Em 2 de abril, Thedra teve alta, com prescrição de oxigênio e repouso absoluto. Três dias depois, com o tubo portátil de oxigênio no fim, telefonou ao Pronto Atendimento (PA) de Salto do Lontra, pedindo que uma das equipes de plantão lhe enviasse em casa um novo cilindro. A entrega em domicílio, no entanto, lhe foi vetada: ela teria que retirar o oxigênio pessoalmente. Indignada e com a respiração entrecortada, fez um vídeo em seu celular, denunciando o que classificaria como perseguição. “Eu tô indo lá pegar o oxigênio, que o secretário de Saúde negou, negou de entregar aqui em casa”, disse, ora focando o próprio rosto, ora enquadrando o cilindro. “Vou pegar o oxigênio para me manter viva”, frisou, adiante.
Thedra dirigiu seu Fiat Uno até o PA, a 1,7 km de distância de sua casa. Outros vídeos gravados na sequência pela médica e pela mulher dela, Ramonyele Martins da Silva, mostram três ambulâncias estacionadas no entorno da unidade – o que, segundo o casal, denota que não havia urgências que justificassem a recusa em lhe entregar o oxigênio em domicílio. No posto, três pessoas ajudaram a colocar no porta-malas do carro o cilindro – que pesa 60 kg e mede 1,46 metro. Já de volta, Ramonyele, sozinha, suspendeu o tubo para vencer dois degraus e, em seguida, o rolou para dentro de casa, enquanto Thedra se recuperava do esforço. Segundo uma tomografia realizada naquele dia – e a que a piauí teve acesso –, a médica tinha entre 60% e 70% da capacidade pulmonar comprometida.
Thedra escreveu então uma carta pública de repúdio, que divulgou em suas redes sociais. Relatou que vinha sendo perseguida pelo secretário de Saúde de Salto do Lontra, Valdecir Baldessar. Segundo a carta, as pressões começaram em fevereiro, quando o secretário a chamou para uma reunião privada em sua sala e cobrou que ela cumprisse carga horária de 40 horas semanais. Thedra respondeu que o contrato entre ela e o município tinha sido firmado por procedimentos, não pela carga horária – o que significa que a profissional seria remunerada pelo número de atendimentos, não por horário. A parentes e a quatro profissionais de saúde ouvidos pela piauí, Thedra se queixou de que foi ameaçada de ter o contrato rescindido. Disse que Baldessar foi grosseiro e quis dar demonstrações de poder. Logo em seguida, a médica foi transferida do posto de saúde para a Clínica da Mulher, ao lado, e retirada dos plantões – até então, ela sempre cumpria escala nas noites de terça-feira. Ou seja, quando foi notificada a pagar um médico plantonista que cobrisse sua ausência durante a doença, Thedra já nem dava mais plantão no posto de saúde.
“Não me afetou ter me deixado ‘desempregada’ estando doente, eu SOU médica e sei da minha qualidade profissional. Quatro anos passam rápido, secretariado é apenas um estado. O Sr. Está ‘secretário de Saúde’ [sic]”, escreveu Thedra em sua carta. “Aos colegas médicos, espero que um dia se valorizem mais, que reconheçam os municípios que nos procuram, e logo nos descartam (doentes)”, observou, adiante. A médica descreveu o episódio e afirmou que funcionários do pronto-atendimento lhe disseram que tinham sido proibidos pelo secretário de entregar o oxigênio na casa dela, enquanto, segundo Thedra, a praxe no município era o fornecimento em domicílio. “ Sei que o SUS deve prover e não entregar. Mas em cidade pequena sabemos que se faz sim. Todos os pacientes que precisam de Oxigênio, curativo e afins… São levados até a residência por carro da prefeitura. O que é pra um, é pra todos, mas parece que o secretário desconhece os princípios do SUS [sic]”, escreveu.
Thedra já havia tido problemas no fornecimento do cilindro de oxigênio anterior. Com a demora de Salto do Lontra, quem tinha lhe cedido o tubo de oxigênio fora o município de Nova Prata do Iguaçu, onde a médica também dava plantões. Depois do problema com o segundo cilindro, no PA de Salto, ela ingressou com uma ação na justiça no dia 7 de abril para que o oxigênio fosse entregue em casa – sem sucesso. No processo, as advogadas Gabriela Gottardo e Mayara Gottardo afirmaram que a médica vinha sofrendo “tratamento discriminatório” em razão de “desavenças contratuais”, já que a orientação do município é de que os cilindros sejam levados em domicílio a pacientes que possam continuar o tratamento em casa. No dia 8, o juiz Diego Gustavo Pereira pediu que a defesa apresentasse a prescrição médica; que comprovasse que o município tinha se recusado a fornecer o cilindro; e que desse provas de que Thedra não tinha condições financeiras de comprar o produto.
Não houve tempo de responder ao magistrado. O quadro clínico de Thedra se agravou e ela foi internada novamente, agora no Hospital Regional de Francisco Beltrão – a 53 km de Salto do Lontra. Morreu em 14 de abril, vítima de complicações causadas pela Covid.
A pandemia chegou mais tardiamente às regiões Oeste e Sudoeste do Paraná, no processo de interiorização da doença. Em Salto do Lontra, com população estimada em menos de 15 mil habitantes, a primeira morte por Covid-19 ocorreu em julho do ano passado. Hoje, o município soma vinte óbitos decorrentes do coronavírus. Como não há hospital, os pacientes que precisam de internação são transferidos para cidades vizinhas. Só em março deste ano a prefeitura instalou, anexa ao Pronto Atendimento, uma tenda para receber pacientes com suspeita de Covid-19.
A cerca de 70 km da fronteira com a Argentina, Salto do Lontra é relativamente jovem – foi elevado à categoria de município em 1964 e tornou-se uma das cidades que gravitam no entorno de Francisco Beltrão, maior cidade dos arredores, com 92 mil habitantes. A economia gira essencialmente em torno da agropecuária, principalmente da produção de soja, milho e aves. Assim como as outras pequenas cidades da localidade, Salto tem um centro urbano diminuto, com pouquíssimas ruas comerciais, com pracinha, igreja e um supermercado. Mais da metade da população vive em áreas rurais do município. Ao longo da última década, a economia local ganhou um fôlego novo com a intensificação das atividades de um frigorífico da BRF instalado na região. Desde 2013, a cidade é comandada pelo mesmo grupo político. O atual prefeito, o comerciante Fernando Cadore (PDT), tinha sido vice nas duas gestões anteriores.
Foi a essa cidade de poderes estabelecidos que Thedra, definitivamente uma outsider, chegou no fim de outubro de 2020. Lésbica, médica formada em Cuba, de origem pobre, ela cresceu na Vila Kennedy, uma das comunidades mais violentas do Rio, na Zona Oeste da cidade. Thedra e o irmão, Igor, foram criados pela mãe e pela avó, que bancava a família com sua aposentadoria. Segundo Igor, Thedra cedo percebeu que os moradores da favela não eram iguais aos do asfalto, e tinha já na adolescência as características pelas quais se notabilizaria na vida adulta. “Thedra sempre teve uma energia muito forte e uma capacidade de indignação muito grande com as injustiças. Ela simplesmente não aceitava. Ela era como um trem de ferro, com uma energia bruta. Ela era a mudança que ela queria para o mundo. Impressionante como isso não passou com o tempo”, disse Igor.
Na adolescência, Thedra e Igor passaram a frequentar o Polo de Educação Geral de Ações Solidárias da Zona Oeste (Pegaso), uma ONG que atuava na Vila Kennedy. Determinada e estudiosa, passou a fazer parte de outro projeto da ONG Viva Rio e, em 2005, foi aprovada em um processo seletivo de um convênio do governo brasileiro com Cuba, a partir do qual foi estudar medicina da Escola Latinoamericana de Medicina, em Havana. Lá, apaixonou-se pelo modelo de saúde da família. De volta ao Brasil, revalidou o diploma na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e começou a atuar no Mais Médicos, em Bagé (RS). Após o fim do programa, passou um período no interior de São Paulo e, em 2020, decidiu se fixar no sudoeste do Paraná, para ficar mais perto do irmão. Capitão do Exército, Igor Saucha serve em Itaqui, Santa Catarina, mas viaja com frequência a Francisco Beltrão – cidade natal de sua mulher e onde tem uma casa. Thedra acabou ficando em Salto do Lontra, atraída pela vaga no Programa de Saúde da Família (PSF), com salário de aproximadamente 10 mil reais.
A doutora era de gargalhar e falar alto. Corpulenta, tinha 1,80 metro, calçava 42 e levava incontáveis tatuagens pelo corpo. Por causa de seus modos diretos, podia parecer um tanto ríspida em um primeiro contato. Era descrita, contudo, como uma amiga afetuosa, bem-humorada e que gostava de reunir os poucos amigos (todos colegas de trabalho) para cozinhar para eles – de baião de dois a camarão. Vestia-se com simplicidade e não parecia ter apego a luxos: vivia em uma casa modesta e tinha um carro popular. Era capaz de arroubos. Em um deles, dirigiu seu Fiat Uno por 3,2 mil km até o município cearense de Tauá, no semiárido sertão dos Inhamuns, para conhecer pessoalmente Ramonyele, com quem vinha conversando por meio de um aplicativo. Apaixonaram-se, e Ramonyele depois mudou-se para morar com Thedra no gelado interior do Paraná.
Na rotina de trabalho, prezava pelo contato direto, mais “humanizado”, com os pacientes, reflexo da formação como médica de família. Seus colegas relataram episódios em que a médica tirou dinheiro do bolso para ajudar pacientes, pagando medicamentos ou algum exame que não era oferecido na rede pública. Por outro lado, era intolerante com desvios de conduta: denunciou ao Ministério Público do Paraná um colega médico em Nova Esperança, cidade próxima a Salto e onde também trabalhou. Os amigos a viam como alguém que tinha visão de mundo “de esquerda”, mas nunca se envolveu em política partidária, principalmente em âmbito municipal – o título de eleitora de Thedra era de Bagé. Seu posicionamento político e sua orientação sexual, no entanto, não eram unanimidade na pequena Salto do Lontra.
“Minha irmã fugia ao estereótipo do médico almofadinha. Para ela, a medicina estava nas pessoas. Ela era um Doutor House pobre, num corpo de mulher”, definiu Igor. “Ela era o tipo que, se visse alguém sem comer, dava o próprio prato para a outra pessoa. Não media esforços para ver outra pessoa bem. Tinha um jeito meio duro, meio ranzinza, mas um coração de ouro. As pessoas chegavam a maliciar quando alguma mulher se tornava amiga dela”, disse uma amiga. “E para ela, o correto era o correto. Não admitia ver nada errado”, acrescentou.
O secretário de Saúde de Salto do Lontra, Valdecir Baldessar, é servidor público de carreira. Aos 45 anos de idade, tem cinco anos de prefeitura – foi concursado para o cargo de assistente administrativo. Antes disso, era funcionário de uma cooperativa agropecuária da cidade. Tido como homem articulado, a partir de seu trabalho na prefeitura, aproximou-se da política nas últimas gestões. Logo depois de ter assumido o cargo público, em 2016, foi nomeado secretário de Saúde, em seu primeiro cargo de primeiro escalão. Nas eleições passadas, foi eleito vereador pelo PSC, com 484 votos, mas logo no início da legislatura se licenciou do cargo para voltar à Secretaria de Saúde. Mora em um sítio na zona rural e costuma frequentar a igreja matriz – a mulher canta em um dos pequenos conjuntos que animam as celebrações.
Em entrevista por telefone à piauí, em tom exasperado, Baldessar negou que tenha havido perseguição de quaisquer razões a Thedra ou a outro profissional de saúde. Disse que o município entrega o oxigênio em domicílio somente a pacientes que estejam em isolamento por determinação médica, em razão da Covid-19. Após o período de confinamento, somente pessoas em vulnerabilidade social têm direito a receber os cilindros em casa, de acordo com o secretário. “Ninguém fica sem oxigênio, graças a Deus. Quando o paciente sai do isolamento, a família tem que retirar o O2 na unidade de saúde. Isso não passa nem por mim. É direto com as enfermeiras da atenção básica”, disse o secretário.
Baldessar não nega que tenha pressionado Thedra a cumprir 40 horas semanais e que tenha notificado a médica a indicar substituto no período em que ela se afastou em razão da Covid-19, mas disse que o fez para que não houvesse prejuízo à população. Ele reconheceu que o contrato de prestação de serviços do município com Thedra não estabelecia horários, mas ressaltou que, em seu entendimento, a Secretaria tinha poder de estipular um período de expediente. “Ela tinha contrato de serviço com o município e o município precisa organizar os serviços. E nessa organização a gente precisa dar o horário de chegada dos médicos, para poder iniciar os atendimentos. É natural da gestão”, disse. O secretário afirmou que está tranquilo e que vai processar a “convivente” de Thedra – como se referiu a Ramonyele. “Eu tenho 45 anos de história no município. Todo mundo sabe como eu sou. Se teve questão política nisso, foi do lado de lá”, acrescentou. O prefeito Cadore não quis conceder entrevista. O departamento jurídico da prefeitura não informou se instaurou algum tipo de procedimento para apurar o caso.
Ouvidos pela piauí, quatro profissionais de saúde que prestam serviço à prefeitura descrevem Baldessar como um agente de perfil pouco técnico e essencialmente político. Nenhum será identificado, pois todos temem pelo emprego. Segundo os relatos deles, o secretário é dado a pequenas demonstrações de poder, principalmente a quem considera “oposição”. De acordo com uma servidora do posto em que Thedra trabalhava, Baldessar costuma, por exemplo, acessar pelo celular as câmeras de segurança da unidade e surpreender os funcionários, criando caso por causa de minúcias. “Outro dia, chamou a atenção porque a gente fez torradas na cozinha do posto, com pão que tinha sobrado. Se ele vê que alguém estava fazendo tal coisa, cobra depois. Fica vigiando”, disse a servidora. Eles também detalham outros tipos de perseguições, mais diretas.
“Quem ele acha que é adversário político, quer trocar de setor, tirar do plantão, não aceita os atestados quando a pessoa fica doente… Faz de tudo para foder com a vida do cara. Faz como ele fez com a doutora Thedra. Para os do lado dele, é bonificação, é gratificação, é tudo”, disse um servidor. “A gestão pessoaliza tudo. Se tem transporte para um paciente, um remédio, diz que foi ele quem conseguiu. Isso que você tá cansado de saber que acontece no interior, acontece aqui”, acrescentou outro profissional de saúde.
Em relação ao caso de Thedra, eles relataram que a orientação da própria Secretaria de Saúde sempre foi fornecer o oxigênio na casa dos pacientes, independentemente de estarem em isolamento. A continuidade do tratamento em casa seria, segundo eles, uma forma de reduzir o número de internações – já que o município não dispõe de um hospital. “É uma cidade pequena. Sempre teve essa possibilidade de uma das equipes entregar na casa da pessoa. Não leva dez minutos”, disse uma profissional de saúde. “O que ele cobrou da Thedra, essa questão de horários, nunca cobrou de outros médicos”, disse outro profissional.
Após a publicação da carta de repúdio assinada por Thedra, quando a médica estava hospitalizada pela segunda vez, o Ministério Público do Paraná (MP-PR) instaurou um procedimento para apurar se houve improbidade administrativa ou se há indícios de crimes no episódio. Em entrevista à piauí em 19 de abril, o promotor Leandro Suriani da Silva informou que, além de Baldessar, pretende ouvir outros servidores do município, inclusive profissionais de saúde. “O procedimento ainda está em fase bem preliminar. Ainda não temos elementos para imputar improbidade ou conduta dolosa, neste primeiro momento”, disse. Na semana seguinte, o promotor tomou o depoimento do secretário e, em seguida, pôs a investigação sob sigilo – em razão de Baldessar ter apresentado o prontuário médico de Thedra. O prazo para que a apuração seja concluída é de um ano, prorrogável.
“No dia em que negaram levar o cilindro em casa, ela tinha saído do hospital fazia dois dias, com prescrição de oxigênio. Ela estava debilitada. Era para estar descansando, não fazendo esforço para buscar oxigênio. Se o município entrega para todo mundo, por que negaram só para ela?”, disse Ramonyele. “Depois disso, Thedra ficou muito nervosa e foi piorando. Ela foi sufocada por essa perseguição. Não sei se perseguiu porque ela não aceitava nada errado, se por causa da sexualidade dela… Mas é nítido que houve perseguição”, disse Ramonyele. Segundo ela, Thedra contraiu Covid-19 no trabalho.
“Ela ficou muito mal pelo jeito como vinha sendo tratada pelo secretário desde a reunião [em fevereiro]. Dava a entender que se sentia usada, como se o ser humano não tivesse valor algum”, disse a enfermeira Luana Wilamowski, que se tornou amiga de Thedra desde que ambas trabalharam juntas em Nova Esperança. “Se ela não tivesse sofrido essas perseguições e tivesse tido todo atendimento, poderia ter acontecido a mesma coisa, ela ter partido. Mas a parte psicológica dela ficou muito abalada. E a gente sabe que, em qualquer doença, a questão psicológica conta muito”, acrescentou.
De acordo com os amigos e parentes, Thedra tentou permanecer forte até o fim. Na segunda vez em que foi internada, mesmo com o agravamento de seu estado de saúde, enviou mensagens aos amigos, dizendo que ia “sair dessa”. Ramonyele, no entanto, acredita que ela sabia que seu quadro era delicado e tentava poupar as pessoas de quem gostava. Em 10 de abril, Thedra foi intubada. Morreu quatro dias depois. Além de Ramonyele e do irmão, deixou a mãe, que sofre de depressão severa.
“O que aconteceu com a minha irmã foi uma covardia. Eu não me revolto, mas lamento, porque todo mundo deveria ter visto aquele sorriso dela. Era uma pessoa incrível”, disse Igor. “Thedra foi a minha história de amor. O nosso luto virou uma luta, porque Thedra era isso: luta contra o que estava errado”, disse Ramonyele. E conclui: “Isso não é um fato isolado. Em todo o Brasil, tem pessoas que usam o poder para coagir quem está do outro lado e para beneficiar quem está do seu lado. Isso não pode.” - (Fonte: Revista Piauí - Aqui).
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