domingo, 31 de maio de 2015

DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

M. Baraldi.

Maioridade penal: Jogados aos leões

Por Andrea Dip

“Todo mundo dizia que eu não iria passar dos 15. Mas ó, tô aqui, firme e forte, 29 anos, venci a estatística. Um homem feito, trabalhador. Mas passei meu veneno na Fundação Casa, vou dizer. Na época era Febem ainda. Tudo começa porque a gente não tem estrutura aqui na periferia. A molecada corre pra onde? Pra rua. O refúgio é rua, sempre foi. Eu recebi educação da minha mãe, guerreira, criou sozinha cinco filhos. Mas quem me ensinou mesmo foi a rua. Já passei fome na rua, já bati na rua, já apanhei na rua”, conta Pixote, na pracinha perto da sua casa, no Jardim Vazame, região metropolitana de São Paulo.

“Com 13 anos eu era moleque doido, a gente não tinha o que fazer. Comecei a roubar junto com outros meninos daqui. A gente roubava mercadinho, coisa pequena. Minha mãe dormia no serviço, e minha irmã não conseguia me segurar em casa. Um dia nós pulamos o muro de uma casa pra roubar roupa, CD, sem arma, nem era pra vender na quebrada, era só coisa pequena que a gente queria. Daí fomos abordados pela polícia, já no caminho de volta. Eles bateram, falaram que iam matar a gente. Foi a maior decepção pra minha mãe. Fiquei um ano na Febem, que depois virou Fundação Casa, mas que de casa não tem nada porque aquilo é cadeia. Apanhei muito lá dentro, sem motivo. Eles tiravam a gente do quartinho e espancavam. Vi cada coisa naquele lugar. Quando eu saí, pensei na minha mãe. Que não queria dar desgosto pra uma mulher que não merecia. Mas se fosse pensar no que passei lá dentro… A cabeça não sai boa, a gente não aprende nada na ‘cadeia’. Eu limpei bosta com a mão. Nem era minha. Foi a única vez que ouvi um por favor lá dentro. ‘Por favor, limpa essa merda com a mão.’ Daí agora querem botar a molecada na cadeia mesmo, misturada com os mais velhos. Acham que eles vão sair uns anjos de lá? Vão sair três vezes pior, com um garfo na mão espetando até o cão. Eu tive sorte, sobrevivi. Mas muitos não têm.”

Pixote tem razão quando diz ser um sobrevivente. A violência mata mais os adolescentes do que qualquer outra camada da população. E, ao contrário do argumento usado por quem defende a redução da maioridade penal, não são eles os que mais matam, como destaca Jacqueline Sinhoretto, do Departamento de Sociologia da UFSCar e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (Gevac). “A percepção social de que os adolescentes são os grandes responsáveis pela violência no Brasil não resiste à análise acurada. Os jovens entre 15 e 19 anos são as maiores vítimas da violência fatal e cometem apenas uma parcela destes crimes”, pontua a professora.

Os homicídios são a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos no Brasil e atingem especialmente jovens negros do sexo masculino, moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos, constata o Mapa do Encarceramento: Os Jovens do Brasil, da Secretaria-Geral da Presidência da República. O relatório, ainda em versão preliminar, é baseado em dados consolidados do SIM/Datasus, do Ministério da Saúde, sobre as 56.337 vítimas de homicídio em 2012. Mais da metade delas, 52,63%, eram jovens (27.471), dos quais 77% negros (pretos e pardos) e 93,30% do sexo masculino. E apesar de, esporadicamente acontecerem crimes envolvendo adolescentes que sensibilizam a opinião pública, como o recente caso do médico Jaime Gold esfaqueado na Lagoa, no Rio de Janeiro, uma parcela ínfima comete crimes violentos. De acordo com uma estimativa do Unicef Brasil (feita a partir de dados da Pnad e Sinase de 2012) e citada em nota da ONU contra a redução da maioridade penal “dos 21 milhões de adolescentes que vivem no Brasil, apenas 0,013% cometeram atos contra a vida”.

Confirmando outra percepção de Pixote, a nota da ONU afirma: “Há inúmeras evidências de que as raízes da criminalidade grave na adolescência e juventude no Brasil se desenvolvem a partir de situações anteriores de violência e negligência social. Essas situações são muitas vezes agravadas pela ausência do apoio às famílias e pela falta de acesso destas aos benefícios das políticas públicas de educação, trabalho e emprego, saúde, habitação, assistência social, lazer, cultura, cidadania e acesso à justiça, que, potencialmente, deveriam estar disponíveis a todo e qualquer cidadão, em todas as fases do ciclo de vida”.

A legislação brasileira vai mais fundo, garantindo atendimento prioritário aos direitos de crianças e adolescentes na forma exigida pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), promulgado em 1990. Na prática, porém, não apenas o Estado falha em garantir “um mínimo para esses meninos” em um país profundamente desigual, mas é ele que faz girar a roda de violência através de seu aparelho repressivo, como aponta Fernanda Laender, educadora no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo. “A violação do Estado produz ‘vítimas’ e estas, quase sempre, se tornam ‘agressores’. É a reprodução da dinâmica da violência. No fundo, eles buscam igualdade, ter os mesmos direitos que os outros, e a violência é a forma mais ‘naturalizada’ de reivindicação. Existe um atravessamento do Estado na vida destes meninos e suas famílias, mantendo as coisas em seus ‘devidos lugares’. Pobres e negros cada vez mais pobres e excluídos. Os meninos não se tornam traficantes, eles crescem em meio ao tráfico e ao crime, mas vivem o mesmo apelo social de uma sociedade de consumo em que você é o que você tem. Os meninos querem isso também, ter coisas, ser alguém, experimentar o que é pertencimento e ser reconhecidos. Quando o Estado se mostra presente nas políticas públicas periféricas, se apresenta numa perspectiva policial e penitenciária, ou seja, policial e punitiva.”

No dia 31 de março deste ano, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou a admissibilidade da proposta de emenda à Constituição (PEC) 171, de 1993, que altera a redação do art. 228 a respeito da imputabilidade penal do maior de 16 anos. Ou seja: apenas os que têm até 16 anos continuam protegidos pela legislação especial (ECA) quando em conflito com a lei. Foi o primeiro passo para assegurar o andamento da proposta na Casa. O placar de votação foi de 42 deputados a favor e 17 contrários. O texto da PEC, redigido pelo então deputado do Partido Progressista (PP) Benedito Domingos, alega que os jovens de hoje têm mais discernimento do que os de antigamente: “A liberdade de imprensa, a ausência de censura prévia, a liberação sexual, a emancipação e independência dos filhos cada vez mais prematura, a consciência política que impregna a cabeça dos adolescentes, a televisão como o maior veículo de informação jamais visto ao alcance da quase totalidade dos brasileiros, enfim, a própria dinâmica da vida, imposta pelos tortuosos caminhos do destino, desvencilhando-se ao avanço do tempo veloz, que não pára, jamais”. E o deputado conclui: “Se há algum tempo atrás se entendia que a capacidade de discernimento tomava vulto a partir dos 18 anos, hoje, de maneira límpida e cristalina, o mesmo ocorre quando nos deparamos com os adolescentes com mais de 16”.

O argumento do deputado Benedito contradiz o parecer de psicólogos e especialistas em adolescência, vista por eles como uma etapa do processo de desenvolvimento. “São pessoas que estão em processo de constituição de seus valores”, destaca a presidente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, Elisa Zaneratto Rosa, que se declarou oficialmente contra a medida. “Todos nós passamos por um processo de desenvolvimento pelo qual nos apropriamos dos valores postos na sociedade, em que desenvolvemos capacidades para fazer a reflexão crítica sobre esses valores. A psicologia reconhece que isso depende de um processo de formação – e de um processo de formação, inclusive em relação ao qual o Estado tem responsabilidade”, explicou em entrevista concedida à repórter Laura Capriglione para os #JornalistasLivres.

A proposta representa também um retrocesso em relação ao ECA, internacionalmente reconhecido como uma das melhores legislações do mundo referente à política da infância e adolescência. Uma pesquisa realizada pela ONU (Crime Trends) estudou a legislação de 57 países e aponta que apenas 17% delas estabelecem idade penal inferior a 18 anos. E essa é uma tendência: a Alemanha, por exemplo, que tinha baixado a idade penal, voltou para 18 anos e criou um sistema diferenciado para jovens entre 18 e 21 anos; o Japão também elevou a maioridade penal para 21 anos.
A aplicação de medidas socioeducativas – e não de penas criminais – para adolescentes em conflito com a lei prevista no ECA “relaciona-se com a finalidade pedagógica e decorre do reconhecimento da condição peculiar de desenvolvimento na qual se encontra o adolescente”, como citado no Mapa do Encarceramento – Os Jovens do Brasil. A intenção é proteger e educar as pessoas em desenvolvimento, um passo definitivo para se distanciar da doutrina que vigorava até então: a de repressão e disciplina dos “menores degenerados”, criados em ambientes familiares em ‘risco moral’”, que corriam o risco de se tornarem “criminosos”.

O que não significa impunidade para os menores de 18 anos. Há medidas socioeducativas cumpridas em meio aberto (advertência, reparação do dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida), mas também as que preveem restrição de liberdade (semiliberdade e internação em estabelecimento educacional), executadas por instituições públicas, ligadas ao Poder Executivo dos estados, como a Fundação Casa, em São Paulo. Segundo o último Sinase, em 2012 havia 20.532 adolescentes em medidas socioeducativas de restrição e privação de liberdade no Brasil, número correspondente a 0,10% da população de 12 a 21 anos.

A alma que pecar, essa morrerá (Ez. 18)

O ECA estabelece também que a responsabilidade pela proteção de direitos dos mais jovens deve ser compartilhada pelo Estado, família e sociedade. Mas é à Bíblia que o deputado Benedito recorre para apoiar o argumento que fundamenta sua proposta de PEC: “A uma certa altura, no Velho Testamento, o profeta Ezequiel nos dá a perfeita dimensão do que seja a responsabilidade penal. Não se cogita nem sequer a idade. ‘A alma que pecar, essa morrerá’ (Ez. 18). A partir da capacidade de cometer o erro, de violar a lei, surge a implicação: pode também receber a admoestação proporcional ao delito – o castigo. Nessa faixa de idade, já estão sendo criados os fatores que marcam a identidade pessoal e surgem as possibilidades para a execução do trabalho disciplinado. Ainda referindo-nos a informações bíblicas, Davi, jovem modesto pastor de ovelhas, acusa um potencial admirável com o seu estro de poeta e cantor dedilhando a sua harpa, mas, ao mesmo tempo, responsável suficientemente para atacar o inimigo pelo gigante Golias, comparou-o ao urso e ao leão que matara com suas mãos”.

Nem todos os deputados favoráveis à PEC, porém, votaram movidos pela visão bíblica do colega do PP. Gabriela Ferraz, advogada do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), aponta motivos mais terrenos por trás dos votos: “Muitos deputados têm financiamento de gestores de penitenciárias privadas e empresas de segurança pública. ‘Eu pago sua campanha e você vira meu funcionário, meu representante, cumpre minhas tarefas.’ Assim como foi feito com a educação e a saúde, a gente sucateia o público pra dizer que o privado é muito melhor. E a penitenciária privada surge nesse contexto. Interessante trazer a guerra às drogas, a redução da maioridade bem quando se discute as penitenciárias privadas no Brasil. Essas penitenciárias privadas, por contrato, precisam estar cheias. Quanto mais presos, maior o lucro, como mostrou o documentário da Pública. A gente precisa entender que o deputado está sendo pago pra isso. Assim como a indústria bélica força a queda do Estatuto do Desarmamento. Estamos falando de muito dinheiro. É importante lembrar também que existem outros 38 projetos de lei em trâmite que, de alguma forma, preveem a maior penalização do adolescente”.

A Pública bateu à porta da maioria dos 42 deputados que votaram a favor da redução na Câmara dos Deputados, em Brasília. Além de querer conhecer seus argumentos, queria saber se havia um plano para incluir esses adolescentes em um sistema prisional que hoje conta com um déficit de mais de 200 mil vagas, além de ser mundialmente reconhecido por inúmeras violações de direitos humanos, como aPública já mostrou em diversas reportagens (linkadas ao lado). E com uma taxa de reincidência criminal em torno de 70%, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). De acordo com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), “as taxas de reincidência nas penitenciárias ultrapassam 60%, enquanto no sistema socioeducativo se situam abaixo de 20%”.

Apenas quatro deputados aceitaram falar, e um, Bruno Covas (PSDB), respondeu via SMS enviado pela assessora de imprensa. A mensagem diz: “O deputado tem a seguinte opinião: acha que o tema deve ser discutido. Deve ser tema de debate. Por isso votou pela admissibilidade. Uma oportunidade para ouvir especialistas contrários e especialistas favoráveis à redução da maioridade. Desse modo, a comissão especial pode chegar a uma conclusão equilibrada e justa”.

Como antecipou esta matéria do site Vaidapé, Bruno foi um dos deputados a votar a favor da PEC que obtiveram financiamento de empresas possivelmente interessadas na privatização de presídios. Na prestação de contas divulgada pelo TSE, aparecem como doadoras a empresa Copseg Segurança e Vigilância Ltda. e Grandseg Segurança e Vigilância Ltda., com doação total de R$ 20 mil. Já o pastor evangélico João Campos (PSDB-GO) recebeu R$ 400 mil das empresas Gentleman Segurança Ltda. e Gentleman Serviços Eireli. Felipe Maia (DEM-RN) recebeu doações de R$ 100 mil da empresa Gocil Serviços de Vigilância e Segurança Ltda. E, de forma mais expressiva, o deputado Silas Câmara recebeu doações de R$ 200 mil de uma empresa chamada Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda., que também doou R$ 400 mil para sua esposa, Antonia Lúcia Câmara (PSC-AC) e R$ 150 mil para a filha, Gabriela Ramos Câmara (PTV-AC).

A empresa gere presídios privatizados e é responsável pela administração de seis unidades prisionais só no Amazonas, estado do deputado. No Tocantins, ela administra outras duas unidades. A empresa administra também uma unidade no Mato Grosso em parceria com outras empresas e o Estado (PPP). Procuramos Silas Câmara em seu gabinete e através de inúmeras ligações, mas não conseguimos entrevistá-lo.

Felipe Maia foi o único entre os deputados citados acima a receber a Pública em seu gabinete. O deputado disse que não acredita que a redução da maioridade penal seja a solução para a segurança pública no Brasil, “longe disso”, mas que esta se justifica “pelo número de criminosos ou de jovens delinquentes que hoje têm como realidade a pena socioeducativa de três anos sem registro do delito”. Questionado sobre qual seria o plano para abrigá-los no sistema penitenciário, ele foi claro: “Eu sempre defendi e defendo a privatização do sistema prisional porque acho que o Estado não tem condições de arcar com os custos. Existe a possibilidade de transformar os presídios em empresas em que você cobra do concessionário a ressocialização do preso, a não fuga, a não entrada de celulares. Aquilo tem que dar lucro”. E continua: “Como você vai deixar solto um jovem que mata um pai de família porque o sistema prisional está falido? Vamos resolver os presídios!”. Ele atribui a volta da PEC à “coragem do presidente da casa, Eduardo Cunha, em trazer matérias polêmicas como a terceirização, a reforma política e a redução da maioridade”.

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