"Nos tempos não tão longínquos da ditadura, o ouro de Moscou financiava a esquerda no Brasil. Pelo menos era isto que o governo militar divulgava através da imprensa amordaçada. Se era falso ou verdadeiro, não vem ao caso agora. Nos novos tempos da pós-verdade, o ouro de Washington financia os think tanks que corroem a democracia em vários países do mundo, ao impor o pensamento “liberal” em oposição à idéias e políticas que tenham algum viés de esquerda.
A Atlas Network, nome fantasia para Atlas Economic Research Foundation, é um destes “tanques de idéias”, centros de formulação de políticas estratégicas voltadas não apenas para derrotar eleitoralmente as esquerdas, mas para fazer prevalecer o liberalismo em sua versão mais perversa, o ultraliberalismo.
Com sede em Washington, e atualmente presidida pelo Alejandro Chafuen, argentino-norte-americano, a Atlas está no centro de uma rede com mais de 500 entidades parceiras, alcançando 99 países. Pelo menos é isto que consta no site oficial da entidade. É possível, ou mesmo provável, que nem todas as parcerias ou financiamentos possam ser declarados, por questão de estratégia ou de infração à alguma legislação.
Seus simpatizantes se auto-denominam de libertaristas (ou libertarianistas), uma tradução do termo inglês, libertarians1, e têm a visão de que qualquer vestígio de um Estado de bem estar social deve ser eliminado. O acesso à saúde e educação caberia apenas aos que puderem pagar, segundo professam os adeptos deste darwinismo social.
Diferentemente do liberalismo histórico, e seguindo-se ao neoliberalismo das décadas de 70, 80 e 90, a fase do ultraliberalismo se estabeleceu após a crise de 2008, em oposição aos programas sociais de Obama, visando aperfeiçoar ainda mais o modelo de exploração e opressão da força de trabalho, além de montar uma espécie de “Internacional Conservadora”.
Os Chicago Boys introduziram as políticas neoliberais no Chile de Pinochet, cujas nefastas consequências sociais são sentidas até hoje pela população do país. No Brasil de Bolsonaro, a direita ultraliberal representada por Paulo Guedes, não tem qualquer problema de convivência com a extrema-direita
Margaret Thatcher, primeira-ministra da Grã-Bretanha (1979-1990), foi também adepta das políticas neoliberais de redução drástica da participação do Estado na economia, cabendo ao mercado regular os preços. Em 1955, o britânico Anthony Fisher fundou em Londres, o Institute of Economic Affairs (IEA), que viria a influenciar Thatcher, em cujo governo ocorreu considerável desmonte do Estado de bem-estar social. O IEA foi quem primeiro publicou (em 1970) “A contra-revolução na teoria monetária”, de Milton Friedman, outro ganhador do prêmio Nobel de economia.
Anthony Fisher, que era defensor das concepções do economista austríaco Friedrich Hayek, ganhador do prêmio Nobel de economia de 1974, formou em 1981 a Atlas Economic Research Foundation, que desde então atua na defesa e propagação do liberalismo radical.
Anthony Fisher, que era defensor das concepções do economista austríaco Friedrich Hayek, ganhador do prêmio Nobel de economia de 1974, formou em 1981 a Atlas Economic Research Foundation, que desde então atua na defesa e propagação do liberalismo radical.
Artigos publicados por Marina Amaral, na Agência Pública, em 2015, e por Lee Fang, no The Intercept Brasil, em 2017, apresentaram relatos minuciosos de como foi formada a Atlas, e do crescimento de sua influência através da expansão da rede de filiados e apoiadores. Com base principalmente em informações publicadas nestes dois veículos, e nos sites da Atlas e de seus parceiros, o atual artigo irá apresentar dados relacionados a Atlas e a alguns de seus 14 parceiros declarados, que atuam no Brasil formando a chamada “Rede da Liberdade”. Conhecer melhor o adversário e suas táticas, é a melhor forma de combatê-lo.
Existem, no entanto, outros institutos liberais no Brasil que não fazem parte da rede da Atlas. Segundo publicado em Carta Maior, Hélio Beltrão, que preside atualmente o Instituto Ludwik von Mises, afirmou que 30 Institutos recebem apoio da Atlas no país, e colaboram entre si.
Grandes corporações como a Exxon Mobil, a Master Card e empresas do ramo tabagista já financiaram a Atlas. As Fundações dos bilionários irmãos Koch e do investidor John Templeton fazem vultosas contribuições. O governo norte-americano também tem participação no direcionamento de fundos para a Atlas, através da National Endowment for Democracy (Fundação Nacional para a Democracia).
A NED é uma instituição privada, “que não visa o lucro, dedicada ao crescimento e fortalecimento de instituições democráticas ao redor do mundo”, segundo consta em seu site. Recebe fundos principalmente do Congresso Americano, e é governada por um conselho diretor, com participação igualitária de Republicanos e Democratas.
Com a vitória de Trump, foi indicada para a presidência da instituição, a economista Judy Shelton, senior fellow da Atlas desde 2010. Segundo o artigo no The Intercept, Chafuen teria declarado que “agora tem gente da Atlas na presidência da National Endowment for Democracy”.
Donald Trump também indicou Shelton para o Federal Reserve Bank em janeiro deste ano, o que foi considerado como uma intenção do presidente norte-americano de moldar o banco central mais poderoso do mundo aos seus desígnios.
A Atlas disponibiliza verbas para instituições parceiras em outros países, inclusive para treinamento na matriz. Este é um dos caminhos que “ouro de Washington” encontra para subverter a democracia no Brasil e nos países em que está presente.
Fazem parte da rede brasileira da Atlas: Instituto Atlantos (Porto Alegre), Instituto de Estudos Empresariais (Porto Alegre), Instituto de Formação de Líderes de Belo Horizonte, Instituto de Formação de Líderes de Santa Catarina, Instituto de Formação de Líderes de São Paulo, Instituto Liberal de São Paulo, Instituto Liberdade (Porto Alegre), Instituto Liberal (Rio de Janeiro), Instituto Líderes do Amanhã (Vitória), Instituto Ludwik von Mises (São Paulo), Instituto Millenium (Rio de Janeiro), Livres (Rio de Janeiro), Centro Mackenzie de Liberdade Econômica (São Paulo), Estudantes pela Liberdade (São Paulo).
Segundo o The Intercept, o modelo da Atlas e de seus institutos parceiros se preocupa menos com a formulação de novas soluções inovadoras para os problemas dos países em que estão presentes, e mais com o estabelecimento de organizações políticas disfarçadas de instituições acadêmicas, como forma de melhor conquistar o público para a ideologia liberal.
A maioria dos Institutos parceiros da Atlas apresenta em seus sites os diretores e membros dos conselhos, bem como as fontes de financiamento e de apoio no meio empresarial. Na aparência, existe ampla transparência. Pelos estatutos não é permitido receber dinheiro público ou de partidos políticos, bem como assumir posições partidárias.
Os objetivos que estão declarados nos sites dos Institutos são essencialmente os mesmos. Tomando como exemplo o Instituto de Formação de Líderes de Santa Catarina: “Somos uma entidade civil independente, apartidária e sem fins lucrativos, que visa à formação de lideranças comprometidas com a defesa das liberdades individuais, do Estado de Direito, da propriedade privada e da ética. Para tanto, engajamos nossos associados numa rotina de estudos e debates, a qual chamamos de Ciclo de Formação, que inclui palestras semanais, treinamentos, leituras de livros e júris simulados.”
O Instituto Atlantos relata que pretende alcançar seus objetivos “através da realização de palestras e eventos gratuitos e abertos ao público, nas áreas de economia, ciência política, direito, filosofia, sociologia, história e empreendedorismo, em pelo menos cinco das maiores faculdades da capital gaúcha (UFRGS, PUCRS, ESPM-Sul, Fadergs e FMP), onde coordena clubes estudantis e grupos de estudos específicos para cada faculdade/curso”. O conteúdo das palestras e cursos também é divulgado na página oficial no Facebook, que contaria com mais de 60 mil seguidores.
Os Institutos também em geral declaram suas fontes de financiamento. O Instituto de Estudos Empresariais, de Porto Alegre, tem como empresas investidoras a Ipiranga, do grupo Ultra, e a Celulose Rio Grandense, do grupo CMPC, além de várias empresas apoiadoras. Já o Instituto de Formação de Líderes de Belo Horizonte tem como principal investidor, a Suzano Celulose. O Instituto de Formação de Líderes de São Paulo tem como instituições mantenedoras, a Suzano Celulose e o Instituto Ludwig von Mises Brasil, presidido por Hélio Beltrão.
O Instituto Millenium nomeia 25 mantenedores em seu site. Apenas para citar 3 destes, incluímos aqui os nomes de João Roberto Marinho, Jorge Gerdau Johannpeter e Armínio Fraga. Na presidência de seu Conselho de Governança está Ricardo Diniz, vice-presidente do Bank of America Merry Linch Brasil. Um dos fundadores do Instituto Millenium foi Rodrigo Constantino, atualmente na presidência do Instituto Liberdade, do Rio de Janeiro. Constantino tem MBA de Finanças pelo IBEMEC e foi colunista na Veja, escrevendo atualmente para o Globo e Valor Econômico.
O Instituto Liberal foi criado em 1983 por Donald Stewart Jr, então dono da Construtora Ecisa. Stewart foi um dos grandes expoentes do liberalismo no Brasil, e manteve vínculos estreitos com entidades no exterior defensoras do liberalismo, como a Sociedade Mont Pèlerin, CATO Institute, Heritage Foundation, Atlas Foundation, Fraser Institute, Liberty Fund e Institute of Economic Affairs.
O grupo Estudantes pela Liberdade, com sede em São Paulo, corresponde à seção brasileira do Students for Liberty, e teve uma participação fundamental no golpe institucional que levou ao afastamento de Dilma Roussef. O diretor executivo do grupo, Juliano Torres, foi bem direto sobre a ligação existente entre o EPL e o Movimento Brasil Livre (MBL), onde despontou a estrela de Kim Kataguiri, conforme seu relato ao Agência Pública.
“Quando teve os protestos em 2013 pelo Passe Livre, vários membros do Estudantes pela Liberdade queriam participar, só que, como a gente recebe recursos de organizações como a Atlas e a Students for Liberty (internacional), por uma questão de imposto de renda lá, eles não podem desenvolver atividades políticas. Então a gente falou: Os membros do EPL podem participar como pessoas físicas, mas não como organização, para evitar problemas.”
Juliano prossegue em seu relato: “Aí a gente resolveu criar uma marca, não era uma organização, era só uma marca para a gente se vender nas manifestações como Movimento Brasil Livre. Então juntou eu, Fábio [Ostermann], juntou o Felipe França, que é de Recife e São Paulo, mais umas quatro, cinco pessoas, criamos o logo, a campanha de Facebook. E aí acabaram as manifestações, acabou o projeto.”
“A gente estava procurando alguém para assumir, já tinha mais de 10 mil likes na página, panfletos. E aí a gente encontrou o Kim [Kataguiri] e o Renan [Haas], que afinal deram uma guinada incrível no movimento, com as passeatas contra a Dilma e coisas do tipo. Inclusive, o Kim é membro da EPL, então ele foi treinado pela EPL também. E boa parte dos organizadores locais são membros do EPL. Eles atuam como integrantes do Movimento Brasil Livre, mas foram treinados pela gente, em cursos de liderança.”
Alejandro Chafuen, da Atlas, com Fábio Ostermann, do MBL.
Alejandro Chafuen, o presidente da Atlas, esteve presente nos protestos de abril de 2015 em Porto Alegre pelo impeachment de Dilma Roussef, quando confraternizou com membros do MBL, como mostrado na foto de seu Facebook, em que aparece com Fábio Ostermann, da coordenação do MBL.
Alejandro Chafuen, o presidente da Atlas, esteve presente nos protestos de abril de 2015 em Porto Alegre pelo impeachment de Dilma Roussef, quando confraternizou com membros do MBL, como mostrado na foto de seu Facebook, em que aparece com Fábio Ostermann, da coordenação do MBL.
Os Institutos vinculados a Atlas organizam anualmente, nas capitais onde atuam, o evento “Fórum da Liberdade”, para discutir a conjuntura política e econômica. Atualmente, Paulo Guedes é figurinha fácil de ser encontrada nestas ocasiões. A Atlas vai realizar seu próprio Liberty Forum anual em novembro, em Nova York. Os convidados deverão respeitar várias regras para não serem expulsos do evento e processados criminalmente, principalmente não tirar fotos ou fazer gravações não autorizadas. Libertà sì, ma non troppo!
A direita não está brincando em serviço, na luta pelos corações e mentes dos brasileiros. No entanto, governos tidos como “democráticos” e que adotam medidas antipopulares, terão dificuldade de permanecer no poder, principalmente se ocorrerem conflitos generalizados de rua e o uso do poder repressivo do Estado. Isto ocorreu com Macri, na Argentina, que não conseguiu se reeleger, apesar da forte presença das teias da Atlas no país. O mesmo poderá acontecer com Piñera, no Chile. Mas cada país tem sua própria dinâmica política, e o Brasil poderá continuar a afundar, sem conseguir reagir.
Em clara contradição com os evangélicos, a nova direita libertarista não recrimina a liberdade sexual, os movimentos LGBT e o uso de drogas, por serem expressões do indivíduo. Portanto, estas bandeiras já não pertencem exclusivamente à esquerda. Já as políticas sociais bancadas pelo Estado representam anátema para os grupos de liberais radicais, assim como a defesa do meio ambiente e das comunidades indígenas e quilombolas. Estas deveriam ser as principais batalhas a sem travadas pela esquerda, sem no entanto abandonar as pautas identitárias.
Mas os novos tempos requerem a adoção de novas estratégias. Se não quiser ficar alijada do poder por um longo período, e presenciar a continuação do retrocesso civilizatório em curso no Brasil, a esquerda precisará estudar melhor como a atuação da direita está conseguindo difundir o pensamento ultraliberal pelo país, e conquistando os jovens.
Na última campanha presidencial, ficou claramente evidenciada a predominância de cabelos grisalhos nas manifestações do PT, sugerindo uma perda de representatividade do partido entre os jovens. Este pode ser também um problema que afete ao PSOL e PCdoB, partidos identificados com teses de esquerda.
Medidas se fazem necessárias para atrair novamente os jovens para as causas da esquerda, talvez usando as mesmas táticas dos liberalistas. Uma presença ativa nas escolas e universidades, e o uso intensivo das mídias sociais é um dos caminhos que podem ser seguidos na reconquista dos corações e mentes dos jovens.
Notas do autor:
1. O pensamento dos seguidores libertaristas da Atlas está em oposição à tradição centenária dos libertários de esquerda, que são adeptos do anarquismo, como forma de organização social e econômica. O Instituto Mises Brasil, através de um texto de Murray N. Rothbard (1926-1995), fundador do moderno libertarismo (de direita), procura orientar seus filiados sobre como argumentar em defesa das teses de um estado mínimo.
Rothbard, que esteve vinculado ao Ludwig von Mises Institute e ao Center for Libertarian Studies, confessava no entanto não ter uma resposta para a seguinte pergunta, que poderia ser feita por um defensor da presença estatal na economia: “Se você concorda que é legítimo as pessoas permitirem que o Estado force o pagamento de impostos para cobrir por um certo serviço, como ‘defesa’ (do país, da propriedade privada e do indivíduo), então por que não é igualmente moral e legítimo que as pessoas tenham o direito de delegar ao Estado o direito ao fornecimento de outros serviços, tais como ‘correios, assistencialismo, siderurgia, eletricidade’ e outros?”
(De Ruben Rosenthal, post intitulado "O ouro de Washington financia a Atlas Network e a subversão da democracia pela direita golpista no Brasil", publicado no Blog Chacoalhando, de que é titular, e reproduzido no Jornal GGN - Aqui.
(Institutos filiados à Atlas Network. | Fonte: Atlas Network)
"A maioria dos Institutos parceiros da Atlas apresenta em seus sites os diretores e membros dos conselhos, bem como as fontes de financiamento e de apoio no meio empresarial. Na aparência, existe ampla transparência. Pelos estatutos não é permitido receber dinheiro público ou de partidos políticos, bem como assumir posições partidárias."
Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo Chacoalhando).
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