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O Antagonista estampou horas atrás manchete informando que "Preso, Homem Assume Participação em Incêndio da Estátua de Borba Gato" (Aqui): em nota, o entregador Paulo Roberto da Silva Lima, o Paulo Galo, fundador do Movimento dos Entregadores Antifascistas, diz que "o objetivo do ato foi abrir o debate", e arremata: "Agora, as pessoas decidem se elas querem uma estátua de 13 metros de altura de um genocida".
A propósito da investida incendiária e considerando a imagem heroica e edulcorada com que os bandeirantes foram brindados pelos detentores do poder, reproduzimos o artigo a seguir, de autoria de Mário César Carvalho:
O escritor Alcântara Machado (1901-1935) publicou em 1929 um livro que trazia uma nova visão sobre os bandeirantes. “Vida e Morte do Bandeirante” não endossava a visão ufanista com que os paulistas construíram a figura mítica do desbravador do sertão. Ao mostrar a vida cotidiana dos bandeirantes, Alcântara Machado revelou o lado B dessa saga: eles escravizam e exterminavam índios e negros e o estupro de nativas e brancas era rotina.
Portanto, não é novidade que os bandeirantes eram gente da pior espécie. Borba Gato (1649-1718), cuja estátua em São Paulo foi alvo de um ataque no último sábado (24.jul.2021), tinha todo esse histórico e ainda matara o ourives-real e permanecera 17 anos escondido nas matas.
É essa figura que o governador e o prefeito de São Paulo, João Doria e Ricardo Nunes, respectivamente, querem defender quando classificam o ataque de “vandalismo”? Acho que a situação é ainda mais crítica para Doria e Nunes: os chamar os autores da performance de “vândalos”, eles querem interditar um debate que está mais do que maduro: o que São Paulo vai fazer com os bandeirantes?
Muito mais do que o Atlântico, há um abismo cultural separando São Paulo de Bristol, na Inglaterra. Mas Doria e Nunes poderiam se mirar no exemplo do prefeito daquela cidade, o trabalhista negro Martin Reeves. Reeves enfrentou com garbo uma situação parecida com a de São Paulo: manifestantes contra o racismo jogaram no rio da cidade uma estátua do traficante de escravos Edward Colston. Ele recuperou a estátua das águas, mandou-a para o depósito e chamou historiadores para discutir o que fazer.
Doria e Nunes tiveram a mesma atitude dos bolsonaristas no caso do Borba Gato: repetiam o velho clichê do vandalismo, uma maneira pouco dissimulada de mandar um cala a boca. Se estudassem um pouquinho de história, talvez fossem menos arrogantes, uma característica típica dos conservadores paulistas do passado, estampada em latim no brasão da cidade de São Paulo –“Non ducor, duco” (Não sou conduzido, conduzo).
Alcântara Machado, que acusou Borba Gato de ser matador de índios e negros, não tinha nada de esquerdista. Na dedicatória de “Vida e Morte do Bandeirante”, ele dizia ser um quatrocentão, o adjetivo pelo qual os paulistas gostam de dizer que vieram para o Brasil com as caravelas no século 16. “Para minha mulher/ meus filhos/ minha nora/ meus netos/ paulistas como eu/ e os meus antepassados/ desde Antônio de Oliveira / chegado a S. Vicente em 1532”.
Na época em que escrevia o livro, Alcântara Machado era editor da revista mais influente do modernismo, a Antropofagia, criada por seu amigo Oswald de Andrade. Apesar de irreverente e farrista, não era um porra-louca: foi diretor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco entre 1930 e 1934 e foi eleito deputado pelo Partido Constitucionalista de São Paulo, um grupo ligado à elite cafeeira. Morreu numa cirurgia de apendicite antes de tomar posse.
Os bandeirantes foram elevados à categoria mitológica por essa mesma elite paulista. Como não havia igrejas barrocas como Minas ou a sede do reino como o Rio de Janeiro, os paulistas criaram os desbravadores do sertão para cumprir a função de que teriam um passado grandioso. A Semana de Arte Moderna de 1922, sobretudo o grupo direitista de Menotti del Picchia e Plínio Salgado, foram propagadores dessa lenda dos “gigantes” paulistas.
Se houvesse uma Secretaria de Cultura que fizesse juz ao nome, o governo de Doria podia aproveitar o ataque para discutir essa herança do modernismo, nos 100 anos do movimento. Mas aí seria pedir demais.
Pior do que Doria, só mesmo os bolsonaristas, que usaram o ataque para falar em terrorismo. O advogado Arthur Weintraub, ex-assessor da Presidência e irmão do ex-ministro da Educação de Bolsonaro, disse em rede social que o fogo colocado pelo grupo Revolução Periférica era um atentado terrorista “para apagar a nossa história”. Nossa? Só se for a história da extrema direita e do seu culto à morte.
O maior papelão é o do prefeito de São Paulo, conhecido não por seu currículo, mas por acusações de que batia na mulher, o que ele nega. A cidade de São Paulo fez movimentos importantes para rever a história da cidade. O mais importante de todos, na minha opinião, foi retirar a homenagem ao general Arthur da Costa e Silva (1899-1969), o 2º presidente da ditadura, no elevado que corta o centro de São Paulo. Foi rebatizado com o presidente removido pela ditadura, João Goulart. O projeto de lei foi aprovado pela Câmara em 2016 e sancionado pelo então prefeito, Fernando Haddad.
Cidades e museus são alvos de disputa sobre que história vão glorificar. Grandes museus e cidades estão rediscutindo o que fazer com esse fardo de matadores e traficantes de escravos do passado. O Museu Paulista, cujo acervo tem inúmeras obras glorificando bandeirantes, diz que vai debater essa figura histórica quando a sua sede foi reaberta, no próximo ano. Doria e Nunes deviam ir lá para aprender alguma coisa e história. Interditar esse debate com acusações simplórias é o melhor caminho para excluir da conversa quem não suporta ver alguém que matou seus antepassados homenageado numa obra de 13 metros de altura. - (Fonte: Site Poder 360 - Aqui).
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