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Para começar de forma amena uma semana que se anuncia prenhe de tensão político-econômica.
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Cinema histórico e político tem destaque entre as pré-estreias do Festival Estação Virtual - 35 Anos de Cinema Brasileiro. A seguir, crítica sobre dois curtas e dois longas
O Magrão e as saúvas
Pedro Asbeg é o realizador do documentário Democracia em Preto e Branco, sobre a lendária Democracia Corinthiana, que contestou a ditadura nos campos de futebol. Na ocasião, ele entrevistou o líder Sócrates, que viria a falecer pouco depois, em 2011. No curta Carta ao Magrão, Asbeg retorna àquela entrevista com o intuito de atualizar o "Magrão" sobre tudo o que aconteceu na política brasileira nesses dez anos.
O filme é comovente na forma singela como o cineasta homenageia a consciência política do jogador. Conclui que Sócrates sofreu menos por não ter visto grande parte dos seus sonhos serem vilipendiados pelas sucessivas tragédias brasileiras recentes: golpe, perseguições jurídicas, fascismo, o verme e o vírus.
Carta ao Magrão é um pequeno filme exemplar para esse nosso tempo de limitações. Combina arquivos com emoção e indignação, mas sem perder a ternura.
República das Saúvas
O incômodo com a realidade brasileira grita alto também no curta República das Saúvas, realização do jornalista e estudioso de documentários Piero Sbragia. Inspirado numa reportagem de Luciana Ribeiro, ele coletou falas negacionistas do inominável presidente e as relacionou com animais como bois, jumento e, principalmente, saúvas.
As formigas devastadoras, que já foram consideradas um dos maiores males do Brasil, são conhecidas por destruir a floresta a fim de proteger sua família e seus filhos. Qualquer semelhança metafórica com o ocupante do Planalto é simples evidência.
Sbragia teve a pachorra de filmar, com lente macro, saúvas em seu labor incessante. O sofisticado desenho sonoro ajuda a sublinhar o mal-estar. A ignorância vaidosa do capitão, o pouco caso com a vida e a depredação do meio-ambiente estão explícitos nesse curta-manifesto que desconstrói um discurso monstruoso.
A elite do atraso
Num excelente trabalho de roteirização documental, Servidão parte de um enfoque histórico da escravidão no Brasil e envereda pelo sistema que se perpetuou até os nossos dias, quando trabalhadores rurais ainda são mantidos em regime desumano, enquanto os melhores cuidados do latifúndio se destinam ao gado e às plantações. Do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, principal ponto de desembarque de escravos no século XIX, somos levados até os confins de florestas do Norte, onde, desde 1995, a ação do chamado Grupo Móvel libertou e providenciou indenização para dezenas de milhares de trabalhadores.
A repressão ao trabalho escravo, porém, vem sendo "flexibilizada" desde o governo Temer. Há poucos dias, o atual presidente assegurou aos ruralistas que não irá regulamentar a Emenda Constitucional que prevê a desapropriação de terras onde for encontrada a exploração de mão de obra escrava. Assim vai se eternizando o que Jessé Souza chamou de "elite do atraso", a lógica de poder em que os donos de terras e dos meios de produção se sentem também donos de gente. O indiano Kailash Satyarthi, Prêmio Nobel da Paz de 2014 pela luta contra a exploração de crianças, comparece com um depoimento cheio de preocupação com o estado de coisas no Brasil.
Barbieri reuniu um timaço de historiadores, jornalistas, escritores, africanistas, religiosos, juristas e agentes do setor trabalhista que discorrem com clareza cristalina sobre o assunto. O indiano O filme inclui relatos de trabalhadores rurais, com destaque para a figura emblemática de Marinaldo Soares Santos, ex-escravizado e hoje ativista dos direitos trabalhistas. Uma rememoração dos mártires dos direitos humanos compõe um dos momentos mais bonitos de Servidão.
Vindo da produção videográfica de vanguarda da produtora Olhar Eletrônico, Barbieri impõe seu estilo mesmo num documentário de corte tradicional como este. Um tesouro em fotografias do trabalho escravo em várias épocas se articula com trechos de filmes raros que ajudam a contar essa história que nos envergonha perante o mundo.
Na Bahia, em nome de Alá
Revolta dos Malês é uma adaptação da minissérie dirigida por Belisário Franca e Jeferson De para a SescTV em 2019. A exemplo de outros trabalhos recentes de Franca (Menino 23 e Soldados do Araguaia), traz à luz um episódio menos conhecido da história do Brasil. Os malês (ou imalês) eram escravos de fé islâmica que planejaram uma revolta em Salvador, em 1835, para ocupar a Bahia e melhorar suas condições de vida, mesmo que ao preço de matar brancos e mestiços, e escravizar negros "infiéis".
A série e o filme se valem da informação de que uma denúncia anônima teria facilitado a repressão aos revoltosos, que acabaram massacrados ou presos e punidos. Surge, então, a figura ficcional da escrava Guilhermina (Shirley Cruz) e sua luta para evitar que a filha seja levada a leilão e seja feita escrava sexual. Esse drama individual ocupa o centro da trama, colocando a revolta propriamente dita como pano de fundo.
Uma luz e uma solenidade bastante teatrais dominam a cena. Silhuetas na visualização dos brancos e o uso de câmera lenta reforçam o caráter fortemente estilizado. O capricho cênico é evidente, embora às vezes jogue contra um envolvimento mais efetivo do espectador com o tempo histórico. Como costuma acontecer com séries resumidas num longa-metragem, a estrutura resulta episódica e menos absorvente. Os cinco episódios da série completa podem ser vistos no site da SescTV. - (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).
As formigas devastadoras, que já foram consideradas um dos maiores males do Brasil, são conhecidas por destruir a floresta a fim de proteger sua família e seus filhos. Qualquer semelhança metafórica com o ocupante do Planalto é simples evidência.
Sbragia teve a pachorra de filmar, com lente macro, saúvas em seu labor incessante. O sofisticado desenho sonoro ajuda a sublinhar o mal-estar. A ignorância vaidosa do capitão, o pouco caso com a vida e a depredação do meio-ambiente estão explícitos nesse curta-manifesto que desconstrói um discurso monstruoso.
A elite do atraso
Num excelente trabalho de roteirização documental, Servidão parte de um enfoque histórico da escravidão no Brasil e envereda pelo sistema que se perpetuou até os nossos dias, quando trabalhadores rurais ainda são mantidos em regime desumano, enquanto os melhores cuidados do latifúndio se destinam ao gado e às plantações. Do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, principal ponto de desembarque de escravos no século XIX, somos levados até os confins de florestas do Norte, onde, desde 1995, a ação do chamado Grupo Móvel libertou e providenciou indenização para dezenas de milhares de trabalhadores.
A repressão ao trabalho escravo, porém, vem sendo "flexibilizada" desde o governo Temer. Há poucos dias, o atual presidente assegurou aos ruralistas que não irá regulamentar a Emenda Constitucional que prevê a desapropriação de terras onde for encontrada a exploração de mão de obra escrava. Assim vai se eternizando o que Jessé Souza chamou de "elite do atraso", a lógica de poder em que os donos de terras e dos meios de produção se sentem também donos de gente. O indiano Kailash Satyarthi, Prêmio Nobel da Paz de 2014 pela luta contra a exploração de crianças, comparece com um depoimento cheio de preocupação com o estado de coisas no Brasil.
Barbieri reuniu um timaço de historiadores, jornalistas, escritores, africanistas, religiosos, juristas e agentes do setor trabalhista que discorrem com clareza cristalina sobre o assunto. O indiano O filme inclui relatos de trabalhadores rurais, com destaque para a figura emblemática de Marinaldo Soares Santos, ex-escravizado e hoje ativista dos direitos trabalhistas. Uma rememoração dos mártires dos direitos humanos compõe um dos momentos mais bonitos de Servidão.
Vindo da produção videográfica de vanguarda da produtora Olhar Eletrônico, Barbieri impõe seu estilo mesmo num documentário de corte tradicional como este. Um tesouro em fotografias do trabalho escravo em várias épocas se articula com trechos de filmes raros que ajudam a contar essa história que nos envergonha perante o mundo.
Na Bahia, em nome de Alá
Revolta dos Malês é uma adaptação da minissérie dirigida por Belisário Franca e Jeferson De para a SescTV em 2019. A exemplo de outros trabalhos recentes de Franca (Menino 23 e Soldados do Araguaia), traz à luz um episódio menos conhecido da história do Brasil. Os malês (ou imalês) eram escravos de fé islâmica que planejaram uma revolta em Salvador, em 1835, para ocupar a Bahia e melhorar suas condições de vida, mesmo que ao preço de matar brancos e mestiços, e escravizar negros "infiéis".
A série e o filme se valem da informação de que uma denúncia anônima teria facilitado a repressão aos revoltosos, que acabaram massacrados ou presos e punidos. Surge, então, a figura ficcional da escrava Guilhermina (Shirley Cruz) e sua luta para evitar que a filha seja levada a leilão e seja feita escrava sexual. Esse drama individual ocupa o centro da trama, colocando a revolta propriamente dita como pano de fundo.
Uma luz e uma solenidade bastante teatrais dominam a cena. Silhuetas na visualização dos brancos e o uso de câmera lenta reforçam o caráter fortemente estilizado. O capricho cênico é evidente, embora às vezes jogue contra um envolvimento mais efetivo do espectador com o tempo histórico. Como costuma acontecer com séries resumidas num longa-metragem, a estrutura resulta episódica e menos absorvente. Os cinco episódios da série completa podem ser vistos no site da SescTV. - (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).
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