O xadrez da Polícia Federal na era das corporações
Por Luis Nassif
A criação da Sisbin
Nos anos 90, ajudei o então Secretário de Segurança do Ministério da Justiça Walter Maierovitch, com informações sobre as ferramentas utilizadas no mercado financeiro para lavagem de dinheiro.
Na CPI dos Precatórios, passei dias e dias, com minha coluna na Folha, desbastando cada instrumento financeiro utilizado para esquentamento de dinheiro, desde as operações zé-com-zé na Bolsa de Valores até as jogadas com títulos estaduais.
Por conta desse trabalho fui convidado pelo então Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos para abrir um encontro em Pirenópolis (GO), juntando representantes de todos os órgãos de fiscalização – o Ministério Público Federal, Polícia Federal, Receita, Banco Central, COAF, para lançamento da Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência). Estavam lá figuras que se tornariam referenciais nos anos seguintes, como o Procurador Geral Cláudio Fontelles e o diretor da PF Paulo Lacerda.
O pedido de Márcio foi para que eu “descesse a lenha” nos métodos de investigação até então implementados, que desconheciam as nuances do mercado financeiro, e explicasse alguns mecanismos do mercado financeiro para lavagem de dinheiro.
Aproveitei para conversar com alguns dos presentes e o quadro apresentado era entusiasmador. Em Brasilia haviam sido montadas salas de situação onde se reuniam representantes de todos os órgãos para estudar as estratégias conjuntas contra a lavagem de dinheiro.
Descrevi essas mudanças em coluna de 14 de maio de 2005 (http://migre.me/tnFcZ). A partir dali, começava a se fechar o cerco ao crime organizado, à ideia, que imperava desde os anos 70, de que seria impossível o cerco aos paraísos fiscais e às contas, que migrariam de um banco para outro sem deixar rastros.
Saí da reunião com a sensação de que estava sendo construído um novo país. E que o jogo político, os financiamentos de campanha convencionais, jamais seriam os mesmos.
Aparentemente, Márcio esqueceu de informar o governo.
A nova Polícia Federal
Nesse período, houve uma completa reformulação da Polícia Federal. Novos equipamentos, novos métodos de investigação e, principalmente, uma liderança serena e segura de Paulo Lacerda, que incutiu um orgulho extraordinário na força.
Na época, conversei com um consultor contratado para trabalhos de gestão na PF. Na hora de definir o objetivo, houve consenso: em 20 anos ter o mesmo nível do FBI.
A PF se aparelhou, aprendeu a fazer gestão, conquistou equipamentos modernos e, principalmente, teve acesso a parcerias internacionais armadas até os dentes com as novas tecnologias. A prisão do comendador Arcanjo – chefe da contravenção do Mato Grosso – foi um feito extraordinário. Através do GPS, o FBI orientou os agentes até o cômodo da casa onde Arcanjo se escondia.
A nova Polícia Federal – assim como o MPF – queria testar a musculatura adquirida.
Houve tentativas iniciais de invasões de escritórios de advogados. Depois, Operações de nomes vistosos, algumas discretas e bem-sucedidas – como a da Daslu -, outras polêmicas e conflituosas, como a Satiagraha e a Castelos de Areia.
Dois episódios liquidaram com essa lua-de-mel.
O primeiro, a maneira como o governo Lula atuou no caso Satiagraha, humilhando a grande referência da PF – Paulo Lacerda, na época na ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) – e os delegados da Satiagraha. Salvou o PSDB e gerou um ódio mortal na corporação.
A segunda, a indicação de José Eduardo Cardozo para o Ministério da Justiça.
Cardozo montou uma estratégia fatal.
Na parte administrativa, deixou a PF às moscas. Não implementou um programa sequer.
No auge da guerra contra a TelexFree – o maior golpe já aplicado contra brasileiros na história – depois de muito cobrar a participação do Ministério da Justiça, Cardozo acabou me colocando em contato com um alto quadro da PF.
A primeira frase da autoridade: “Senhor jornalista, quando vier a Brasília vamos conversar para contar o que o Ministro está fazendo com a PF”.
Para manter-se no cargo sem ser incomodado, Cardozo entregou todos os anéis e dedos para a corporação.
Cardozo trouxe cerca de dez policiais federais para sua assessoria, garantiu à tropa a ampliação do poder, mantendo a presidente desinformada sobre a marcha do golpe. E há suspeitas de que tenha sido responsável por parte dos vazamentos que inundaram a imprensa no período.
Semanas atrás, policiais da PF fizeram chegar à Casa Civil um material que mostraria aparelhamento da Lava Jato pelo PSDB do Paraná. Junto com o material, o alerta para não passar o material para o Ministério da Justiça, “senão mela”. Dias depois o material saiu publicado na revista Veja. Questionadas, as fontes da Casa Civil confirmaram que o MJ havia tido acesso aos documentos. Pode ter sido coincidência; pode ser que não.
Outra figura chave foi o líder do governo no Senado, senador Humberto Costa. Apanhado na Operação Sanguessuga, Costa fechou um pacto político com a PF, ajudando a aprovar um conjunto de leis que permitiu à PF um emponderamento inédito.
A lei 12.839 garantiu controle total sobre inquérito policial. Agora, tudo passa pela PF, desde inquéritos do IBAMA, INSS. Imagine-se um delegado comandando 400 investigações.
Outra foi a lei 12.850, de combate ao crime organizado e (que define a) delação premiada. Em qualquer país do mundo, a delação é acompanhada pelo MP. A lei dava essa exclusividade aos delegados.
Costa e Cardozo tiveram papel central em sua aprovação. E se aliaram aos delegados nas discussões sobre a MP 650, que pretendia definir uma carreira única para o órgão.
Na verdade, os delegados colocaram uma faca no pescoço do governo e saíram vitoriosos.
A faca, no caso, foi um bilhete manuscrito de Alberto Yousseff que continha um mero “Dilma 17 viagem”. O bilhete apareceu em abril de 2014 e não foi encaminhado à Procuradoria Geral da República, ficou nas mãos dos delegados.
Apenas no último dia 11 de março uma reportagem da revista IstoÉ (http://migre.me/tnH8O) relatou parte da história. Segundo a revista, a contadora de Yousseff, Meire Poza, contou que, ao tomar conhecimento do bilhete, o delegado Márcio Anselmo vibrou: “Que coisa maravilhosa! “. Os documentos foram guardados no porta-malas de uma Range Tober Evoque apreendida pela Lava Jato, e que ficou a serviço da PF, e só reparaceram agora.
Terá sido esta a arma da qual se valeram delegados para forçar o governo a aprovar a MP 657/2014, tornando privativo de delegados de classe especial o cargo de diretor-geral da PF (http://migre.me/tnHnd) ? Em apenas duas semanas, a MP virou a Lei 13.047.
O feito foi comemorado pelo deputado e delegado Fernando Franceschini, que se vangloriava de ter botado “o governo de joelhos” (http://migre.me/tnHu1).
O ponto final foi o pacto em torno do helicóptero do senador Zezé Perrela, aliado e amigo de Aécio Neves, transportando 450 quilos de cocaína. O abafamento do caso teria sido fruto de um acordo entre a banda tucana da PF, em troca de segurar a Operação Acrônimo, que envolvia o então candidato ao governo de Minas, Fernando Pimentel. Chegou-se ao feito inédito de um delegado da PF soltar uma declaração inocentando Perrela, fato sem precedentes na história da PF.
Esse é o mundo sem corrupção criado nas fantasias alimentadas pela Lava Jato, a partir do momento que escolheu lado.
As novas corporações
A Procuradoria Geral da República e a Polícia Federal tiveram papel central nas armações contra Dilma. Foram parciais, em alguns momentos flagrantemente partidários, mas fogem do figurino tradicional do golpismo latino-americano, de aplainar o terreno para a oposição – embora na prática seja isso o que ocorre, ao livrar os líderes da oposição de indiciamentos.
Nos dois casos, houve uma reação das corporações para se transformar em poderes autóctones.
Tome-se o caso do PGR Rodrigo Janot. Não se tenha dúvida de que foi o grande estrategista da Lava Jato. Criou as condições para o sucesso da Operação, amarrou a cooperação internacional, alocou na força tarefa seus melhores procuradores e seus melhores recursos, monitorou passo-a-passo para não sair da ilegalidade e teve três intervenções que mostraram claramente o jogo:
1. Ao encaminhar para a Lava Jato denúncia vaga (e incorreta) de um obscuro parlamentar do Norte, com base em reportagem da revista Veja informando que a OAS teria feito reformas no sítio de Atibaia. Duas instâncias tinham recusado ir adiante, pela precariedade das informações. Janot deu seguimento ajudando a ressuscitar a tese do impeachment, que tinha perdido fôlego no final do ano passado.
2. Ao autorizar a liberação dos grampos com conversas informais de Lula.
3. Ao devolver o processo de Lula ao juiz Sérgio Moro.
E, no entanto, Janot é um procurador exemplar. Não tem ambições pessoais: ao contrário, é um representante integral das ambições da corporação. Toda sua estratégia visou ampliar a influência institucional do Ministério Público Federal, blindar a Lava Jato contra as interferências que anularam operações anteriores. Temperou com um tanto de solidariedade mineira.
Não lhe peça para analisar os desdobramentos dessa atuação na vida política nacional, os impactos dessa radicalização nas próximas gerações, a abertura do precedente de um golpe legalizado (é golpe, sim), as consequências do vácuo político criado, as ameaças de retrocesso dos avanços sociais conquistados. Seu foco é o MPF, ponto. Ele não é especialista em Brasil: é em MPF.
Trata-se de uma corporação com grandes especialistas em todas as áreas do direito e com algumas contribuições inestimáveis para o avanço civilizatório. Mas a inteligência corporativa é escassa, especialmente para temas políticos e institucionais. Como declarou certa vez um ex-presidente da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), o Brasil é um oceano de corrupção que circunda a única ilha de honestidade, que é o Ministério Público. Questionar, quem há de?
Há plena convicção na corporação (com as notáveis exceções individuais) de que é possível controlar totalmente a corrupção, que arrebentar com cadeias produtivas produzirá uma economia mais forte, que criminalizar toda forma de apoio às empresas trará segurança jurídica, que criminalizar a política, a purificará. É uma segurança férrea, inamovível, questão de fé.
Mais do que um problema do MPF, reflete o desmoronamento institucional a partir do momento em que a presidência deixou de articular um projeto de país.
Em 1964 havia uma corporação com poder: a militar.
Agora, o que se tem é uma implosão do sistema político e do sistema institucional, com cada poder tratando de salvar seu latifúndio e sem um poder central capaz de articular e unificar as ações, atuar como algodão entre cristais, articular pactos entre os poderes.
Na hipótese de queda de Dilma, esse será um complicador a mais. Na parte política, o poder empalmado pelo grupo de Eduardo Cunha, armado de suas prerrogativas constitucionais. Na outra ponta, o MPF e a PF pintados para a guerra. Pairando acima o STF (Supremo Tribunal Federal), mas tão acima, tão acima, que não venha ninguém atrapalhar seu sono. E, na base, a multidão dos desassistidos, organizados por todo o país, inconformados com as janelas que se fecharão na grande noite que se prenuncia.
Daqui até 2018 há uma grande caminhada.
Em sua nova versão, mais uma vez Brasilia tenta se impor sobre o restante do país, enquadrar o país em gabinetes, monitorados por tecnologias avançadas. (Fonte: Jornal GGN - aqui).
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