Por Léa Maria Aarão Reis
Há uma semana celebrou-se a data de nascimento do geógrafo, escritor, jornalista, advogado e professor Milton Santos, que, vivo hoje estaria com 95 anos de idade. Nunca será pouco lembrar sua obra, o pensamento geográfico levado ao centro do pensamento social do país e a contribuição que deu à cultura e ao conhecimento dos brasileiros a partir de uma época em que muitos apressados festejavam o fim da História.
A ideia de ''descolonizar é pensar o mundo com os próprios olhos'' é uma das principais reflexões referenciais da obra do professor que foi mestre de jovens das gerações dos anos 60/70. Muitos nem chegaram a ser seus alunos formais, mas se inspiraram e se posicionaram progressistas, solidários e radicais de esquerda lendo os livros que escreveu e o ouvindo nas inúmeras longas entrevistas que concedia.
Sempre com o sorriso afetuoso, sereno e com a simplicidade que hoje faz falta a alguns dos seus colegas cientistas e analistas, o baiano nascido na cidade de Brotas de Macaúbas está presente num documentário valioso, do diretor Silvio Tendler, intitulado Encontro com Milton Santos - o mundo global do lado de cá, disponível no catálogo do Youtube/Caliban Conteúdo e Cinema.
No filme, de 2008, o tema é a globalização do ponto de vista dos que mais sofreram o seu impacto; os países colonizados. O doc é conduzido por Tendler a partir de longa entrevista, de 2001, na qual o professor se refere ao novo sistema que cria maior concentração de riqueza entre os países que já são ricos e distribuiu e garante aos pobres apenas mais pobreza. Cinco meses depois de filmada a conversa, o professor faleceu.
Como o conceito de espaço é referência central do geógrafo, nessa conversa que transcorre do 'lado de cá', ele também desenha o painel das desigualdades (que desde então aumentaram e se radicalizaram) entre o norte rico e o mundo do sul saqueado gradativamente pelos 'lá de cima'. Uma de suas visões, certeira e crítica ao pensamento econômico único e perverso é a de que ''haverá explosões em vários continentes porque a globalização não será uniforme''.
No filme se sucedem sequências do trabalho escravizado produzido em várias partes do mundo e vendido nos Estados Unidos com lucros gigantescos. Excursões de turistas estrangeiros à favela da Rocinha. O começo das organizações ligadas ao Movimento dos Sem Terra. O despontar da nova e vitoriosa organização social, política e econômica da China que se desenhava. O escritor Eduardo Galeano sobre nós, latinoamericanos: ''Somos a triste caricatura dos Estados Unidos e dos europeus porque não descobrimos novas formas de pensar o mundo''.
Diversas entrevistas com moradores de comunidades do estado do Rio e o comentário de Milton Santos sobre o rap em Ceilândia: ''Eles fazem cultura e política ao mesmo tempo''. E também: ''Mas nós damos mais importância à violência que aos valores de solidariedade dos habitantes das periferias''.
O cartaz de lançamento do documentário provoca: ''Uma proposta libertária para estes dias tumultuados''.
A ilusão de que a mera informação globalizada contribuiria para maior conhecimento das gentes, e em paralelo o desleixo pela humanização e disseminação do conhecimento, esses sim, que deveriam ser de domínio global, são temas que pontuam a conversa com o professor.
E a necessidade (premente, sempre) de dar mais poder aos pobres e não renunciar à resistência e à esperança. Aspectos mais que nunca a serem considerados atuais no Brasil.
Milton Santos não era contra a globalização. Era contra o modelo de globalização vigente no mundo ao qual chamava de 'globalitarismo'. Ele enxergou a possibilidade de construção de uma outra realidade, que considerava "mais justa e mais humana" e abarca o prognóstico otimista sobre o futuro da humanidade. Revela-se o admirador que foi, da obra de Josué de Castro, de Sartre, Frantz Fanon, Ruy Barbosa e Castro Alves.
Pensador maior da história da Geografia no Brasil e um dos maiores do mundo, o professor que lecionou na USP, na França e em diversos países, e recebeu o Prêmio Vautrin Lud, o Nobel de Geografia, em 1994, considera a existência de três mundos num só.
A percepção do mundo globalizado como uma fábula. O mundo real como uma perversidade. E a possibilidade de um mundo globalizado de outra forma, em bases técnicas postas a serviço de fundamentos sociais e políticos.
Na apresentação do documentário, musicado no seu final com a bela composição Terra, de Caetano Veloso, Tendler lembra as palavras de Sartre no prefácio de Os condenados da Terra, de Fanon: ''O que é horrível é apenas um momento do longo conhecimento histórico. A esperança sempre foi uma das forças dominantes das revoluções e das insurreições''.
Oportuno rever o documentário com Milton Santos neste momento trágico do Brasil. - (Para continuar, clique Aqui).
Nenhum comentário:
Postar um comentário