quarta-feira, 22 de maio de 2019

SOBRE A INTERVENÇÃO DOS EUA NO BRASIL


"Daqui a apenas três anos sobrevirá na mídia corporativa o centenário da independência brasileira. Independência política de Portugal, sucedida por subordinação econômica à Inglaterra. Uma independência sem soberania, sem graus rasteiros de autodeterminação.
Da mesma maneira, a República pode ser celebrada como segundo momento histórico de transição entre dominadores externos sobre o Brasil – a aristocracia Inglesa cedeu espaço para a burguesia inovadora-gestora norte-americana.
Nos primórdios do século 20 cumpriu-se refundar o Estado Nacional brasileiro, mais amplo, que compreendesse pactos políticos progressivamente mais complexos. Os três poderes – Judiciário, Legislativo e Executivo – abriram novos espaços políticos para defesa dos interesses do dominador externo. Quase sempre através de prepostos brasileiros, selecionados entre as principais famílias oligárquicas. Este é o ambiente no qual surgiu o getulismo e, mais tarde, o lulismo. Facilitados, ambos, pela intenção do dominador norte-americano em transformar o Brasil em entreposto industrial e financeiro para a América do Sul.
Assim feito, o país tornou-se ao longo do século 20 base física para os oligopólios transnacionais na região. Somos desde então território aberto aos interesses industriais estrangeiros. No entanto, apenas em 1964 o dominador anglo-saxão obteve segurança contra perdas cambiais no país. Com a criação do Banco Central, que passou a dar garantias de saída para o capital estrangeiro. A transnacionalização industrial criou condições para a entrada maciça de interesses financeiros no país.
De fato, os investimentos em indústria e infraestrutura, promovidos pelos Governos militares entre 1964 e 1982, alinharam-se integralmente com o “convite” [conforme C. Medeiros] realizado pelos EUA. O endividamento externo foi aceito à época pelos formuladores militares como recurso pacífico, empregado em tempos de elevada rivalidade internacional. Pois foram exatamente as finanças dolarizadas, em 1979/80, que colocaram termo ao projeto Brasil-Potência.
Desde então, os países centrais têm experimentado dificuldades crescentes para criação de empregos de boa qualidade. A principal explicação é trazida por Coutinho & Belluzo (1982), segundo a qual o esgotamento dos mercados para produtos da “indústria velha” produziu dificuldades para retomada de elevadas taxas de crescimento nos países centrais já a partir dos anos 70.
Desta maneira, desde os anos 1980 o sistema-mundo tem passado por transformações profundas na organização industrial. A divisão internacional do trabalho que emergiu não parece incluir o Brasil entre os “convidados”. A manutenção de políticas macroeconômicas nocivas às iniciativas de industrialização, porém favoráveis à circulação financeira, contribuiu para que a indústria brasileira fosse perdendo importância nos últimos cerca de 40 anos. Até o limite de deixar de influir nas estratégias nacionais.
Contudo, o “fim da indústria” no Brasil pós-2014 contou com as mãos nada invisíveis dos órgãos de Estado norte-americanos – Departamentos de Estado, de Justiça, CIA e NSA[1]. O breve período da “República dos Corruptos” (2015-2018) cumpriu função histórica de destruir os pilares do projeto brasileiro, com a implementação de técnicas de guerra híbrida contra empresas e Governo.
Foi, contudo, nas sombras da “República dos Corruptos” (2015-2018) que os interesses financeiros internacionais teceram o ultraliberalismo brasileiro. O bolsonarismo econômico pode ser compreendido como esforço fiscal excessivo, porém calculado, que no agregado compensa, em favor dos bancos, a imensidão do butim enterrado no pré-sal.
Trata-se de um contrapeso financeiro ao salto de acumulação que o complexo industrial-militar experimentará com a apropriação das reservas brasileiras. Ao cabo e ao termo, o espólio pela morte do projeto brasileiro será distribuído entre os dois braços do dominador estrangeiro – as finanças e o complexo industrial-militar-petrolífero dos EUA.
A convergência de interesses entre banca internacional e petroleiras parece ainda tecer para o Brasil futuro nada promissor. Aparentemente, há a constatação, pelo dominador externo, de que a República brasileira tornou-se dispensável. A celebração de setores agrominerais como “nova vocação” econômica resulta da centralidade política do latifúndio e de sua contraparte financeira. Infelizmente, face ao desemprego elevado ou crescente experimentado em países centrais, a “vocação brasileira” após 100 anos de independência será retornar à condição de país-fazenda. Não há mais espaço para a industrialização. Nem para 200 milhões de habitantes…
Foi neste contexto que o ciclo político brasileiro entre 2019 e 2022 parece ter sido concebido pela inteligência do dominador. Como mudança tão profunda quanto à afirmação de uma condição neocolonial.
Conforme se procurará discutir no presente trabalho, a desarticulação do Estado brasileiro e a perseguição ideológica contra interesses privados têm como origem esforços dos Estados Unidos para impedir no futuro qualquer possibilidade de novo projeto soberano para o país.
Premissa primeira do dominador norte-americano: não basta desindustrializar, é importante garantir que o país jamais volte a ter um projeto industrial-tecnológico autônomo.
A destruição das firmas de construção civil pesada, o enfraquecimento e mutilação da Petrobrás, a venda do controle da Embraer, os percalços enfrentados pela Vale, a repatriação das automotivas norte-americanas, em seu conjunto, têm contribuído para rápido decaimento da indústria e da tecnologia no Brasil nos últimos 4 anos.
Sem indústria e sem tecnologia, o Brasil financiará as necessidades de investimentos com excedentes agrominerais produzidos mediante emprego de recursos crescentemente importados (pesticidas, fertilizantes, sementes, comercialização e transporte). Não é difícil se antecipar que a renda, mesmo das elites, diminuirá com o tempo.
Os Estados mais pobres, sem potencial de internacionalização da produção agromineral, serão levados a experimentar condições de desalento comparáveis à de países da África subsaariana.
As elites brasileiras voltarão a enviar seus filhos para estudarem no exterior ou, no melhor cenário, em franquias de universidades norte-americanas no Brasil. Neste jogo, as ciências sociais não entram porque não são rentáveis, os alunos “não se preparam” para acesso a empregos formais que paguem pelos financiamentos estudantis.
Já a Amazônia se oferecerá como potencial para expansão da produção agromineral a limites ainda não experimentados pelos latifundiários do Centro-Oeste/Norte. A ocupação humana e econômica do território, hoje coberto por florestas, é percebida pelos militares brasileiros no Governo como estratégia viável para preservação da posse brasileira sobre o território. Esta tese não é inteiramente corroborada pelas elites manauaras e belenenses, em parte ávidas pela internacionalização do território.
Premissa segunda o dominador norte-americano: não basta desarticular o Estado, deve-se erguer uma nova ordem política no Brasil. Um estatuto neocolonial, em que ordens religiosas e “coronéis” fornecem as bases políticas e morais de apoio ao recrudescimento do uso da força policial-coercitiva. Uma força a ser aplicada ou sobre os críticos ou sobre os excluídos do mundo dos mercados.
A aplicação de um ajuste fiscal sem precedentes no país, o que inclui apropriação privada de massas de recursos públicos, tem levado à corrosão dos poderes Republicanos – Judiciário, Legislativo e Forças Armadas. Ainda que esta corrosão tenha se intensificado com a “Lava Jato”, se estendeu para a segurança pública, onde ganhou dimensões presidenciais. Nos próximos cinco anos cerca de 500 mil militares bem treinados se retirarão para a reserva. Com isso, se reforça a convergência de interesses entre o grupo político do presidente, o alto estamento militar e o dominador estrangeiro, no que se refere a como tratar a esperada reação ao desemprego. A milícia é um termo genérico, cunhado para designar a crescente importância de grupos privados sobre a segurança dos territórios.
Concorre para o fortalecimento das milícias a indústria de armas e equipamentos para homeland security, bem como interesses empresariais, que poderão acessar territórios hoje dominados pelo narcotráfico.
Neste quesito, o alto estamento militar parece reconhecer que a entrada de grupos privados na segurança ameaça o papel institucional das próprias Forças Armadas. O papel de última instância, como garantia na defesa da soberania e da Carta Magna, encontra-se rivalizado por grupos privados armados. Armados e articulados política e economicamente para ameaçar o país com emprego da força.
O poder político das milícias em áreas de desalento só rivaliza com aquele das igrejas evangélicas, cuja hierarquia reversa nos leva de volta aos EUA. Neste caso, o conflito se dá contra a representação política das oligarquias tradicionais. A disputa pelo voto entre populistas conservadores e candidatos de Igrejas tem contribuído para afirmação de um novo estilo de dominação dos mais pobres. Esta é uma disputa que tem como principais interessados os banqueiros, que buscam conter emendas parlamentares ao orçamento público.
Em síntese, a desarticulação dos poderes republicanos, os recuos na indústria e na tecnologia, a expansão do latifúndio, o enfraquecimento das Forças Armadas são movimentos sincronizados. Apontam para uma relação de dominação mais próxima daquela observada em regimes coloniais do que entre iguais, entre países soberanos.
.
[1] Tudo documentado, incluindo-se equipamentos e tecnologia “doados”, bem como treinamentos de juízes, policiais e promotores da “Lava Jato” nos EUA. Lembra-se ainda da grave denúncia de espionagem sobre a Presidente eleita e, recentemente, de visita do ex-juiz, agora Ministro Moro, às dependências da CIA."


(De Marco Aurélio Cabral Pinto, artigo intitulado "Intervenção dos EUA no Brasil: ultraliberalismo, petróleo e Amazônia", publicado no Brasil Debate - AQUI.
Marco Aurélio é professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em administração de empresas pelo COPPEAD/UFRJ, doutor em economia pelo IE/UFRJ. Engenheiro no BNDES e Conselheiro na central sindical CNTU. É colunista do Brasil Debate).

Nenhum comentário: