nativas e brancas era rotina.

Portanto, não é novidade que os bandeirantes eram gente da pior espécie. Borba Gato (1649-1718), cuja estátua em São Paulo foi alvo de um ataque no último sábado (24.jul.2021), tinha todo esse histórico e ainda matara o ourives-real e permanecera 17 anos escondido nas matas.  

É essa figura que o governador e o prefeito de São Paulo, João Doria e Ricardo Nunes, respectivamente, querem defender quando classificam o ataque de “vandalismo”? Acho que a situação é ainda mais crítica para Doria e Nunes: os chamar os autores da performance de “vândalos”, eles querem interditar um debate que está mais do que maduro: o que São Paulo vai fazer com os bandeirantes?

Muito mais do que o Atlântico, há um abismo cultural separando São Paulo de Bristol, na Inglaterra. Mas Doria e Nunes poderiam se mirar no exemplo do prefeito daquela cidade, o trabalhista negro Martin Reeves. Reeves enfrentou com garbo uma situação parecida com a de São Paulo: manifestantes contra o racismo jogaram no rio da cidade uma estátua do traficante de escravos Edward Colston. Ele recuperou a estátua das águas, mandou-a para o depósito e chamou historiadores para discutir o que fazer.

Doria e Nunes tiveram a mesma atitude dos bolsonaristas no caso do Borba Gato: repetiam o velho clichê do vandalismo, uma maneira pouco dissimulada de mandar um cala a boca. Se estudassem um pouquinho de história, talvez fossem menos arrogantes, uma característica típica dos conservadores paulistas do passado, estampada em latim no brasão da cidade de São Paulo ­­–­“Non ducor, duco” (Não sou conduzido, conduzo).

Alcântara Machado, que acusou Borba Gato de ser matador de índios e negros, não tinha nada de esquerdista. Na dedicatória de “Vida e Morte do Bandeirante”, ele dizia ser um quatrocentão, o adjetivo pelo qual os paulistas gostam de dizer que vieram para o Brasil com as caravelas no século 16. “Para minha mulher/ meus filhos/ minha nora/ meus netos/ paulistas como eu/ e os meus antepassados/ desde Antônio de Oliveira / chegado a S. Vicente em 1532”.

Na época em que escrevia o livro, Alcântara Machado era editor da revista mais influente do modernismo, a Antropofagia, criada por seu amigo Oswald de Andrade. Apesar de irreverente e farrista, não era um porra-louca: foi diretor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco entre 1930 e 1934 e foi eleito deputado pelo Partido Constitucionalista de São Paulo, um grupo ligado à elite cafeeira. Morreu numa cirurgia de apendicite antes de tomar posse.

Os bandeirantes foram elevados à categoria mitológica por essa mesma elite paulista. Como não havia igrejas barrocas como Minas ou a sede do reino como o Rio de Janeiro, os paulistas criaram os desbravadores do sertão para cumprir a função de que teriam um passado grandioso. A Semana de Arte Moderna de 1922, sobretudo o grupo direitista de Menotti del Picchia e Plínio Salgado, foram propagadores dessa lenda dos “gigantes” paulistas.

Se houvesse uma Secretaria de Cultura que fizesse juz ao nome, o governo de Doria podia aproveitar o ataque para discutir essa herança do modernismo, nos 100 anos do movimento. Mas aí seria pedir demais.

Pior do que Doria, só mesmo os bolsonaristas, que usaram o ataque para falar em terrorismo. O advogado Arthur Weintraub, ex-assessor da Presidência e irmão do ex-ministro da Educação de Bolsonaro, disse em rede social que o fogo colocado pelo grupo Revolução Periférica era um atentado terrorista “para apagar a nossa história”. Nossa? Só se for a história da extrema direita e do seu culto à morte.

O maior papelão é o do prefeito de São Paulo, conhecido não por seu currículo, mas por acusações de que batia na mulher, o que ele nega. A cidade de São Paulo fez movimentos importantes para rever a história da cidade. O mais importante de todos, na minha opinião, foi retirar a homenagem ao general Arthur da Costa e Silva (1899-1969), o 2º presidente da ditadura, no elevado que corta o centro de São Paulo. Foi rebatizado com o presidente removido pela ditadura, João Goulart. O projeto de lei foi aprovado pela Câmara em 2016 e sancionado pelo então prefeito, Fernando Haddad.

Cidades e museus são alvos de disputa sobre que história vão glorificar. Grandes museus e cidades estão rediscutindo o que fazer com esse fardo de matadores e traficantes de escravos do passado. O Museu Paulista, cujo acervo tem inúmeras obras glorificando bandeirantes, diz que vai debater essa figura histórica quando a sua sede foi reaberta, no próximo ano. Doria e Nunes deviam ir lá para aprender alguma coisa e história. Interditar esse debate com acusações simplórias é o melhor caminho para excluir da conversa quem não suporta ver alguém que matou seus antepassados homenageado numa obra de 13 metros de altura.  -  (Fonte: Site Poder 360 - Aqui).

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