Peter Kuper. (EUA).
terça-feira, 31 de agosto de 2021
ELES DISSERAM E/OU CANTARAM
AFEGANISTÃO: O ÚLTIMO VOO
DUAS DO DIA
O VAZIO EXISTENCIAL DO NOSSO CONFORMISMO BOVINO NO FILME 'ANIMAL POLÍTICO'
Ela tem tudo o que se desejaria para uma vida feliz e confortável. Teve uma infância cercada de presentes e viagens a Disneylândia. Amada por todos, tem uma família amorosa e adora fazer compras. Também adora esportes, joga vôlei e vai regularmente na academia de ginástica andar na esteira. Tem uma intensa vida social participando de festas, churrascos, indo a restaurantes e baladas. Só que há um pequeno detalhe: ela é uma vaca.
Uma verdadeira vaca, preta e branca, no mundo humano, convivendo com humanos e fazendo tudo o que um humano faz. Mas ninguém ao redor dela acha estranho. Porém, ninguém sabe que a vaca sente falta de alguma coisa. Em seus diálogos filosóficos interiores, a vaca tenta encontrar a explicação para um profundo vazio existencial que a persegue, mesmo nos momentos mais felizes.
Em sua estreia com longa-metragem, o cineasta brasileiro Tião conta no filme Animal Político (2016) essa história nada verossímil através de uma estética onírica, surrealista que supera o absurdo. Transforma a célebre frase de Aristóteles de que o homem é um animal político, em uma fábula cuja vaca é a principal alegoria: sua condição bovina é a antítese da consciência política – não compreende sua condição bovina conformista, de respeitar rotinas e viver sem que nada mude.
Sua rotina é preenchida pela luta contra o tédio que se traduz nesse vazio existencial interior. O problema é que cabeleireiro, shopping center e balada criam ainda mais tédio. Quer mudança, mas sempre volta para o lugar de segurança.
Animal Político flana por temas gnósticos, favorecido pela sua narrativa onírica e surreal que abre espaços para esse tipo de reflexão: a condição de alienação e a própria condição da vaca como uma estrangeira que perambula entre humanos: ela é “bovinamente” conformista, porém, a sua condição é naturalmente de estranhamento – não do entorno das pessoas de seu relacionamento, mas da própria protagonista com a sociedade.
Também Animal Político leva a narrativa para reflexões entre as conexões entre a sociedade de consumo e uma certa noção de felicidade imposta por ela: a felicidade como uma meta abstrata, um produto escasso e exclusivo que é oferecida para que todos se tornem dignos do amor – uma meta tão abstrata que produz o efeito colateral da sensação do vazio e do Nada. Tema sartriano por excelência, cuja fenomenologia é a angústia.
Tião leva até às últimas consequências uma metáfora que, colocada em movimento, transforma-se numa alegoria. Embora não seja uma produção grandiosa, presume-se as dificuldades para a realização das cenas que exigiram colocar o enorme bovino dentro de restaurantes, sobre uma esteira ergométrica em uma academia ou dentro de um shopping.
“O filme inteiro foi muito difícil. A questão da vaca envolveu vários níveis: a produção precisava pegá-la muito cedo, arrumar o transporte adequado, ter a autorização dos veterinários para transitar com ela (...) Às vezes a gente queria que ela ficasse parada, ou caminhasse de um ponto ao outro, e isso poderia demorar horas. Então a gente tinha uma porção de material bruto sem importância, até aparecer uma joia. Do nada, ela fazia exatamente o que a gente queria, e dava certo. Às vezes a gente pensava que a cena seria muito demorada, e ela fazia exatamente o que a gente queria logo de cara. A gente quase duvidou: será que ela tem uma consciência? De vez em quando a equipe ainda estava preparando a cena, mas ela estava na posição certa, esperando. Fazia silêncio, ela percebia a mudança de clima e começava a agir.
Apesar da aparente reflexão densa e existencial, Animal Político leva tudo com humor sutil em cenas nas quais o absurdo até arranca risadas de nós. Como Tião afirma em entrevistas, “o filme vai de Sessão da Tarde a Dostoievski e Nietzsche”.
O Filme
As primeiras cenas de Animal Político são magrittianas: dois homens de terno e gravata e sem cabeça caminham por uma paisagem árida sob o som sibilante do vento. Até se encontrarem e pararem um diante do outro. Por razões óbvias, nada falam um para o outro.
É a primeira metáfora do filme: a incomunicabilidade. Que será o drama da vaca protagonista (Rodrigo Bolzan) que faz um monólogo interno sobre o seu vazio existencial, mas é incapaz de expressar essa sensação com as pessoas ao redor que a amam.
Assistimos a imagens que simulam velhas fitas VHS que mostram a infância e juventude felizes da protagonista. Em voice over acompanhamos o seu diálogo interno. Algumas vezes sente-se culpada por ter pensamentos tão negativos apesar da sua vida cercada de amor e conforto material.
O episódio da festa das trocas de presentes natalinas (a vaca ganha uma sineta para carregar no pescoço) é a gota d’água: a vaca decide mergulhar no conhecimento humano através dos livros para encontrar uma reposta. Vemos imagens dela puxando um carrinho repleto de livros em uma biblioteca.
Sem encontrar uma resposta nos livros, decide por si própria se afastar da sociedade e partir para uma jornada naquela região inóspita que vimos na abertura: abandonando o conhecimento racional, a vaca pretende agora encontrar a iluminação espiritual no deserto.
Há um interlúdio na narrativa que se soma aos enigmas simbólicos do filme: o conto da “Pequena Caucasiana” (Elisa Heidrich) – diferente da vaca integrada à sociedade, acompanhamos uma naufraga isolada em uma ilha. Uma rica e bela garota, nascida numa família aristocrática de uma linhagem de classes dominantes (das capitanias hereditárias à moderna elite de banqueiros) que, mesma no isolamento, não perde o seu, por assim dizer, DNA da elite: “Às vezes me dá um frio na barriga do que vou encontrar lá fora... e se os pobres não tiverem mais cáries?... como vou saber distinguir quem é nobre e quem é pobre?...”.
O deserto e o vazio – alerta de spoilers à frente
Corta para a viagem espiritual da vaca através do deserto, no momento mais icônico, irônico e até mesmo metalinguístico. Após caminhar sobre uma senda de livros abertos com as páginas tremulando ao vento, chega ao final e encontra a resposta tão procurada: a verdade e a luz estão em um simples manual de regras da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. Aquelas normas tão conhecidas nos meios acadêmicos, que normatiza a formatação de dissertações, teses e livros.
Metalinguístico: as normas ABNT são o único ponto comum em todos os livros nos quais a vaca procurou a resposta para o seu vazio existencial.
Irônico, porque a resposta ao vazio é a causa da angústia que gera a sensação do Nada no consumo: Natal, shopping, esteira ergométrica, balada, compras e até mesmo o amor se equivalem a um denominador comum: são todos produtos à venda no grande mercado em que se transformou a sociedade.
Por isso, mais uma vez, a “iluminação espiritual” produz tédio. Agora, no deserto. O que faz retornar à ordem, com a protagonista bovina voltar à civilização.
É a angústia existencial sartreana trazida para a sociedade de consumo: se tudo se equivale, qual opção é a correta? Como explicar a sensação de vazio diante do Nada com toda variedade de ofertas e opções que a sociedade promove nos meios de comunicação?
O vazio existencial e o vazio do estômago daqueles que não conseguem consumir acabam se equivalendo na lógica perversa do mercado: o desejo frustrado de muitos irá agregar valor aos produtos dos poucos que podem efetivamente consumir – apesar do vazio existencial, mesmo assim se considerarão “dignos do amor”, privilegiados ao se sentirem parte dessa minoria “feliz”. - (Fonte: Cinegnose - Aqui).
Ficha Técnica |
Título: Animal Político |
Diretor: Tião |
Roteiro: Tião |
Elenco: Rodrigo Bolzan, Elisa Heidrich, Victor Laet |
Produção: Sonamos, Distruktor, Trincheira |
Distribuição: Vitrine Filmes |
Ano: 2016 |
País: Brasil |
segunda-feira, 30 de agosto de 2021
ELES DISSERAM E/OU CANTARAM
A VACINA E A INJEÇÃO NA TESTA
"Em 24 de junho, o twitter oficial do senador José Serra (PSDB-SP) postou uma mensagem preocupante: o senador estava internado com covid, mesmo tendo sido vacinado duas vezes. O mais preocupante da mensagem, contudo, não era o estado de saúde física de José Serra, mas o que a nota revela da saúde mental coletiva. Sem noção de ironia, o tweet explica que o ex-ministro da Saúde ficará internado porque isso “garante também a segurança” de pessoas “ainda não vacinadas.” É isso mesmo, senhores: o virtuoso José Serra, que se contaminou com a covid depois de duas doses da CoronaVac, aceitou ser internado para proteger os não-vacinados que carecem do mesmo privilégio de contrair covid só depois da imunização.
Né....
Ana Maria é da época em que o grande objetivo de vacinas era imunizar, mas isso é passado. Também é coisa do passado a imunidade natural, ainda que ela seja comprovadamente mais robusta do que a imunidade (não) adquirida com as vacinas da covid. Mas como qualquer ferramenta orgânica e não-patenteável, a imunidade natural está gradualmente deixando de ser vista como ciência para se transformar em superstição. Por outro lado, tanto faz que a vacina da covid não imunize –ninguém se importa. Basta continuar usando o verbo “imunizar” que, se ele não mudar a realidade, uma hora a realidade o muda. E aliás já mudou, como mostrei no artigo da semana passada, onde conceitos antigos foram editados para se ajustar a uma nova realidade científico-comercial. Esse é mais um dos milagres do capitalismo de resultados: se o resultado não for o que você esperava, dobre a meta (ao meio).