Em 2012 o filme O Segredo da Cabana fazia uma instigante metalinguagem do gênero slasher movie: por que antiquíssimos ritos de sacrifício têm que ser repetidos a cada filme do gênero? Por que jovens que fazem sexo e se divertem sempre morrem com requintes sádico em cada roteiro slasher? A certa altura, a atriz Sigourney Weaver (mais uma metalinguagem ao fazer referência à sua participação no filme “Ghostbusters” de 1984 onde ela também atuava numa sequência de sacrifício humano a uma divindade da antiguidade em plena Nova York atual) revelava o porquê: “porque vocês são jovens!”, dizia enfaticamente para a garota virgem sobrevivente de uma chacina que dizimou todos os seus amigos.
Rituais de sacrifícios humanos e de animais são as mais antigas formas de idolatrar e se comunicar com divindades. Essa forma mágica primitiva não apenas representava essa forma de comunicação com a dimensão mítica e do Sagrado, mas também uma forma de submissão e conformismo através da destruição do indivíduo jovem.
Tudo para impor o medo e terror aos jovens como ritual de passagem ao mundo adulto da Ordem e Tradição míticas. Com a religião essas formas pagãs ou foram reprimidas ou sublimadas como no ritual do sangue e do corpo de Cristo convertidos em hóstia e vinho. E revivem em plena era high tech atual por meio da indústria do entretenimento.
Da Antiguidade até hoje, rituais de passagem são formas institucionalizadas para impor o conformismo aos jovens, desarmando qualquer ímpeto de contestação, crítica ou inconformismo radical. Permanecem na sociedade moderna através de ritos fundamentados no medo, humilhação e submissão: processos seletivos corporativos, trotes nas universidades... e os slasher movies na esfera do entretenimento.
O filme polonês Todos os Meus Amigos Estão Mortos (Wszyscy moi przyjaciele nie zyja, 2020) é mais um filme autoconsciente sobre os cânones do gênero, assim como O Segredo da Cabana. Não só emula os clichês slasher, como brinca com eles, curiosamente invertendo as relações causa-efeito do gênero: normalmente, o sangue e a violência são os efeitos cruéis de chacinas perpetradas por monstros, psicóticos ou sádicos. Porém, nesse filme, numa festa extremamente promíscua, a violência parece aumentar o estímulo – aguça ainda mais o sexo, os hormônios e a indiferença.
Outro ponto curioso é que o título do filme já é um spoiler: não há nenhum segredo porque sabemos que quase todo mundo vai morrer e começamos no início da narrativa a ver o rescaldo de uma festa de réveillon sangrenta quando dois investigadores da polícia, paramédicos e médicos legistas chegam à cena da matança. A questão é: como um encontro festivo de amigos e conhecidos acabou tão mal?
É sintomático que Todos os Meus Amigos Estão Mortos comece pela presença de representantes da Lei e da Ordem limpando a bagunça que jovens inconsequentes deixaram. O filme também brinca com a essência do gênero slasher: quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem. Como rito de passagem milenar secularizado, sexo, drogas, prazer e liberdade (os pais não estavam na casa da festa porque viajaram) devem ser punidos por mortes exemplares que devem servir de exemplo para todos.
Mas há algo mais no humor negro desse filme polonês: a relação do filme slasher com a família e adolescentes – jovens sempre estão em perigo sem nenhuma esperança de ajuda dos pais. Geralmente, os pais estão muito ocupados ou envolvidos demais nos seus próprios problemas. Ou mesmo quando tentam fazer algo, são simplesmente impotentes. Isso parece refletir as próprias mudanças estruturais da família nuclear (aquela que foi reduzida a pais e filhos) na qual as ausências paternas e maternas são física, psicológica e simbólica.
Adolescentes se descobrem com seus corpos mudando, os hormônios explodindo e física e mentalmente no auge. Portanto, esse é o momento de a sociedade intervir, lembrando aquele célebre aviso na porta do Inferno, na obra “A Divina Comédia” de Dante Alighieri: “Vós que aqui entrais, abandonai toda a esperança”.
O Filme
A chegada do investigador novato Grzegorz (Michael Meyer) e do veterano inspetor Kwasnievski (Adam Woronowicz) junto com uma tropa de policiais e paramédicos em uma casa com corpos e sangue para todos os lados lembra imediatamente a estética Tarantino – cuja impressão é ainda reforçada pelo lettering e créditos iniciais, lembrando Pulp Fiction e os filmes de Guy Ritchie como Snatch – Porcos e Diamantes.
Mas, o que vemos depois fica mais para o clássico dos filmes teens American Pie. Porém, o humor negro e autoconsciência dos clichês transforma o filme numa espécie de franquia do Todo Mundo em Pânico (Scary Movie) do gênero slasher movie.
Todos os Meus Amigos Estão Mortos é uma narrativa em flashback na qual acompanharemos no quê deu errado para o primeiro dia do ano acabar naquela chacina. Não há necessariamente uma estória, tudo é situacional: cada ação, cada escolha dos participantes da festa (motivada por segredos, mentiras, erros de julgamento ou equívocos) produz efeitos exponenciais imprevisíveis que fazem a graça do humor negro – lembrando o humor do filme mudo slapstick dos efeitos dominó e desventuras em série de heróis como Gordo e o Magro e Chaplin.
Os personagens foram escolhidos a dedo, para representar todos os personagens clichês que merecem morrer nos slasher movies: um adolescente certinho desesperado para casar com uma garota reprimida que é o amor de sua vida; um jovem que não quer “sair do armário”; uma balzaquiana que não quer assumir o seus sentimentos por um jovem adulto; um entregador de pizza que não consegue receber o dinheiro da entrega naquela casa; um jovem católico francês virgem cuja única palavra compreensível que fala é “Jesus”; uma dupla de ninfomaníacas; uma garota “good vibes” e astróloga que acredita que o universo sempre conspira a nosso favor; o adolescente que voltou da reabilitação; uma garota que passa o filme inteiro dançando com uma máscara de mergulho imersa num barato alucinógeno; e por aí vai...
Este grupo de amigos vai celebrar a noite de Ano Novo, enquanto os pais de Marek (Kamil Piotrowski) estão viajando. No início, tudo é divertido e somos apresentados a cada personagem. No entanto, de repente, e em poucos minutos, tudo vai por água abaixo onde os segredos vão sendo revelados com reviravoltas chocantes com violência e banho de sangue. Mas parece que tudo isso só “pilha” ainda mais os adolescentes, produzindo um efeito de retroalimentação regado a sexo e drogas, levando ao desfecho apresentado no início do filme.
Ritual de passagem e punição – Alerta de spoilers à frente
Todo o filme é o paroxismo da fantasia-clichê de “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem”: quem faz sexo e/ou experimenta drogas, morre ou se torna o vetor de mais tragédias num efeito em cadeia.
A festa de réveillon é um ritual de passagem e punição e a casa e sua decoração combina com isso: móveis, portas e divisórias de madeira escura, objetos clássicos, poltronas ou sofás de couro escuro. Os pais estão ausentes, mas a casa como um todo exala a ordem social e política que os jovens desafiam com muito hormônio, sexo e violência. Seus pais deixaram uma casa limpa e ordenada, mas agora eles estão quebrando, queimando e destruindo e precisam ser punidos.
Suas mortes serão exemplares para toda a sociedade. Aqui e no outro mundo! O final não acontece apenas com o banho de sangue. Após os investigadores fecharem o caso, vemos imagens extras com todos os personagens vivos em uma espécie de universo alternativo – eventualmente na festa alguém fala em como seria aquela festa num universo alternativo. Todos estão vestidos de branco e salmão e a atmosfera e agridoce. Ao invés de um réveillon, vemos uma celebração de casamento.
No entanto, a tomada final do mesmo quadro ensanguentado que vimos em sequências anteriores, comprova que todos estão no pós-morte, na mesma casa, como fantasmas presos em um purgatório... e parece que o banho de sangue vai se repetir no purgatório na mesma cena que deu início à tragédia no mundo dos vivos. - (Fonte: Cinegnose - Aqui).
Ficha Técnica |
Título: Todos os Meus Amigos Estão Mortos |
Diretor: Jan Belci |
Roteiro: Jan Belci |
Elenco: Michael Meyer, Adam Woronowicz, Julia Wieniawa-Narkiewicz, Kamil Piotrowski |
Produção: Aurum Films |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2020 |
País: Polônia |
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