sábado, 15 de fevereiro de 2020

AFINAL, POR QUE 'PARASITA' GANHOU O OSCAR?

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"Um prêmio considerado praticamente impossível pela maioria dos especialistas, principalmente pela concorrência do filme 1917, de Sam Mendes. O mais otimista jamais poderia imaginar que a Academia, profundamente arcaica, quebrasse a tradição e celebrasse um filme falado em língua estrangeira."


Por que "Parasita" ganhou o Oscar?... É a geopolítica, estúpido!... 

Por Wilson Ferreira  

Nem o mais otimista crítico poderia imaginar que a Academia, profundamente arcaica, quebrasse a tradição e premiasse com o Oscar máximo um filme falado em língua estrangeira. O drama satírico sul-coreano com forte crítica social à forma mais avançada de exploração capitalista (o capitalismo cognitivo), “Parasita”, de Bong Joon-ho, levou a estatueta de Melhor Filme – além de Roteiro Original, Filme Estrangeiro e Diretor. O que levou a Academia quebrar a tradição de 93 anos? Uma distribuidora independente que fez uma campanha excelente? Um diretor carismático que conquistou amizades em Hollywood? O momento atual em que as mídias sociais e plataformas de streaming estão ditando as regras? Ou seria o resultado de um movimento unificado por diversidade? É a geopolítica, estúpido! Desde o crash de 2008, a Academia tem premiado temas recorrentes, que atendem à agenda econômica e política externa. Mas a geopolítica mudou quando a China se tornou mais poderosa do que foi a União Soviética no passado. E Bong Joon-ho está no lugar certo e na hora certa: o tema da desigualdade entrou na agenda da democracia liberal diante da ascensão da maior ameaça anti-globalização: o nacional-populismo de extrema-direita. 

Esse humilde blogueiro deve confessar que ficou surpreso com a vitória do drama satírico sul-coreano Parasita na festa do 92º Oscar. Não só por ter superado grandes nomes e filmes como a metalinguagem de Hollywood em Era uma vez em Hollywood; o brilhantismo técnico de 1917; as receitas de milhões de dólares juntamente com a polêmica de Coringa; a reinvenção de um clássico em Little Women; as corridas selvagens de Ford X Ferrari; o desgosto conjugal sempre renovado em História de Casamento; e o retorno do icônico diretor, Martin Scorsese, de filmes sobre gangsters em O Irlandês
Esse era um ano que qualquer um desses filmes poderia levar o Oscar para casa. Seja qual fosse o resultado, todos sairiam felizes do teatro Dolby, em Los Angeles.
No entanto, a vitória de Parasita foi surpreendente, inovadora – o primeiro filme não falado no idioma inglês a ganhar o Oscar de Melhor Filme em 93 anos. E, numa noite infernal do diretor Bong Joon-ho, ainda levou mais três Oscars – quando subiu no palco para pegar o terceiro prêmio, o diretor já estava visivelmente confuso com a surpresa.
Um prêmio considerado praticamente impossível pela maioria dos especialistas, principalmente pela concorrência do filme 1917, de Sam Mendes. O mais otimista jamais poderia imaginar que a Academia, profundamente arcaica, quebrasse a tradição e celebrasse um filme falado em língua estrangeira.
Alguns falam que o grande responsável foi uma campanha excelente. Desde que Parasita ganhou a prestigiada Palma de Ouro, a Neon, uma distribuidora independente, deteve os direitos norte-americanos, colocando elenco e a equipe de produção do filme em todos os lados – festas chamativas, entrevistas e sendo fotografados com os mais brilhantes nomes da área cinematográfica.

Também o peso de uma bilheteria de sucesso – a Academia parece adorar premiar sucesso com mais sucesso... embora normalmente em língua inglesa. Talvez o carisma e o entusiasmo de Bong Joon-ho que fez amizade com grandes nomes de Hollywood. 
Ou mais: Parasita surgiria num momento em que a indústria hollywoodiana vive tempos de mudanças estruturais – além das mídias sociais e as plataformas de streaming estarem reescrevendo as regras, há um movimento unificado de esforços para defender a diversidade em Hollywood – racial, linguística etc.


Um momento específico: desigualdade e luta de classes

Porém, o sucesso de Parasita surge em um momento muito específico de circunstâncias que podem não ser facilmente replicáveis, embora a safra atual de cineastas asiáticos esteja trabalhando duro para que o Oscar desse ano não seja apenas um breve momento de glória.
Em postagem anterior, este Cinegnose mostrou como o diretor Bong Joon-ho é um especialista no tema desigualdade e luta de classes, como ficou evidente em produções anteriores como Expresso do Amanhã e OkjaParasita faz um comentário crítico sobre a forma mais avançada de exploração capitalista – um sistema que se torna invisível atrás de aplicativos e celulares, precarizando “não pessoas” em subempregos terceirizados. Até que o ressentimento e luta de classes explode no interior da luxuosa casa de uma família sul-coreana abastada - clique aqui.
No fundo, é um filme inclassificável e incômodo - começa como uma comédia de costumes para evoluir para a sátira, o suspense, o drama do conflito de classes sociais, até atingir o ápice do horror. As variações do tema da luta de classes nos filmes anteriores do diretor, chega ao estado da arte de reflexão, ironia e humor negro em Parasita.
Como explicar que um filme como esse, difícil de ser digerido mas, ao mesmo tempo, cativante pela estranheza, tenha levado o Oscar 2020? Só os motivos acima, derivados exclusivamente do campo da indústria cinematográfica não explicam. Principalmente quando sabemos que Hollywood e sua Academia historicamente sempre acompanharam as mudanças das políticas econômicas e geopolíticas do Governo norte-americano.
Nesse momento o império norte-americano, o líder da economia globalizada com seu poder industrial, tecnológico, militar, nuclear, financeiro e cultural, vive o momento da necessidade de inflexão.


Acerto de contas com o neoliberalismo

Segundo Jennifer Harris e Jake Sullivan, da Foreign Policy, a política econômica e externa dos EUA vive a necessidade de fazer um acerto de contas com o neoliberalismo. “Um imperativo geopolítico e econômico”, afirmam, num momento em que a China “já atingiu um nível de força econômica e de influência que a União Soviética nunca teve” – clique aqui.
Para eles, os especialistas em segurança nacional argumentam que a geopolítica dos EUA deve ir além da filosofia econômica liberal – “Afinal, o mundo agora tem um experimento ao vivo de 10 anos, mostrando como a austeridade e a falta de investimentos diante do baixo crescimento produzem autocratas desestabilizadores no molde do Viktor Orban da Hungria e Jair Bolsonaro, do Brasil”.
E ao mesmo tempo os EUA entram em uma nova era de competição, enfrentando as consequências do modelo neoliberal de Globalização: a desigualdade, mudanças climáticas e tecnologia.
Globalmente, a desigualdade econômica está em ascensão, levando à polarização social, nacionalismo, violência, comportamentos criminosos e o surgimento de políticas populistas de extrema-direita. A desigualdade passou a ser a força vital desse nacional-populismo, principalmente após a crise de 2008 – com sua retórica anti-comércio, anti-globalização, alimentando o medo por trabalhadores estrangeiros, migração e terrorismo. 
O que representa uma séria ameaça às democracias liberais, como ficou particularmente evidente no Reino Unido, com o choque mundial do Brexit. Ou também nos movimentos dos “coletes amarelos” na França, explorando de forma populista o sentimento de negligência e exclusão nos subúrbios e regiões rurais.

Tema da “desigualdade” deixa de ser de esquerda

Portanto o tema da desigualdade está virando uma pauta liberal, sequestrando-o do campo político tradicionalmente da esquerda.
                   Mesmo no Brasil, diversos líderes e porta-vozes da intelectualidade liberal, da grande mídia e da indústria nacional (Armínio Fraga, Walter Schalka, João Carlos Paes Mendonça etc.) estão abandonando o discurso trifásico da corrupção, ajuste fiscal e desestatização para defender a prioridade do combate à desigualdade social no País.



Pete Buttigieg e Luciano Huck: candidatos-laboratório do liberal-progressismo

Não é à toa a iniciativa de criar candidatos-laboratório “liberais progressistas” com o discurso do “ativismo social”, do combate à desigualdade e mudanças climáticas como Luciano Huck no Brasil e Pete Buttigieg nos EUA que venceu apertado nas primárias dos Democratas em Iowa o concorrente Bernie Sanders – Buttigieg é um candidato atípico, com 38 anos, que parte de uma prefeitura direto à campanha presidencial, além de ser tenente da reserva da Marinha e ex-agente de inteligência militar. 
É a esperança dos democratas “moderados” ou de “centro”, que veem a questão da desigualdade pelo viés liberal. E não tão “socialista” como faz Sanders. 
Colocado em perspectiva, a crítica que Bong Joon-ho faz sobre a luta de classes no capitalismo cognitivo (o capitalismo cujas relações de classes são mediadas por plataformas tecnológicas), absorvida pela Academia, tem um significado político: o agendamento do tema da desigualdade na pauta liberal.
A Globalização e a financeirização pariram a exclusão social, crises ambientais, humanitárias e polarizações políticas produzidas pelas guerras híbridas e revoluções coloridas – e que abriram caminho para o nacional-populismo de extrema-direita anti-globalização e anti-democracia liberal.
Agora que a China emerge como potência global, surge o imperativo geopolítico e econômico de proteger as democracias liberais, antes que a desigualdade e o ressentimento coletivo virem combustível para a luta de classes ou para violência e anomia. Como sinalizados em Parasita e Coringa.

Temas de premiações recorrentes

                  Dessa maneira, a premiação de Parasita, juntamente com o documentário American Factory, ganha sentido: de um lado a absorção do tema da desigualdade social (num sentido liberal e jamais como o da “luta de classes” da esquerda); e do outro, um alerta sobre a ameaça geopolítica da China. 



Toda premiação dos principais Oscars sempre teve um sentido político recorrente: pelos menos desde o crash financeiro de 2008 (ponto de inflexão na ordem global) e da política externa anti-terror as premiações tenderam para filmes de temática metalinguística, plots bélico-militares e temas históricos.
Metalinguísticos (Hollywood olhando para o próprio umbigo): O Artista (2012), Birdman (2015), Argo (2013), Spotlight (2016, ou o réquiem para o jornalismo comunitário substituído pela Internet e Globalização – clique aqui.
Bélico-militar e elogios ao combate anti-terror: Guerra ao Terror (2010), Argo (2013). 
Temas Históricos: 12 Anos de Escravidão (2014), O Discurso do Rei (2011) e, mais uma vez, Argo (2013). O filme Argo, cuja premiação teve link direto com a Casa Branca na qual Michelle Obama anunciou o prêmio, foi uma produção simultaneamente metalinguística, bélica e com temática histórica – como a simulação de uma filmagem no Irã planejada pela CIA ajudou a libertar americanos do país durante a revolução islâmica. Um filme que conseguiu na época reunir os principais quesitos dentro da lógica de premiação da Academia de Cinema.
Portanto, era mais do que esperado o prêmio para 1917, não só pela ousadia técnica, mas também pela temática histórica e militar. 

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