terça-feira, 4 de maio de 2021

TRAGAM-ME A CABEÇA DE CARMEN MIRANDA

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Em 'Tragam-me a Cabeça de Carmen M.', Catarina Wallenstein agrilhoa* nosso olhar mesmo quando tudo parece não passar de um balão de gás prestes a estourar


Carmen Miranda nos escombros do Brasil

Por Carlos Alberto Mattos

Que lugar ocuparia Carmen Miranda no Brasil de hoje? É o que parece se perguntar o novo filme de Felipe Bragança, assinado em conjunto com sua mulher, a atriz portuguesa Catarina Wallenstein. Seria ainda um ícone modernista e (pré-)Tropicalista? Ou seria uma Joana-ninguém largada desfalecida numa rua da Lapa junto a bananas podres? Tragam-me a Cabeça de Carmen M. pode ser visto como uma especulação sobre os deslocamentos vividos pela Brazilian Bombshell transpostos para a atualidade.

A história de Maria do Carmo Miranda da Cunha foi feita de deslocamentos brutais. Com menos de um ano de idade, veio com a mãe de uma modesta freguesia de Portugal para o Rio de Janeiro. O sucesso no samba brasileiro a levou à Broadway e de lá a Hollywood, onde viveu até a morte. Felipe e Catarina refazem parte desse percurso trazendo a atriz portuguesa à Lapa – onde Carmen morou dos 6 aos 16 anos – no papel de Ana para supostamente fazer um filme sobre a Pequena Notável.

Mas o que Ana encontra aqui é um mal-estar generalizado, que o samba dos bares não pode disfarçar. São tempos de governo Temer, incêndio do Museu Nacional, campanha eleitoral de 2018, tiros nos morros cariocas e o baixo astral descendo suas asas negras sobre a cidade. Ana se esforça para afinar sua sensibilidade com a de Carmen sob a batuta de uma cineasta exigente (Helena Ignez), mas que se move numa cadeira de rodas e compartilha do mesmo incômodo geral. "O Brasil de hoje em dia só pode ser cantado como piada – ou como autópsia", diz ela.

Duas narrativas correm em paralelo. Em preto e branco, Ana vive a cidade, ensaia seu texto e canta sem sotaque lusitano. Em cores, Catarina é uma possível versão atualizada e mumificada de Carmen, depois de socorrida e restabelecida por um travesti e seus amigos num pequeno hotel da Lapa. Mas essa dualidade não é uma regra. Na ficção experimental-musical-tropical assumida como princípio de construção, os módulos narrativos são intercambiáveis. O filme flerta com a colagem, citada diversas vezes, e com o musical godardiano de natureza basicamente informal.

A perspectiva do fracasso na representação está sempre presente. "Nem a Carmen era a Carmen", entende Ana, em meio ao desencanto e ao cansaço. Ainda assim, fica garantida uma espécie de grand finale nas ruínas glitter do Cassino da Urca, cujos escombros foram recobertos de dourado para Catarina e o sambista Marcos Sacramento.

Tragam-me a Cabeça de Carmen M. tem a liberdade e o descompromisso típicos dos filmes de Felipe Bragança. Soa na maior parte do tempo como uma diversão entre amigos (e família), embora interessada em dizer coisas relevantes sobre um certo estado da cultura brasileira.

Seria pouco dizer que a bonita e intrépida Catarina Wallenstein é o corpo e a alma do filme. Sempre a meio caminho entre a paródia e o engajamento visceral, ela ocupa cada centímetro da tela. Quando canta, pode ser feroz em Sonho Juvenil, de Jovelina Pérola Negra, ou sestrosa em Recenseamento, de Assis Valente. Talvez mais perto de Ana Karina que de Carmen Miranda, a moça agrilhoa nosso olhar mesmo quando as coisas parecem não passar de um balão de gás prestes a estourar.  - (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).

(Tragam-me a Cabeça de Carmen M. está nas plataformas do Canal Brasil, Now, Vivo Play e Oi Play).

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(*  =  agrilhoa - prende com grilhões; amarra) 

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