Projeto do novo Código cria mercado da pena
Por Marcelo Semer
A calúnia do jornalista será punida com até seis anos de prisão – muito mais, por exemplo, que manter alguém em cárcere privado por duas semanas.
A caça profissional de animais silvestres será quase tão grave quanto o homicídio – sendo que apenas perseguir o bicho já é suficiente para caracterizar o crime.
Promover a briga de galo vai dar mais cadeia do que lesionar uma pessoa e incapacitá-la para o trabalho.
Falar sobre o desequilíbrio das penas no projeto do Código Penal é quase como chutar cachorro morto.
Basta ter paciência para ler - se o receptador, por exemplo, tiver essa disposição, certamente vai admitir perante o juiz que praticou ele mesmo o furto, para receber uma pena menor.
Mas o projeto está longe de se distinguir apenas por esses equívocos.
O texto apresentado no Senado está imbuído de um absoluto senso de ubiquidade, levando o direito penal a tentar resolver quase todo o tipo de conflito. Bem distante assim do ideal que os penalistas costumam chamar de ultima ratio.
O projeto passa a punir criminalmente o cambismo, incorpora a antiga contravenção de perturbação de sossego e estabelece até mesmo pena para o fornecedor que der preferência a um cliente na frente de outro. Se der certo, as filas dos restaurantes não serão as mesmas.
Mas acreditar na eficácia do direito penal para evitar a prática de crimes é o triunfo da esperança sobre a experiência – prometer o que não vai ser entregue. Como a proposta de tipificar o terrorismo praticado com “armas de destruição em massa” durante grande evento esportivo, na expectativa de que por causa disso nada atrapalhe o bom andamento da Copa de 2014.
A ânsia de levar o direito penal à eficácia total fez o projeto contemplar inclusive a barganha, que promete transformar em um ‘mercado’ a aplicação das penas de prisão.
Importado de um direito com que o nosso não guarda nenhuma semelhança, a barganha se funda na ideia de um acordo de vontades que torna o processo praticamente desnecessário.
O réu confessa antes de serem ouvidas testemunhas e o promotor lhe oferece uma pena mínima.
O mercado da pena é marcadamente utilitarista e fragiliza a ideia de processo como garantia.
Torna o que sempre foi irrenunciável como disponível. E celebra a confissão como prova cabal, o que a doutrina custou anos de refinamento para combater.
Concede, ainda, um poder excessivo ao Ministério Público como senhor da pena, pois sua atuação normalmente vinculada passa a ser um ato de vontade. Além de confiar em demasia na capacidade de discernimento de réus em precária situação. Esquece, sobretudo, dos riscos do comodismo, que podem prejudicar até os objetivos da própria repressão.
Com o esvaziamento do processo, vai-se perdendo um dos últimos bastiões do controle do poder punitivo.
Os autores do projeto podem até ficar satisfeitos porque a “opinião pública” é em regra adepta de punições, encara o processo como impunidade e costuma entender que direitos humanos são inaplicáveis a quem comete crimes.
Mas como ensina Eugênio Raul Zaffaroni, um poder punitivo sem controle é o primeiro passo para o autoritarismo. E daí para a barbárie. (Fonte: aqui).
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Em junho, publiquei aqui análise de autoria de Luiz Garcia sobre a proposta de novo Código Penal. Lá, deixei o seguinte comentário:
"Pode ser um projeto e tanto, como enfatiza o articulista, mas convém aguardarmos, inclusive para saber se serão adotadas certas práticas, como:
.enquadramento do crime de corrupção como crime hediondo, e
.punição de pessoas jurídicas corruptoras (empresas, sócios e dirigentes).
Espera-se, também, que o novo código estabeleça tratamento mais enérgico relativamente a crimes ambientais (o contrabando de madeira, por exemplo, é considerado, pela legislação em vigor, como de baixo potencial ofensivo - constituindo, na prática, um estímulo ao crime)."
Não tive acesso à proposta, mas as observações do juiz Marcelo Semer deixam clara a necessidade de um amplo debate.
"Pode ser um projeto e tanto, como enfatiza o articulista, mas convém aguardarmos, inclusive para saber se serão adotadas certas práticas, como:
.enquadramento do crime de corrupção como crime hediondo, e
.punição de pessoas jurídicas corruptoras (empresas, sócios e dirigentes).
Espera-se, também, que o novo código estabeleça tratamento mais enérgico relativamente a crimes ambientais (o contrabando de madeira, por exemplo, é considerado, pela legislação em vigor, como de baixo potencial ofensivo - constituindo, na prática, um estímulo ao crime)."
Não tive acesso à proposta, mas as observações do juiz Marcelo Semer deixam clara a necessidade de um amplo debate.
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