Vivemos numa era de charlatões? Já se disse muitas vezes que escritores possuem sensibilidade particular para as mudanças culturais de seu tempo. Portanto, a publicação em língua inglesa, nos últimos anos, de dois romances intitulados Charlatans – um de Robin Cook, outro de Jezebel Weiss – pode ser um sinal de alerta de que isso esteja acontecendo. Talvez esses livros sejam um aviso para que tomemos cuidado com esses indivíduos que, em número crescente, prometem o que não podem cumprir, arrogam-se qualidades que não possuem ou oferecem produtos nada confiáveis, como notícias falsas, remédios suspeitos e trapaças online. A lista desses mestres da ilusão (para usar uma expressão bem-educada) pode incluir também alguns evangelizadores, curandeiros e políticos, bem como, convém não esquecer, certos intelectuais.
O que explica a proliferação dos charlatões em nosso tempo? Uma das respostas possíveis é que ela resulta das pressões e da sedução exercidas pelos meios de comunicação, sobretudo a televisão e as redes sociais. Mas em que medida essa tendência, essa “charlatanização” da vida pública (para cunhar, agora, um termo pesado) deve nos alarmar?
Para um historiador como eu, o que experimentamos hoje parece o episódio mais recente de uma história bem mais longa de indivíduos que estão conscientemente enganando outros ou iludindo a si próprios. Os gregos antigos tinham uma palavra para esse tipo de pessoa, kopidos, que significa “impostor”. Sócrates afirmou que os sofistas de sua época, que declaravam possuir conhecimento de tudo (e cobravam por seus cursos), eram impostores. Antes deles, Pitágoras, que, além de matemático, era também uma espécie de guru, já havia sido descrito por outro filósofo como “o príncipe dos impostores”.
Na Itália renascentista, a palavra “charlatão” era empregada para descrever os vendedores de remédios falsos que praticavam seu comércio nas praças públicas, como a Piazza San Marco, em Veneza. O termo utilizado em italiano para caracterizá-los, ciarlatano, derivava de ciarlare, “tagarelar”, já que as vendas de seus remédios “milagrosos” evidentemente dependiam da eloquência e do carisma do vendedor. A essa conversa de vendedor juntavam-se recursos teatrais. O charlatão postava-se sobre um palco, e não apenas para ser visto pela multidão, mas também para demonstrar o poder de seus remédios em supostos membros do público (provavelmente seus assistentes). Alguns brincavam com cobras, se deixavam picar e, depois, diante de todos, pareciam curar-se com seus produtos maravilhosos. Os assistentes por vezes vestiam-se como tipos da commedia dell’arte, valendo-se em especial do figurino do Arlequim trapaceiro.
O exemplo dos italianos foi seguido em outras partes, sobretudo no século XVIII, época da primeira sociedade de consumo alimentada pela propaganda e da introdução, por parte de alguns curandeiros, da música e dos princípios da eletricidade em seu repertório. Johann Andreas Eisenbarth, James Graham e Franz Anton Mesmer foram três dos principais “empreendedores” (outra designação bem-educada) no campo da medicina.
Na Alemanha, Eisenbarth (1663-1727) empregava atores e músicos na hora de vender seus remédios. Seu sucesso foi a um só tempo satirizado e imortalizado numa canção popular, Eu sou o Doutor Eisenbarth, na qual, parodiando o Novo Testamento, o “médico” se dizia capaz de “fazer o cego andar e o aleijado ver”. No século XX, a Europa Central ainda se lembrava dele com suficiente clareza para torná-lo protagonista de um romance e de uma ópera, Charlatão, do compositor tcheco Pavel Haas.
O segundo membro desse trio, Graham (1745-94), depois de abandonar a faculdade de medicina em Edimburgo, especializou-se em terapia sexual, sobretudo na cura da impotência masculina e da infertilidade feminina. Praticava seu ofício num Templo da Saúde e do Hímen, situado em um bairro elegante de Londres, onde instalou o que chamava de Leito Celestial. Nele, os casais podiam copular tranquilamente, ao som de uma “música suave”, desde que se dispusessem a pagar 50 libras (cerca de 3,5 mil libras em valores atuais, ou 27 mil reais).
Em Viena e Paris, Mesmer (1734-1815), de longe o mais famoso dos três, declarava ter descoberto um tipo de energia que chamou de “magnetismo animal”, concebida como uma espécie de fluido. Ele encenava curas valendo-se de ímãs ou pedindo aos pacientes que segurassem barras de ferro colocadas em cubas de ácido sulfúrico diluído. Além disso, qual um hipnotizador, ao som de uma música, olhava fixamente para os olhos dos pacientes e os tocava. Mesmer, que foi amigo de Mozart, certamente merecia ser tema de uma ópera, como foi Eisenbarth.
Todos os três se tornaram personagens cômicos, assim como Giuseppe Balsamo, dito Alessandro, “conde” de Cagliostro, outro curandeiro do século XVIII, cuja carreira forneceu o enredo para óperas-bufas. Hoje em dia, parece óbvio que eles não passavam de fraude. Contudo, como perceberam os historiadores da medicina, o problema de distinguir as curas reais das falsas nunca desaparece. Médicos profissionais seguem acusando praticantes da medicina alternativa de fraude – e vice-versa. Por vezes, Mesmer é descrito não como um falso médico, mas como pioneiro da psiquiatria.
Na fronteira entre religião e medicina, Peter Popoff, pregador e curandeiro teuto-americano ativo desde os anos 1970, afirmou certa vez que todo aquele que fizesse doações à sua igreja receberia um crédito de Deus em sua conta espiritual. Disse ainda que Deus lhe revelava os nomes e as enfermidades das pessoas presentes a seus cultos, a fim de que ele pudesse curá-las. Por ironia, seu método – um fone de ouvido por meio do qual a esposa lhe soprava a informação – foi revelado por outro ilusionista profissional, um mágico chamado James Randi. Depois desse contratempo, Popoff, hoje com 74 anos, que se descreve como profeta, dedicou-se a fazer comerciais de tevê para uma água milagrosa, a Miracle Spring Water.
Uma longa série de messias tem sido prometida para quando o fim do mundo se aproximar, messias verdadeiros que derrotarão os falsos, os quais também aparecerão na mesma época. A questão é distinguir os verdadeiros dos falsos, e as esperanças dos fiéis continuam a ser sempre renovadas, assim como sua decepção.
Um exemplo dramático desse processo oferece-nos o messias judeu Sabbatai Zevi, rabino que viveu no Império Otomano em meados do século XVII, uma época de crise na Europa e no Oriente Médio, bem como de pogroms na Polônia, na Lituânia e na Ucrânia. Zevi conquistou seguidores na Alemanha, na Holanda, na Itália e na França. O governo otomano, no entanto, alegando que ele incentivava a revolta popular, ofereceu-lhe a escolha entre a morte e a conversão ao islamismo. O rabino preferiu a conversão. A despeito de sua apostasia, para nem falar nos quase quatrocentos anos passados desde então, Zevi continua tendo seguidores na atualidade.
Questões semelhantes acerca de líderes religiosos foram levantadas muito tempo atrás, no século XIII ou mesmo antes, quando circularam rumores sobre a existência de um livro intitulado Os Três Impostores (que seriam Moisés, Jesus e Maomé). Durante séculos, foi impossível encontrar o livro, que finalmente apareceu no século XVIII. Pode ser inclusive que tenha sido escrito nessa época, contribuindo com as ideias anticlericais do Iluminismo.
A história confirma a suspeita de que fundadores de novas religiões são especialmente vulneráveis à acusação de que sejam impostores ou charlatões. No Reino Unido, um exemplo é John Wesley (1703-91), o fundador do metodismo, descrito como charlatão por um bispo importante de seu tempo. Wesley era decerto um showman cujos sermões dramáticos afetavam profundamente as emoções de seus ouvintes, assim como um apoiador daquilo que chamava de “medicina natural” e um detrator dos médicos profissionais.
Nos Estados Unidos, Joseph Smith (1805-44), fundador do mormonismo, Mary Baker Eddy (1821-1910), criadora da Ciência Cristã (que afirmava ser a doença uma ilusão), e L. Ron Hubbard (1911-86), fundador da Igreja da Cientologia, já foram, todos eles, descritos como charlatões. Leitores brasileiros não terão dificuldade para acrescentar seus próprios exemplos. Ao menos alguns dos charlatões apresentados aqui, Mesmer entre eles, poderiam ser considerados também genuínos curandeiros da alma, embora falsos no tocante ao corpo.
A meio caminho entre medicina e religião encontra-se aquilo que chamamos de psiquiatria. A partir de Sigmund Freud, os psiquiatras tornaram-se suscetíveis a ser ou idolatrados como santos ou acusados de serem uma fraude. Os seguidores do criador da psicanálise chegaram a ser comparados a membros de uma seita religiosa, na qual eram submetidos a iniciações e excomunhões – um ensaio publicado por Carl Gustav Jung chama-se justamente Psicoterapeutas ou o Clero. Freud, Jung e, mais recentemente, o psiquiatra escocês R. D. Laing já foram caracterizados por seus críticos como charlatões, embora nenhum dos três tenha ido tão longe em suas postulações quanto Wilhelm Reich.
Reich foi um seguidor nada ortodoxo de Freud, filiado tanto à Sociedade Psicanalítica de Viena como ao Partido Comunista. Foi expulso das duas organizações antes de deixar a Áustria, em 1939, rumo aos Estados Unidos – não esperou para ver se seria preso pelos nazistas por ser judeu ou comunista. Na verdade, seu estilo de cura era mais aparentado ao de Mesmer que ao de Freud. Em vez de ouvir seus pacientes de costas para eles, à maneira da psicanálise ortodoxa, ele os encarava, olhava nos olhos deles e os tocava. Reich, que, como outros, iludia a si mesmo, pôs-se a acreditar, como Mesmer, que havia descoberto uma nova forma de energia – a “bioenergética”, ou o que batizou de “orgônio”. Afirmava, por exemplo, que o câncer podia ser curado se o paciente entrasse numa das “caixas orgônicas” que ele criara. O FDA, agência que regulamenta o uso de remédios nos Estados Unidos), que declarou, em 1947, que a cura postulada daquela forma era fraudulenta. Em 1957, Reich foi enviado à prisão, onde morreu oito meses depois, após sofrer um ataque cardíaco.
Acadêmicos e intelectuais muitas vezes desmascararam charlatões, em cujas fileiras, entretanto, podem ser encontrados representantes das duas espécies. Tanto quanto sei, o primeiro ataque a um colega acadêmico desse naipe foi feito por Descartes e tinha por alvo o polímata jesuíta alemão Athanasius Kircher (1602-80). Entre outras coisas, Kircher se dizia capaz de decifrar hieróglifos egípcios, mas fracassou miseravelmente na tentativa de fazê-lo. Desde essa época, o termo “charlatão” proliferou tanto dentro quanto fora das universidades.
('O médico charlatão' - Ian Steen)Em 1715, um catedrático alemão, Johann Burchard Mencke (1674-1732), publicou um livro com o chamativo título de A Charlatanice dos Sábios. Versão impressa das aulas proferidas pelo autor na Universidade de Leipzig, a obra oferece um relato vívido e hilário de como professores fazem propaganda de si mesmos e vendem seus produtos intelectuais valendo-se de métodos que são empregados ainda hoje, entre os quais trajes incomuns, títulos pomposos para si próprios e para seus livros, ataques violentos a outros acadêmicos e o hábito de dedicar suas obras a pessoas importantes. Tenho, no entanto, de admitir que esse livro, ainda que agradável, desperta a indelicada suspeita de que o próprio autor não estivesse inteiramente livre do vício que criticou de forma tão memorável. Afinal, o que venderia mais numa cidade universitária do século XVIII do que uma obra sobre a charlatanice dos eruditos?
Nos últimos vinte anos, o termo “charlatão” tornou-se popular em círculos intelectuais. A lista de conhecidos acadêmicos e pensadores descritos dessa forma, seja nos jornais ou em fofocas universitárias, inchou a ponto de incluir os nomes de, entre outros, Jacques Lacan, Jacques Derrida, Michel Foucault, George Steiner e Slavoj Žižek.
A política é uma área densamente povoada de charlatões, alguns dos quais se apresentam ou são apresentados também como messias. Como o carisma pessoal pode conduzir um indivíduo ao papel de líder (“carisma” é um termo da teologia que significa “graça” e foi apropriado pelos cientistas políticos), basta um passo para que o novo político carismático seja visto como um salvador. Ao menos por certo tempo. À esperança segue-se, em geral, a desilusão e, assim, mais cedo ou mais tarde, o messias passa a ser rejeitado como charlatão.
Pode ser útil distinguir, no caso da política, entre dois tipos de charlatão – o tradicional e o moderno. O tipo tradicional era simplesmente um impostor, como os que afirmavam serem descendentes de um ex-soberano, como ocorreu com os “falsos Dimitris” da Rússia do princípio do século XVII, que, um após o outro, se declararam filhos do czar Ivan, o Terrível. Alguns até fingiram ser o próprio Ivan, encarnando o mito do herói que se supunha morto, mas de fato estava apenas dormindo, pronto a reaparecer assim que necessário. Exemplos famosos de impostores desse tipo foram também os chamados “falsos Sebastiões”, que tiraram proveito do fato de o corpo de dom Sebastião, rei de Portugal morto em combate em 1578, no Norte da África, jamais ter sido encontrado. Ainda durante a República Velha, no Brasil, alguns apoiadores da monarquia continuavam a esperar pelo retorno de dom Sebastião.
O tipo moderno de charlatão político, que apareceu há cerca de duzentos anos, é aquele que faz aos eleitores promessas claramente impossíveis de cumprir. No fim do século XVIII, o radical inglês Thomas Paine chamou Napoleão de “o charlatão mais completo que já existiu”. No século XX, Benito Mussolini, mestre da ilusão, costumava deixar as luzes de seu gabinete, no alto do palácio da Piazza Venezia, em Roma, acesas a noite inteira, para que as pessoas pensassem que ainda estava trabalhando. Hitler oferece um exemplo ainda mais claro do charlatão carismático. Suas primeiras atuações políticas eram orientadas por um astrólogo e hipnotizador austríaco que se atribuía o nome de Erik Jan Hanussen, assassinado em 1933, pouco depois da ascensão de Hitler (que, parece, jamais se deu conta de que o astrólogo era judeu). Um exemplo recente de charlatanismo ocorreu durante a campanha do referendo sobre o Brexit, quando foram feitas aos britânicos promessas impossíveis de serem cumpridas – algo que eles só agora têm percebido, com sofrimento crescente.
Prometer o que não pode cumprir é o “risco ocupacional” do político profissional (quando não, para dizê-lo mais cinicamente, a sua razão de ser). “Charlatão” ou “vigarista” são palavras cada vez mais usadas para descrever esse tipo. Em seu livro A Arte da Negociação, Donald Trump comparou o presidente Ronald Reagan a um ator tão eficiente que apenas anos mais tarde os norte-americanos começaram a questionar se havia algo por trás do sorriso dele. Um dos filhos de Reagan, Ron, por sua vez, definiu Trump e sua família como “um bando de vigaristas”. Em 2011, a jornalista Barbie Latza Nadeau, colaboradora da revista Newsweek, fez a Silvio Berlusconi um elogio ambíguo, ao dizer que o então primeiro-ministro italiano não poderia ser considerado “um velho charlatão qualquer”. No Reino Unido, uma importante jornalista política, Polly Toynbee, recentemente descreveu Boris Johnson como “um charlatão dado a bravatas”.
A ascensão de charlatões é parte do preço a pagar pela democracia. Ao contrário de populistas autoritários, governantes autoritários tradicionais não precisavam de votos, prescindindo, portanto, de discursos e de outras formas teatrais de persuasão.
Constitui deformação profissional dos jornalistas exagerar, sobretudo nas manchetes, na postulação de que determinado acontecimento ou tendência significa uma reviravolta na história. Historiadores, como eu, preferem dar ênfase à continuidade – e essa é, claro, nossa deformação profissional. Mas será possível chegar a um veredicto equilibrado? Formular a questão de maneira mais precisa pode ajudar a respondê-la. O número de charlatões está de fato aumentando ou os críticos de novas tendências estão apenas se valendo desse termo emotivo (“charlatões”) para destruir aqueles com os quais não concordam?
O físico norte-americano Alan Sokal tornou-se uma celebridade depois de escrever um artigo parodiando o pensamento pós-moderno. O texto, porém, foi levado a sério e publicado no periódico Social Text, da Duke University Press, em 1996. Um ano depois, Sokal publicou (em coautoria com Jean Bricmont) um livro intitulado Imposturas Intelectuais, com capítulos dedicados a pensadores franceses, como Jacques Lacan, Julia Kristeva, Bruno Latour, Jean Baudrillard e Gilles Deleuze. O que mais irritou Sokal e o levou a escrever seu artigo foi o uso equivocado por não cientistas da linguagem científica e, em especial, da matemática. Mas, se tanto o uso equivocado da ciência quanto as críticas a isso estão agora aumentando, o motivo deve ser a crescente especialização intelectual.
Rápidos em desqualificar pronunciamentos de não especialistas que ousam invadir seu “território”, os especialistas às vezes se transformam em charlatões, acreditem eles ou não nas promessas que fazem ao público. Há pouco mais de um ano, o médico e microbiologista francês Didier Raoult afirmou que a hidroxicloroquina era um remédio eficaz para a Covid-19, mas sua conclusão não foi apoiada em testes clínicos aceitos pela comunidade científica. Ele teve mais sucesso em persuadir o público desinformado (incluindo os presidentes Trump e Bolsonaro), que deseja que a hipótese de Raoult seja verdadeira, do que seus colegas médicos, que levam os testes a sério.
A preocupação recente com charlatões está ligada também a mudanças nos meios de comunicação. É outra velha história. Os charlatões italianos originais faziam suas curas para um público postado bem diante deles. No século XVIII, a ascensão de curandeiros ao posto de celebridades contou com o barateamento do material impresso, incluindo-se aí anúncios, livros e periódicos. James Graham, em particular, fez uso muito eficaz da publicidade. No século XX, o rádio aumentou a popularidade de líderes políticos de estilos tão diversos como Hitler, com seus discursos vociferantes, e Franklin Roosevelt, que dava preferência ao intimismo de suas “conversas ao pé da lareira”.
O advento da televisão e, depois, das mídias sociais deu impulso, a um só tempo, aos charlatões e à denúncia de seus truques e bravatas. A televisão transformou a política num espetáculo de massa em que, para atrair votos, candidatos têm que transmitir a impressão de poder, firmeza e proximidade com o povo. Presidentes e primeiros-ministros precisam agora dar verdadeiro espetáculo, seja por escolha própria ou em obediência aos especialistas em relações públicas, incluindo-se aí as agências de publicidade, que passaram a vender políticos a eleitores. A primeira-ministra britânica Margaret Thatcher se aconselhou com a agência Saatchi & Saatchi sobre como melhorar sua imagem pública.
('O charlatão', por Bosch)Como os charlatões, os atores são ilusionistas profissionais, embora seja absurdo criticá-los por isso, a não ser, claro, que sigam atuando fora do palco. Mas é preocupante constatar que, a partir do fim do século XX, a política foi se tornando cada vez mais uma ocupação para atores aposentados – como Ronald Reagan e Arnold Schwarzenegger, nos Estados Unidos, a atriz pornô Cicciolina e o comediante Beppe Grillo, na Itália, a ex-estrela de cinema Jaya Bachchan, na Índia, e Alexandre Frota e Tiririca, no Brasil, para citar os mais destacados. Podemos adicionar Trump, ex-apresentador de reality show, à lista. Essa tendência nova e perturbadora sugere que os eleitores estão cada vez mais preocupados com a imagem dos candidatos do que com a realidade de suas políticas.
Assim como o mundo da política, o da religião transformou-se com as mudanças na mídia. Nos anos 1920, alguns pregadores construíram sua reputação com sermões radiofônicos. A partir da década de 1950, pregadores de uma nova espécie passaram a fazer uso da televisão em tal medida que ficaram conhecidos como televangelistas. Muitos deles, nos Estados Unidos, no Brasil e em outros lugares, enriqueceram graças às doações de milhões de espectadores, ou seja, de sua congregação invisível ou de seus fãs.
Também os acadêmicos foram afetados pela nova mídia, ou tiraram proveito dela. No Reino Unido, ficaram conhecidos como os “catedráticos da tevê”. Um dos exemplos mais notáveis foi o historiador A. J. P. Taylor, a cujas aulas eu costumava assistir em Oxford, antes de ele receber o primeiro telefonema de um estúdio de televisão. De Taylor, pode-se dizer que foi feito para a tevê, uma vez que era capaz de falar sem consultar apontamentos, fazia piadas frequentes, modulava a voz de acordo com o tema e apresentava argumentos provocativos. Era inevitável que os colegas de Oxford viessem a chamá-lo de charlatão.
Podiam estar parcialmente certos, assim como, em parte, estava certo o teórico canadense da mídia Marshall McLuhan, que se tornou uma espécie de guru e foi chamado também de “charlatão”, “fraude”, “vigarista”, ao dizer que “o meio é a mensagem” (teria sido mais correto, se bem que menos dramático, dizer que “o meio é parte da mensagem”). No caso da televisão, o meio tem a desvantagem de incentivar o político e o intelectual a se concentrar no estilo, em detrimento do conteúdo. Ela estimula as opiniões exacerbadas, o que produtores consideram resultar em “bom espetáculo”, em prejuízo da correção ou da moderação, mais aborrecidas. A tevê incentiva a ostentação.
No momento, assistimos à ascensão de um tipo ainda mais novo de político, evangelista e acadêmico – aquele que se adaptou a esta revolução do nosso tempo nas comunicações: o advento das redes sociais. Barack Obama e o papa Francisco fazem farto uso do Twitter, embora seja significativo que nenhum dos dois deva seu sucesso às redes sociais, como é o caso de muitas figuras conhecidas da atualidade. Por outro lado, foi graças ao Twitter e à difusão de notícias falsas nas mídias sociais que Trump e Bolsonaro arrebataram tantos seguidores.
No mundo dos negócios, as redes sociais transformaram certos consultores em celebridades. Tenham eles tomado ou não os pregadores como modelo, é significativo que esses consultores sejam conhecidos como “gurus do marketing”. Mesmos os intelectuais que antes deviam sua condição de celebridade a aparições frequentes em programas de tevê agora se tornaram blogueiros e estrelas das redes sociais.
Como aconteceu no caso da televisão, a nova mídia molda as mensagens que propaga. Certos presidentes hoje vociferam no Twitter como seus predecessores faziam no rádio. Acadêmicos e cientistas sentem-se tentados a oferecer frases de efeito a respeito de tudo – meu amigo Carlo Ginzburg, historiador italiano, chama de tuttologo (especialista em tudo) esse tipo de intelectual. Um grupo parecido existiu na Grécia antiga – os já mencionados sofistas –, mas, naquele tempo, seu único meio de comunicação era a voz, ao passo que hoje a mídia amplifica as vozes.
Na disputa por atenção, visões extremadas valem mais que a moderação, e ideias tresloucadas, como teorias da conspiração, mais que o bom senso. As novas mídias têm contribuído para criar e propagar novos tipos de charlatões, ajudadas pela disseminação de dúvidas sobre valores até agora tidos como certos (inclusive a verdade). Também nunca houve tantas oportunidades para o marketing pessoal como nesta era das redes sociais – oportunidades fartas para inflar a própria reputação como quem enche um balão. Sendo assim, nós poderíamos considerar os que criticam essa situação como sucessores de Burchard Mencke. A missão deles, assim como a do autor de A Charlatanice dos Sábios, é furar alguns desses balões. - (Fonte: Revista Piauí - Aqui).
(Peter Burke, historiador inglês, é professor emérito da Universidade de Cambridge. É autor de Uma História Social do Conhecimento - Zahar).
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